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Poliamor: a quebra do paradigma da “família tradicional brasileira”

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16/07/2017 às 14:24
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É desastroso o risco ao qual o sistema judiciário está sendo submetido quando o Poder Legislativo opta por não acompanhar as mudanças pelas quais passa a sociedade.

Resumo: Diante das inovações nas perspectivas sociais que influenciam diretamente as formas de relacionamentos afetivos entre os seres humanos, observa-se a obrigação jurídica de acompanhamento legislativo para a proteção estatal de novas situações percebidas pela coletividade. O tradicionalismo concernente ao núcleo familiar já não é tido como critério absoluto para a construção do cerne doméstico, que hoje também possui o elemento da pluralidade de espécies para a sua constituição. Famílias das mais diversas características estão sendo formadas a partir dos fundamentos de afinidade, sem deixar de apresentar o aspecto afetivo e solidário entre seus integrantes. Assim, dentro desse contexto de multiplicidade, chama-se a atenção para a crescente prática da ideologia poliamorista, que já é uma realidade de fato na organização familiar. A monogamia e o patriarquismo deixam de ser vistos como critérios obrigatórios no pensamento contemporâneo e passam a ser objeto de questionamento por parte daqueles que não se identificam com seus ditames.

Palavras-chave: Família. Poliamor. Monogamia. Direito de Família.

Sumário: Introdução; 1. Poliamor: conceito, requisitos e evolução histórica; 2. Monogamia e a Constituição Federal Brasileira; 3. Análise ao PL 6583/2013 – Estatuto da Família; 4. O Poliamor, a “Família Tradicional” e a atual jurisprudência no Brasil; Conclusão.


INTRODUÇÃO

O presente artigo possui como finalidade maior destacar a importância da adequação legislativa às novas perspectivas sociais apresentadas, para que o sistema jurídico brasileiro não se demonstre ineficaz e obsoleto face às transformações ocorridas na sociedade. Para isso, é traçada uma linha tênue entre o Direito de Família e o surgimento de novos institutos passíveis de vínculo afetivo, dentre eles destacando o poliamorismo, que já é reconhecido no âmbito jurisprudencial como prática de constituição familiar.

O processo de mutação social pelo qual o mundo contemporâneo se depara é um dos fatores primordiais que obriga as diversas áreas do setor público a se adequar a diferentes realidades apresentadas com o passar dos anos. A necessidade de atualização do aparato estatal se evidencia a partir das novas experiências vividas pela sociedade como um todo.

Assim, no tocante aos diferentes ramos do sistema jurídico, destacamos o Direito de Família que ocupa uma posição importante quando falamos em necessidade de atualização legislativa.

Diante do cenário de mutação social constante e da crescente evolução dos meios de comunicação, deparamo-nos com o surgimento de novas práticas de relacionamentos familiares, oriundas, principalmente, do contato contínuo com os costumes de outras nações. É o caso do poliamorismo, o qual ganhou grande repercussão no âmbito nacional por atentar contra o extremo conservadorismo cravado na conceituação de “família tradicional brasileira”, disposta no projeto de Lei 6583/2013 – Estatuto da Família.

A polêmica gira em torno de que muitos fundamentam a monogamia como um princípio absoluto a ser seguido na organização familiar, considerando qualquer outro tipo de relacionamento afetivo intolerável ao reconhecimento legal pelo Estado.

Hoje, o maior desafio enfrentado pelos juristas que defendem a forma de relacionamento em questão é a vitória em cima do preconceito, então pautado na falta de conhecimento sobre o instituto.


1. POLIAMOR: CONCEITO, REQUISITOS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Num primeiro momento, para que possamos traçar um estudo mais aprofundado sobre o tema em questão, é preciso que destaquemos algumas considerações iniciais sobre o instituto do poliamor, espécie de relação poligâmica, com o intuito de tornar clara a compreensão do objeto. Quando falamos sobre a prática em comento, é preciso que se de tenha bastante cautela em sua abordagem, tendo em vista a banalização das características que lhes são atribuídas, bem como o seu tratamento de forma discriminatória e bastante preconceituosa.

Nesse sentido, destacamos o conceito de poliamor por Pablo Stolze (2008, p. 51-61):

O poliamorismo ou poliamor, teoria psicológica que começa a descortinar-se para o Direito, admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta.

Assim, podemos dizer que o poliamorismo é caracterizado, de uma forma mais sucinta, pela existência de duas ou mais relações afetivas concomitantes, dentre as quais as partes envolvidas consentem por essa realidade.

