Capa da publicação Falência: o momento certo de instaurar o procedimento falimentar
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Pressupostos caracterizadores do estado de falência: importância, definição e instrumentos de comprovação

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17/03/2018 às 11:15
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3 Insolvência

Em seu sentido técnico/econômico, “insolvência é o estado patrimonial do devedor caracterizado pela insuficiência do ativo para saldar o passivo” (RAMOS, 2016, p. 203). Em outras palavras, caracteriza o que a doutrina costuma chamar de crise patrimonial.

[...] A crise patrimonial é a insolvência, isto é, a insuficiência de bens no ativo para atender à satisfação do passivo. Trata-se de crise estática, quer dizer, se a sociedade empresária tem menos bens em seu patrimônio do que o total de suas dívidas, ela parece apresentar uma condição temerária, indicativa de grande risco para os credores. (ULHOA, 2012, p. 291, grifos no original)

No entanto, a doutrina e a jurisprudência costumam apontar que, enquanto pressuposto para a decretação da falência, a insolvência deve ser considerada em um sentido jurídico, que vai além do técnico/econômico. Nesse sentido, os casos específicos em que a insolvência se caracteriza são definidos pela própria legislação falimentar, e não propriamente pelo estado patrimonial da empresa.

Isso significa que, demonstrada a ocorrência de quaisquer das situações previstas em lei, a falência poderá ser decretada, ainda que a empresa conte com um ativo superior ao passivo. Em contrapartida, se não verificada a ocorrência de nenhuma situação legal, não cabe decretação de falência, mesmo que exista a insolvência econômica. Em virtude disso, é comum que autores se refiram a essa insolvência como uma insolvência presumida, mas nem sempre real.

De um modo geral, a doutrina aponta que podemos reconhecer a existência de quatro sistemas de determinação de insolvência. São eles: o sistema do estado patrimonial deficitário, o sistema da cessação de pagamentos, o sistema da impontualidade injustificada e o sistema da enumeração legal.

O primeiro sistema – o do estado patrimonial deficitário – exige a demonstração da insolvência econômica do devedor, sendo o único, dentre os quatro sistemas, que se preocupa em averiguar o estado patrimonial real do devedor, enquanto os demais se baseiam tão somente em presunções. Nesse sentido, a constatação da insuficiência do ativo do empresário para saldar o seu passivo seria o fato caracterizador da insolvência.

Contudo, não obstante seja o sistema mais preciso e seguro para aferir o real estado patrimonial do devedor, é bastante criticado pela doutrina em razão da lentidão que traz ao processo por causa da necessidade de adoção de procedimentos contábeis para proceder com a análise do patrimônio do empresário, bem como pelo fato de que, em alguns casos, pode acarretar a decretação da falência de um empresário que tinha condições de se recuperar, ainda que estivesse temporariamente insolvente.

O segundo sistema – cessação de pagamentos – entende que a insolvência se caracteriza quando o devedor ara de efetuar o pagamento de suas dívidas. Aqui se exige uma inadimplência reiterada. Difere do terceiro sistema – impontualidade injustificada -, segundo o qual o devedor é considerado juridicamente insolvente quando deixa de pagar uma determinada obrigação líquida em seu vencimento, de forma injustificada, isto é, sem relevante razão de direito. Nesse caso, basta, então, a inadimplência de uma única dívida.

Por fim, o quarto sistema – enumeração legal – a insolvência se caracteriza pela prática de determinados atos previstos de forma taxativa na legislação falimentar, conhecidos como atos de falência, ainda que o devedor não esteja sequer impontual quanto ao pagamento de suas dívidas.

O Decreto-lei 7.661/1945 – antiga legislação falimentar brasileira – adotava os sistemas da impontualidade e da enumeração legal para a caracterização da insolvência do devedor. A sistemática foi mantida pela Lei 11.101/2005, em seu art. 94, cujas hipóteses trazidas serão analisadas adiante.

3.1 Impontualidade injustificada

A impontualidade injustificada está prevista no inciso I do art. 94 da Lei 11.101/2005. De acordo com Ricardo Negrão (2012, p. 265), nesse sistema

[...] basta a demonstração, por instrumento de protesto, do não pagamento, na data de vencimento, de obrigação líquida constante de um ou de mais de um título executivo, cuja soma ultrapasse, na data do pedido de falência, o equivalente a 40 salários mínimos, sem que exista razão relevante para a inadimplência.

