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Aspectos da defesa do devedor na ação de busca e apreensão decorrente de contrato de alienação fiduciária

30/09/2004 às 00:00
Leia nesta página:

1. Conforme inexcedível lição de Vicente Greco Filho, busca e apreensão é uma expressão utilizada para denominar vários institutos no processo civil: significa ação cautelar (arts. 839 e seguintes), é a medida executiva de apreensão da coisa móvel na execução para a entrega de coisa (art. 625), é a medida utilizada para a apreensão de pessoas ou coisas, etc.1

2. Já nos termos do Decreto-lei n. 911, de 1º de outubro de 1969, a expressão "busca e apreensão" foi utilizada para denominar a ação de retomada da coisa em favor do proprietário/credor/fiduciário, em caso de não pagamento por parte do devedor/mutuário/fiduciante, este que, em garantia de dívida, via de regra consubstanciada em financiamento bancário parcelado, transmitira àquele a propriedade do bem, ficando mantido na posse sob a condição resolutiva de saldar a integralidade do débito.

3. Comprovada a mora ou o inadimplemento, o credor poderá requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, que será concedida liminarmente (artigo 3º do Decreto-lei n. 911/69).

4. Oportuno registrar que, ao credor garantido por alienação fiduciária, a lei assegura também a ação de depósito ou a ação executiva, visando a realização do seu crédito, medidas que, no entanto, não serão objeto de apreciação neste singelo estudo.

5. Fixando-se-nos, pois, exclusivamente na defesa prevista para a ação de busca e apreensão, estabelece o parágrafo 1o do Dec. Lei n. 911/69, que o devedor poderá, tão-somente após despachada a inicial e cumprida a liminar, apresentar contestação ou, se já tiver pago 40% (quarenta por cento) do preço financiado, requerer a purgação da mora.

6. Dispõe, a seu turno, o parágrafo 2º daquele diploma legal que, na contestação, só se poderá alegar o pagamento do débito vencido ou o cumprimento das obrigações contratuais.

7. A simples interpretação literal dos dispositivos acima mencionados revela o caráter restritivo imposto à defesa do devedor, com o que não podemos nos satisfazer de plano, face aos princípios da igualdade, do contraditório e da ampla defesa, constitucionalmente assegurados a todos os litigantes.

8. Nossos Tribunais, em inúmeros julgados, já tiveram oportunidade de se manifestar contra tal limitação, mitigando o rigorismo da lei, mormente quando sua interpretação restritiva implica em manifesta injustiça e confronto com outras disposições legais.


DIREITO IRRESTRITO DE PURGAR A MORA

9. Nesse passo, registre-se que a exigência do prévio pagamento de 40% do preço financiado, a fim de possibilitar ao devedor a purgação da mora, não se coaduna com as normas do Código de Defesa do Consumidor, notadamente o artigo 532, pois malfere o princípio da igualdade, impede a continuidade do negócio jurídico e inviabiliza a restituição das parcelas já pagas pelo devedor.

10. A melhor orientação jurisprudencial é no sentido de que dita exigência encontra-se revogada ante a superveniente e obrigatória aplicação do estatuto consumerista, sendo oportuno transcrever os seguintes e elucidativos arestos:

"A exigência imposta pelo parágrafo 1º do art. 3º do Decreto-lei 911/69 (pagamento no mínimo de 40% do preço financiado) está afastada pelas disposições contidas nos arts. 6º, VI, e 53 "caput", do Código de Defesa do Consumidor" (STJ-4a Turma, Resp 157.688-RJ, Relator Min. Cesar Rocha, j. 19.5.98, DJU 29.3.99, p. 181).

"Nos termos do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, e considerando-se o princípio da conservação dos contratos vigentes nas relações negociais de consumo, encontra-se implicitamente revogada a exigência de prévio pagamento de 40% do preço financiado para a purgação da mora em contrato garantido por alienação fiduciária, pois tal exigência restringe indevidamente a continuidade da relação negocial, alem de implicar no eventual perdimento das prestações pagas pelo devedor fiduciante." ( Ap. c/ Rev. 574.342-00/0 – 5a Câm. – Rel. Juiz Oscar Feltrini, j. 29.3.2000).

11.