Sua prática é analisada sob o ponto de vista psicológico, que a atribui como certa capacidade que determinadas pessoas possuem de manter relações afetivas com mais de um indivíduo num mesmo espaço de tempo. O consentimento entre as partes que integram os envolvimentos paralelos é uma das principais características que distingue o Poliamor da traição, posto que aquele não fere com a fidelidade conjugal estabelecida entre os casais que aderem à prática poliamorista. Não existe conflitos entre as partes, que aceitam livremente o convívio afetivo paralelo de seus parceiros com outras pessoas (MAZZO; ANGELUCI, 2014).

O que muitos desconhecem é o fato de que o reconhecimento estatal de relações paralelas depende do preenchimento de alguns requisitos necessários que irão caracterizar a existência ou não da prática poliamorista. Há critérios que precisam ser analisados quando as relações de poliamor são submetidas à apreciação jurídica, destacando-se, dentre os principais, o consentimento entre as partes envolvidas, a convivência pública, contínua e duradoura e o objetivo de constituir família.

Hoje, é bastante comum o mantenimento de casos paralelos, que são sustentados pelo concubinato desleal e possuem apenas como intuito a satisfação sexual entre as partes, descartando qualquer objetivo de constituição familiar e de convivência pública. Logo, é preciso salientar que não se pode ocorrer uma vulgarização para o uso indiscriminado do instituto assinalado, tendo em vista que nem todos os envolvimentos amorosos paralelos que são identificados atualmente estão passíveis de reconhecimento como prática do poliamorismo. A união paralela movida pela adrenalina e pelo simples desejo sexual entre as partes, não possui, em “prima face”, característica de um relacionamento condizente com a tutela do Estado (STOLZE, 2008, p. 51-61)

É notório que no decorrer dos anos as relações afetivas tomaram grande proporção no tocante a diversidade com que estão sendo constituídas, o que deixou de lado algumas características como o patriarquismo e a monogamia, que até então eram imprescindíveis para a formação familiar. Para Giancarlo Buche (2011), a família patriarcal e monogâmica teve origem no Brasil Colônia, muito em virtude da grande influência católica que predominava no pensamento da sociedade brasileira entre os séculos XVI e XIX. Nesse período, a família era tida como uma unidade de cunho inteiramente econômico, a qual não atendia aos interesses individuais de cada membro.

O sistema patriarcal e, consequentemente, a monogamia, começou a ser objeto de questionamento com a tomada de consciência por parte da população atual, que viu o afastamento do Estado em relação a Igreja e passou a manter relações afetivas até mesmo sem a figura de um patriarca. A visão hierarquizada da família sofreu grandes transformações a respeito não só da diminuição de seus membros, mas também no sentido do comando familiar por parte de seus integrantes, o que antes era direcionado apenas ao chefe patriarca. Com a figura feminina no mercado de trabalho, a mulher passou a ter maior relevância no papel de chefia no âmbito doméstico (DIAS, 2015 p. 132).

Com o advento da Constituição Federal de 1988, a concepção de cidadania tomou maior proporção a respeito das liberdades individuais protegidas pelos direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, houve uma abertura social para a modernização das relações entre os seres humanos, que deu ensejo para a liberdade na busca da felicidade por parte de qualquer cidadão, com o limite apenas na não violação aos direitos de outrem.

Nas palavras de Giovana Pelagio Melo (2010), o poliamorismo apresenta-se como outra visão do amor, onde há a opção de maior troca entre os parceiros, gerando um equilíbrio harmônico sem a ocorrência de frustrações. A prática não constitui em procurar obsessivamente novas relações afetivas para suprir outras afeições, mas sim de poder viver com a ideia de liberdade individual, que acaba por possibilitar a criação de sentimentos como a amizade e o companheirismo.

Assim como a evolução do pensamento que reconheceu a figura da mulher com o mesmo grau de importância em relação à masculina, outras ideias também precisam ser amadurecidas a respeito do núcleo familiar. O Poliamor é uma nova realidade social e precisa de regulamentação jurídica, já que a seu respeito ainda ocorrem lacunas legislativas que deixam o seu reconhecimento a mercê de diferentes critérios pessoais adotados pelos julgadores.

Não obstante já identificarmos algum progresso no pensamento majoritário de nossos juristas a respeito do reconhecimento do vínculo obrigacional para o combate ao enriquecimento ilícito do “cônjuge infiel”, é preciso que se alcance uma evolução ainda maior, capaz de combater definitivamente o desamparo legal a situações de relacionamentos paralelos.