Aqui, chamamos a atenção para duas exigências trazidas pelo dispositivo. A primeira delas diz respeito à necessidade de que a dívida seja superior a 40 salários mínimos, o que constitui novidade em relação à legislação anterior. As dívidas de valor inferior devem, portanto, ser reclamadas por via de execução individual. De acordo com André Luiz Santa Cruz Ramos (2016, p. 708),

Nesse ponto, fica patente a tentativa do legislador de desestimular o uso da ação de falência como meio de cobrança de dívidas de pequeno valor, visto que elas se prestam a presumir, na verdade, uma situação de iliquidez do devedor (crise temporária, passageira), mas não de insolvência (crise mais séria). Segundo o legislador, dívidas menores, de até quarenta salários mínimos, não são, por si sós, suficientes para caracterizar uma situação de inviabilidade da empresa, devendo o credor, nesse caso, tentar o recebimento de seu crédito pela via executiva ordinária. 

Não obstante a lei faça tal exigência, o parágrafo único do art. 94 permite aos credores se reunirem para somar seus créditos, a fim de que a soma ultrapasse tal valor e lhes permita pedir, em litisconsórcio, a falência do devedor.

A segunda exigência trata-se de critério formal: é a necessidade de protesto do título que embasa a dívida. O § 3º do mesmo art. 94 estabelece que, em se tratando de hipótese de pedido de falência com base na impontualidade injustificada, “o pedido deve ser instruído com os títulos executivos na forma do parágrafo único do art. 9º desta Lei, acompanhados, em qualquer caso, dos respectivos instrumentos de protesto para fim falimentar nos termos da legislação específica”.

Dessa forma, o pedido com base no inciso I do art. 94 será sempre acompanhado do título de crédito, no original ou por cópias autenticadas se estiverem juntados em outro processo (tal como determina o parágrafo único do art. 9º da Lei 11.101/2005 citado no dispositivo supratranscrito), da certidão de protesto que indique a impontualidade e, se for o caso, dos documentos necessários para legitimar a ação do autor.

Qualquer dos títulos que legitimem a execução individual (título executivo judicial ou extrajudicial), de acordo com a legislação processual civil, pode servir de base à obrigação a que se refere a impontualidade caracterizadora da falência, desde que mantenha sua liquidez, certeza e exigibilidade e desde que devidamente protestado.

O protesto do título é a única forma de demonstrar a impontualidade injustificada que pode servir de base ao pedido de falência, não sendo admitido nenhum outro meio de prova para comprovação do inadimplemento do devedor. Na definição legal (art. 1º da Lei n. 9.492/97), o ato de protesto “é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em título e outros documentos de dívida”. Se for título de crédito (letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédula de crédito etc), o protesto cambial basta à caracterização da impontualidade, ainda que ultrapassado o prazo fixado na legislação cambial para a conservação do direito de regresso contra codevedores.

Por outro lado, não se tratando se título sujeito a protesto cambial (sentença judicial, verificação de contas, certidão de dívida ativa etc), o protesto especial falimentar será tirado, obedecendo o instrumento às anotações do tipo e do motivo do protesto, conforme dispõe o art. 23 da Lei n. 9.492/97[4]. Ainda sobre o protesto do título, dispõe a Súmula 361 do STJ que “a notificação do protesto, para requerimento de falência da empresa devedora, exige a identificação da pessoa que a recebeu”.

Ademais, não se pode esquecer que, para que sirva de base ao pedido de falência, a impontualidade deve ser injustificada, isto é, deve inexistir relevante razão para o inadimplemento da obrigação líquida. Se justificável a omissão do devedor em realizar o pagamento, não cabe o requerimento da falência com base nessa hipótese. A própria Lei de Falências, em seu art. 96, sugere um elenco de hipóteses de impontualidade justificada, que podem ser alegadas pelo devedor na fase de contestação ao pedido. Dentre essas hipóteses, encontram-se a falsidade do título (inciso I), prescrição (inciso II), nulidade da obrigação ou de título (inciso III), pagamento da dívida (inciso IV) ou qualquer outro fato que extinga ou suspenda obrigação ou não legitime a cobrança de título (inciso V).

Vale salientar, por fim, que não se exige que os créditos que dão origem ao pedido falimentar tenham origem mercantil. O pedido falimentar pode decorrer de qualquer causa obrigacional, havendo, contudo, restrições a determinados tipos de credores, no que se refere à iniciativa para o requerimento ou para a habilitação no concurso universal. É o que ocorre com os credores por obrigações a título gratuito, que, não possuindo título exigível na falência (art. 5º, I, Lei 11.101/2005[5]), não podem, por conseguinte, requerê-la (art. 94, § 2, Lei 11.101/2005º[6]).