Assim é que, no prazo de três dias contados da juntada aos autos do mandado liminar, no bojo da defesa, ou em petição autônoma, é plenamente possível ao devedor, ainda que não tenha pago 40% do bem financiado, pleitear a purgação da mora, pelo que deverá obrigatoriamente o magistrado determinar o encaminhamento do feito ao contador para cálculo do débito existente (Dec. Lei 911/69, art. 3º, parágrafo 3º), conforme já decidiu o E. 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, nos autos do AI 6l5.919-0/5, 5ª Câm., Rel. Juiz Luís de Carvalho, J. 24.5.2000.

DEBATE SOBRE INVALIDADE DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS EM QUE SE FUNDA A COBRANÇA/ EXCESSO DE ENCARGOS

12. Pode ainda ser objeto de defesa toda e qualquer matéria atinente a exigência abusiva do credor, em detrimento da lei e do contrato, garantindo ao réu a amplitude do direito de defesa. Aliás, plenamente justificável admitir como matéria de defesa a alegação de excesso de valores cobrados, em desacordo com as cláusulas contratuais, ou mesmo fundados em disposições ilegais, vez que o credor não está sequer obrigado a apresentar demonstrativo atualizado do débito com a inicial, bastando fazer prova da mora ou do inadimplemento do devedor, mediante notificação extrajudicial, para obter a liminar de busca e apreensão do bem.

13. A despeito da enorme facilidade conferida ao credor fiduciário na obtenção do provimento liminar de busca e apreensão, o Judiciário não há que admitir cobrança exacerbada e injustificada, sem explicações compreensíveis sobre os critérios de atualização da dívida. Para tanto, antes do pronunciamento jurisdicional de primeira instância, deve ser facultada às partes ampla produção probatória, mormente a prova técnica financeiro-contábil, a fim de se apurar o correto quantum debeatur, este que deve estar obrigatoriamente fincado em critérios e bases contratuais admitidas pelo Direito.

14. Confira-se, a propósito, trecho de V. Acórdão da lavra do Em. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, no Resp n. 299254-MG, publicado em 22.05.2001, 4. T- STJ (os grifos não são do original):

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"O r. acórdão entendeu que não se pode discutir nos autos de busca e apreensão as questões relacionadas como os encargos contratados. É certo que no art. 3º, parágrafo 2º, do DL 911/69 está prevista apenas a contestação pelo pagamento do débito ou cumprimento das obrigações contratuais. Porém, como já se decidiu nesta Turma, tal limitação pode ser admitida no plano infraconstitucional quando a exigência expressa pela credora for legal; se houver ilegalidade consubstanciada em cláusulas estipuladoras de encargos abusivos, não há como proibir o juiz de apreciar a legalidade do contrato em que se funda o direito da autora:...Por isso, por ofensa ao disposto nos arts. 130 e 333 do CPC, conheço do recurso e lhe dou provimento, para anular o processo a partir da sentença, inclusive, a fim de reabrir a instrução..."

15.

Do mesmo Ministro é a judiciosa e elucidativa manifestação exarada no RESP 302.252 - MG:

"É certo que este Tribunal tem interpretado a regra proibitiva do art. 3º, parágrafo 2º do Dec. Lei 911/69 de modo consentâneo com a necessidade de ser garantido ao réu o exercício da sua defesa. Assim, se a exigência formulada na ação de busca é ilegal ou não prevista no contrato, o devedor pode lançar na sua contestação a defesa que tiver, a qual necessariamente deverá ser apreciada pelo juiz. "


CONCLUSÃO

16. Torna-se, assim, possível concluir que, após o cumprimento da ordem liminar de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, pode o devedor/fiduciante requer a purgação da mora mesmo que não tenha pago 40% do preço financiado, conforme lhe faculta o Código de Defesa do Consumidor, bem como lançar mão da mais ampla defesa, no sentido de discutir eventual abusividade dos encargos cobrados pelo credor, em detrimento das limitações legais e contratuais, mediante irrestrita dilação probatória, inclusive perícia técnica financeiro-contábil.


NOTAS

1 Vicente Greco Filho. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, V. 3. 2000. p. 301.

2 Art. 53 Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

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Sobre o autor
Rogério Barbosa de Castro

Advogado em Ribeirão Preto/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Rogério Barbosa. Aspectos da defesa do devedor na ação de busca e apreensão decorrente de contrato de alienação fiduciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 450, 30 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5750. Acesso em: 18 abr. 2024.

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