Utilizar do patriarquismo, da monogamia e da aparente infidelidade como justificativas para a falta de tutela estatal das relações simultâneas, é retroceder a um processo evolutivo do sistema jurídico já alcançado no decorrer de algumas décadas. Negar a existência de mutações sociais é acreditar em uma legislação ineficaz ao atendimento das necessidades dos seres humanos, que vivem em intensa atividade de transformação. A falta de adequação do aparato legislativo frente às novas realidades acarreta o risco do descrédito então depositado no Poder Judiciário brasileiro, que deixa de acolher com proteção jurídica situações cotidianas que não deixarão de existir pelo simples fato de falta de previsão legal.


2. MONOGAMIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA DE 1988

Como se sabe, na ótica do Direito de Família, a monogamia é o regime conjugal enraizado nos costumes da população ocidental, tendo como característica o convívio familiar entre pessoas que possuem apenas um parceiro enquanto perdura a determinada união. A prática monogâmica está presente há séculos na sociedade brasileira, sendo que muitos a consideram como um princípio constitucional absoluto, impassível de ser contrariado no âmbito legal.

O ponto de partida para a proliferação costumeira do sistema conjugal monogâmico se deu ainda na Grécia Antiga, com a derrocada da formação familiar pelo matrimônio por grupos, então presente de forma enraizada na cultura dos povos bárbaros. Assim, mesmo sendo considerada como um aspecto evolutivo em esfera social, a cultura monogâmica já não era bem quista até mesmo entre a população grega.

Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia era a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. (...)

A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge como forma de escravidão de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história (ENGELS, 1984, p. 70).

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Em que pese a poligamia ser realidade na história de várias outras nações, a população brasileira, em seu percentual maior, ainda vê tal prática com bastante preconceito e discriminação, taxando-a como imoral aos olhos dos bons costumes. Mesmo com o crescente processo de modernização global pelo qual a esfera social convive diariamente, há ideias pautadas sobretudo na religiosidade que impedem o indivíduo de aceitar aquilo que é diferente de suas escolhas. Já no tocante a seara jurídica, temos que considerar a falta de previsão constitucional que institui a monogamia como regime conjugal obrigatório. Nas palavras de Maria Berenice Dias (2015, p. 42):

Uma ressalva merece ser feita quanto à monogamia. Não se trata de um princípio do direito estatal de família, mas sim de uma regra restrita à proibição ele múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela do Estado. Ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla. Ao contrário, tanto tolera a traição que não permite que os filhos se sujeitem a qualquer discriminação, mesmo quando se trata de prole nascida de relações adulterinas ou incestuosas.

Como bem preceitua, a monogamia trata-se de um critério de adoção concernente ao direito privado, que visa regulamentar as relações econômicas com vínculo matrimonial, sem se equiparar, portanto, aos princípios da liberdade e igualdade, estes sim, protegidos constitucionalmente por dispositivo expresso no diploma maior.

O artigo 226 da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe sobre a importância da instituição família, não faz qualquer referência a união monogâmica como única forma de constituição familiar. Conforme destaca Maísa de Souza Lopes (2015, p. 01-217), o rol apresentado na disposição não aparece como taxativo, dando ensejo para o reconhecimento de rmanifestações afetivas das mais diversas espécies, que também estão sujeitas a proteção do Estado.

Atualmente, podemos atribuir o caráter monogâmico e patriarcal que permeiam o Direito de Família a questões bastante voltadas para o cunho religioso, posto que determinadas características são proliferadas, em sua maior escala, por meio de ensinamentos cristãos. Com isso, denota-se outra contradição a respeito de considerarmos tal seguimento como regime conjugal obrigatório, uma vez que o Brasil é, constitucionalmente, considerado uma nação laica, desvinculada de qualquer religião.

Percebe-se, porém, que além dos entraves jurídico-sociais, as relações não-monogâmicas defrontam-se, ainda, com dogmas religiosos. A religião que, sem dúvida alguma, exerce bastante influência em nossa sociedade, julgam-nas imorais, promíscuas e repletas de pecado, vez que são, supostamente, contrárias à vontade Divina. Mas, é preferível prescindir ao teor religioso do assunto, haja vista ser um esforço vão (MAZZO; ANGELUCI, 2014).