3.2 Execução frustrada

O inciso II do art. 94 traz a execução frustrada como possível hipótese ensejadora de pedido de falência. Esta se caracteriza pela tríplice omissão do devedor quando citado em processo executivo, o que significa que o devedor executado não paga, não deposita nem nomeia bens à penhora no prazo legal. De acordo com o § 4º do art. 94, nessa hipótese “o pedido de falência será instruído com certidão expedida pelo juízo em que se processa a execução”. Basta, então, que o credor requeira certidão junta à vara em que a execução tramita na qual conste que o devedor não pagou, não depositou o montante da dívida nem nomeou bens a penhora. De posse dessa certidão, está legitimado a ingressar em juízo com a ação falimentar.

Vale salientar que, nesse caso, a doutrina majoritariamente considera que a ação de falência não constitui mero incidente do processo de execução, mas sim processo autônomo, requerido em ação própria e no foro competente. Nesse sentido, a execução individual deve ser suspensa ou mesmo extinta.

Para esse caso, a lei não exige protesto do título em que se baseia a execução, nem valor mínimo para a dívida, sendo suficiente a comprovação da tríplice omissão.

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3.3 Atos de falência

O inciso III do art. 94 traz uma série de condutas que, uma vez praticadas pelo devedor, podem também ensejar o requerimento de sua falência. O § 5º do mesmo artigo assevera que, quando baseado em quaisquer das hipóteses desse inciso, “o pedido de falência descreverá os fatos que a caracterizam, juntando-se as provas que houver e especificando-se as que serão produzidas”.

A alínea “a” traz como ato de falência a liquidação precipitada e o emprego de meios ruinosos ou fraudulentos para realizar pagamentos. A primeira hipótese implica na venda, sem observância das regras referentes à dissolução, dos bens do ativo não circulante necessários à exploração da atividade, sem reposição. Já a segunda hipótese envolve atos como, por exemplo, a contratação sucessiva de empréstimos a juros exorbitantes.

A alínea “b” estabelece como ato de falência a realização ou tentativa de realização de negócios simulados ou de alienação total ou parcial de ativo a terceiro, realizados com o objetivo de retardar pagamentos ou fraudar credores. Nessas hipóteses, o devedor pode estar procurando se livrar de bens que futuramente poderiam ser arrecadados em execução concursal.

Na alínea “c” encontra-se a hipótese de alienação irregular de estabelecimento. O Código Civil é claro ao estabelecer, em seu art. 1.145, que, no trespasse, o alienante deve guardar bens suficientes para solver seu passivo ou, se não, notificar os credores para que estes consintam com a venda, uma vez que o estabelecimento representa, a rigor, a mais importante garantia dos credores.   

A alínea “d” trata da transferência simulada do principal estabelecimento. Se motivado pela racionalidade empresarial, o empresário ou sociedade empresária tem plena liberdade para transferir seu principal estabelecimento. No entanto, transferências não empresarialmente justificáveis, em que é possível verificar o objetivo de fraudar a lei, frustrar a fiscalização ou prejudicar credores, caracterizam-se como atos de falência.

A alínea “e” dispõe sobre a dação ou reforço de garantia real que se opera posteriormente à constituição do crédito. Se a dívida já foi contraída, o ato de dar ou reforçar uma garantia sobre ela, sem qualquer justificativa para tal, perde a sua utilidade prática. Tal ato vai de encontro ao princípio da par condicio creditorum, atribuindo condição mais favorável a quem já é credor, uma vez que, na hipótese de decretação de falência, o titular de garantia real tem preferência sobre os credores não garantidos

A alínea “f” prevê a hipótese de abandono do estabelecimento empresarial. Se o devedor constitui procurador com poderes ou recursos suficientes para responder pelas obrigações sócias, contudo, não caracteriza-se o ato de falência.

Por fim, a alínea “g” fala do descumprimento de obrigação assumida no plano de recuperação judicial. A recuperação judicial dá ao devedor a chance de superar a crise em que se encontra, mediante o estrito cumprimento das obrigações assumidas no plano de recuperação aprovado. Se não o faz, não resta outra alternativa senão a decretação de sua falência.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SENCADES, Larissa. Pressupostos caracterizadores do estado de falência: importância, definição e instrumentos de comprovação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5372, 17 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58607. Acesso em: 2 mai. 2024.

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