Outro fator que pode ser apontado para o fracasso da obrigatoriedade do vínculo conjugal monogâmico é a forte presença do adultério na realidade social brasileira. Elevando-se o status da monogamia como princípio fundamental e absoluto, é desamparar de forma econômica e afetiva, milhares de famílias então constituídas de maneira extraconjugal, sendo estas excluídas do vínculo patrimonial do parceiro infiel (DIAS, 2015 p. 43).

Insta salientar que o desamparo aos indivíduos envolvidos em uma relação paralela fere diretamente a preceitos fundamentais expressos no rol dos direitos e garantias fundamentais. Como bem destaca Giancarlos Buche (2011), o poder estatal não pode desconsiderar que a sociedade atual vem sofrendo os efeitos contínuos da globalização e, por mais complexa que esta se torne, é dever do Estado proporcionar a devida proteção ás diferentes relações familiares, sob pena de infração ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Não é novidade que a dignidade da pessoa humana é a base para a ramificação de todos os outros direitos e garantias fundamentais, que foram instituídos justamente para assegurar, de forma constitucional, uma vida digna de existência aos seres humanos em escala global. Afrontá-lo desta maneira, é colocar em risco a segurança jurídica do diploma hierarquicamente superior no sistema jurídico brasileiro, o qual é responsável por embasar a criação de todo um arcabouço infraconstitucional, que funciona como suporte para a regulamentação de situações especificas vivenciadas no dia a dia atual.

Gilmar Mendes (2015, p. 140) evidencia a importância do princípio da dignidade da pessoa humana quando lhe atribui como o mecanismo inspirador para outras garantias fundamentais, como o direito à vida, à liberdade, à integridade física, à igualdade, à segurança, dentre outros. Ademais, ressalta que tal princípio serve inclusive, como um limitador ao poder estatal, impossível de ser ferido até mesmo por representantes do Poder Público, que poderiam vir a agir com livre arbítrio e cometer injustiças no âmbito social.

Assim, diante do que foi exposto, podemos apontar a falência da obrigatoriedade do regime conjugal monogâmico como o único passível de reconhecimento estatal na forma de convívio afetivo-amoroso. Dar-lhe um caráter constitucional, é colocar em risco a superioridade de preceitos fundamentais que já foram criados com o intuito de proporcionar e proteger o mínimo existencial destinado aos cidadãos.


3. ANÁLISE AO PL 6583/2013 – ESTATUTO DA FAMÍLIA

As bases para a conceituação do instituto da Família estão dispostas no artigo 226 da Constituição Federal que dita sobre a importância da constituição familiar como base para a organização da sociedade. O parágrafo 3º do dispositivo teve seu entendimento alterado a partir da resolução n. 175 do CNJ que instituiu a ilegalidade do ato das autoridades competentes que recusarem a habilitação, a celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.

Entretanto, mesmo com a atual disposição do Conselho Nacional de Justiça, então utilizada para nortear diversos posicionamentos jurisprudenciais a respeito da temática, parcela dos integrantes do Poder Legislativo ainda insiste na ideia de que o núcleo familiar somente deve ser reconhecido por meio da união entre pessoas com sexos distintos. As ideologias conservadoristas que permeiam a elaboração do Estatuto da Família (PL 6583/2013) demonstram que alguns membros do Poder Legislativo não estão dispostos a acompanhar as mudanças sociais apresentadas pelo processo de modernização.

Há alguns anos o projeto de lei n. 6583/2013 ocupa uma posição de destaque na mídia brasileira, tomando uma proporção ainda maior após outubro de 2015, quando a Câmara dos Deputados aprovou o respectivo projeto e abriu a possibilidade da proposta seguir para análise do Senado.

O art. 2º do Estatuto da Família define a “entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Nesse sentido, exclui-se da definição qualquer outro tipo de envolvimento afetivo que não seja aquele formado entre um homem e uma mulher ou por qualquer dos pais e seus descendentes, o que deixa de lado a abrangência de uma realidade já consideravelmente experimentada pela sociedade brasileira, seja por meio de uniões homoafetivas ou até mesmo de relações simultâneas.

Friedrich Engels é um dos principais estudiosos que tratou de maneira essencialmente aprofundada sobre os aspectos históricos da formação familiar. Em seu livro “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Engels analisa os laços familiares formados desde a existência dos povos bárbaros para então chegar a uma conclusão sobre a origem desse instituto, no que tange a sua consideração como uma prerrogativa diferente daquela que chamamos de parentesco. Vejamos:

A família, diz Morgan, é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentescos, pelo contrário, são passivos; só depois de longos intervalos, registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical, senão quando a família já se modificou radicalmente (ENGELS, 1984, p. 30).

Em que pese serem institutos quase que simultâneos, é possível concluir que na visão de Engels, a família aparece como uma instituição radicalmente dinâmica, a qual acompanha o processo evolutivo em esfera social, sendo que os graus de parentesco nem sempre conseguem acompanhar o caráter progressista dos vínculos familiares, que não são formados, necessariamente, apenas pelos laços de consanguinidade.

Assim, diante do intenso processo dinâmico ao qual a instituição familiar apresenta-se exposta desde os primórdios, é inegável a existência de um extremo risco legislativo em se criar um diploma infraconstitucional que limita o aspecto amplo trazido pela Constituição Federal de 1988 no tocante a formação do núcleo de uma família.

É inegável que partir de meados do século XX, movimentos sociais das mais diversas características eclodiram em esfera mundial, passando a dar bastante atenção às temáticas pertinentes à vida em sociedade. O advento feminista dos direitos e práticas sexuais como um todo teve um forte embate social, que culminou com os avanços hoje percebidos no que tange aos direitos de grupos minoritários (MARTINS, 2010). Logo, fundamentos patriarquistas utilizados para embasar o PL 6583/2013 retrocedem a avanços sociais já alcançados e enraizados no pensamento de grande parte da comunidade contemporânea.

As disposições trazidas pelo Estatuto da Família contrariam diretamente posicionamentos jurisprudenciais do STF, que já reconheceu a necessidade de legalização das uniões homoafetivas, uma vez que a população não pode fechar os olhos para a existência dessa realidade e fomentar a intolerância para aquilo que é novo. No tocante ao reconhecimento estatal das relações paralelas, o caminho não deve ser diferente, já que a prática poliamorista já é, de fato, uma das formas de envolvimento afetivo adotado na atualidade.

A inconstitucionalidade do projeto é outro fator que pode ser apontado para demonstrar a carência argumentativa da parcela que defende a aprovação definitiva do estatuto. No julgamento da ADPF 132/RJ, o STF reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar protegida pela Constituição Federal, considerando que a ela são aplicáveis as mesmas regras legais da união estável entre pessoas com sexos diferentes, sendo certo que foi diante desse contexto que o CNJ editou a resolução n. 175/2013, responsável por modificar a interpretação do parágrafo 3º do art. 226 da CF (TARTUCE, 2015).

O terceiro ponto a ser destacado é o fato de que o Estatuto da Família ignora expressamente certos princípios norteadores utilizados para a caracterização de uma entidade familiar. Lara Rafaelle Pinho Soares (2013) dispõe:

O princípio da afetividade sempre esteve presente no direito de família. Porém, a interferência do direito eminentemente patrimonial fez com que o reconhecimento da sua importância fosse obstacularizado pela necessidade de busca da manutenção de um status social defendido durante longas décadas, o que não pode mais ser aceito nos dias atuais, haja vista que, inexoravelmente, a família é a gênese da sociedade, constituídas de relações humanas, cujo objetivo maior é o desenvolvimento pessoal, emocional e social dos seus componentes.

O afeto entre as partes envolvidas é imprescindível para a construção do núcleo de uma família, uma vez que figura como elemento básico para avivar outros sentimentos como o carinho, o amor e o respeito. Nota-se que o projeto de lei, quando promove a exclusão social relativa aos demais meios para a constituição familiar, sequer leva em conta a necessidade da presença do caráter afetivo nas relações de família. A preocupação com cunho patrimonialista da proposta acaba se sobrepondo a preceitos realmente fundamentais, os quais deveriam ser rigidamente observados quando do reconhecimento estatal do núcleo familiar.

Por fim, enfatiza-se ainda o caráter discriminatório do texto apresentado pelo projeto de lei que, num contexto de vigência da chamada Constituição Cidadã, contraria fundamentos como o da igualdade, liberdade e da dignidade da pessoa humana. Já é pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido de que o cidadão é totalmente livre para a busca de sua felicidade pessoal no âmbito afetivo, podendo alimentar envolvimentos amorosos da maneira como bem lhe satisfaça, sem transgredir o direito de outrem.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o conceito de família ficou evidentemente aberto para as mais diversas interpretações, não sendo permitido ao legislador infraconstitucional limitar essa expansão. Restringir o texto da norma constitucional a partir de projetos de lei, remete-nos a uma ação descabida de qualquer consideração hierárquica.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALMONGE, Luana. Poliamor: a quebra do paradigma da “família tradicional brasileira”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5128, 16 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57970. Acesso em: 18 abr. 2024.

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