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Constitucionalismo e democracia: eleições diretas ou indiretas?

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04/07/2017 às 10:30
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O artigo realiza breve estudo sobre as opções que o ordenamento jurídico brasileiro apresenta para a crise de legitimidade que assombra o Executivo brasileiro.

SUMÁRIO: Introdução; 1. As Propostas de Emenda Constitucional nº 67/2016, 227/2016 e 21/2015 e as controvérsias respectivas; 2. Os conceitos de democracia e constitucionalismo; Considerações Finais; Referências Bibliográficas.

Resumo: O artigo realiza breve estudo sobre as opções que o ordenamento jurídico brasileiro apresenta para a crise de legitimidade que assombra o Executivo brasileiro com mais vigor, desde a divulgação pela imprensa de áudios entre o Presidente Michel Temer e  o proprietário da empresa JBS Joesley Batista, com supostos indícios de práticas corruptivas. Certo setor social indica que a melhor saída da crise instaurada é o resgate da soberania popular através da convocação de eleições diretas, com base no artigo 224, do Código Eleitoral. Outra parcela, por sua vez, visualiza o artigo 81, da Constituição Federal como óbice às eleições diretas. O artigo busca reunir o máximo de informações para, sob os aspectos do constitucionalismo e concepções democráticas, viabilizar o posicionamento do leitor e estimular a sua participação política.

Palavras-Chave: Democracia; Constitucionalismo; Eleições; Legitimidade; Crise.


INTRODUÇÃO

O artigo objetiva analisar, sob os vieses do constitucionalismo e da democracia, as opções das eleições na forma direta ou indireta no cenário político brasileiro. Para tanto, imprescindível a análise dos dispositivos normativos envolvidos, à luz da teleologia constitucional.

Nesse passo, o debate instaurou-se desde o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff e o recrudescimento da crise econômica brasileira, abrindo janela de oportunidades para a contenção de gastos por medidas como a Emenda Constitucional nº 95. Paralelamente, o atual Governo apoia medidas impopulares como a Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência, em busca de recuperação da capacidade de investimento nos direitos sociais pelo Estado.

Essas condições inauguraram uma conjuntura de enfraquecimento do apoio da imprensa e do congresso ao governo em exercício, reforçada pela divulgação das delações dos proprietários da JBS. Bem por isso, a OAB, protocolou o pedido de abertura de processo por crime de responsabilidade na Câmara dos Deputados em face do Presidente Michel Temer. Assim, deparamo-nos com uma plausível e iminente vacância da Presidência.

Assim, a primeira parte discorre acerca do andamento da PEC das “Diretas Já”, cuja base de apoio tem se acentuado. Vale destacar que a premente definição do procedimento para o preenchimento de um possível vácuo de poder iminente, sob os auspícios da Constituição, tem levado os juristas, os acadêmicos e o próprio povo à discussão de possíveis alternativas.

Convém não olvidar, nesse passo, que se almeja um resgate da presença popular no processo constituinte, com um olhar no direito fundamental de relegitimação das instituições de representação. Sendo assim, o farol interpretativo das soluções deverá mirar um projeto civilizatório que revigore as potencialidades democráticas, sem ganhar ares falaciosos, oportunistas e alienados.

Com efeito, descortina-se um panorama de apatia política, motivo pelo qual é de bom grado que o povo assuma as rédeas da crise política, de sorte a evitar o acirramento de contradições. Contudo, a canalização da soberania popular pode se dar por um grande espectro de instrumentos jurídicos viáveis.

Por fim, sem passar pela proposta de convocação de nova assembleia nacional constituinte, a segunda parte busca contribuir para o aperfeiçoamento da governabilidade e das virtudes republicanas, com o fito de atenuar o descrédito que assombra o corpo político em exercício. Afinal, esse breve trabalho aborda as concepções de democracia e constitucionalismo pertinentes ao tema, com vistas a possibilitar que o leitor reúna informações suficientes que partejam o debate.


As Propostas de Emenda Constitucional nº 67/2016, 227/2016 e 21/2015 e as controvérsias respectivas

A PEC 227/2016, de autoria do Deputado Miro Teixeira, torna a hipótese de eleição indireta adstrita ao último semestre do mandato, no caso de vacância do cargo, destoando da atual redação do art. 81, § 1º[2], da Constituição Federal. Contudo, em um contexto de crise de representatividade, sobreleva contemplar possíveis saídas para o atual quadro da Presidência. Bem por isso, a PEC nº 227/16 tem por finalidade regulamentar o procedimento para complementar o mandato em curso em caso de vacância.

Ainda, a PEC 67/2016, apresentada pelo senador Reguffe, veicula proposta similar, destoando na ampliação da hipótese de eleição indireta ao último ano do mandato, e não apenas aos últimos seis meses. O senador explicitou que a PEC 67/2016 aspira à devolução ao povo brasileiro do direito de escolha de candidato à Presidência.

Visto isso, afigura-se deveras controverso se o princípio da anterioridade eleitoral fixado no art. 16, da CF[3] se coloca como anteparo à aplicação da PEC das “Diretas já” ao mandato corrente. Nesse tom, o STF (ADI 3685) outorga status de cláusula de entrincheiramento ao referido princípio. Todavia, convém salientar que a Corte Suprema também entendeu que esse princípio se restringe aos processos eleitorais ordinários, diversos das eleições em virtude de dupla vacância no Poder Executivo.

De todo modo, a mens legis do art. 16 consubstancia a tentativa de resguardar a soberania popular de manipulações eleitorais que viciem o exercício livre e informado da vontade política do povo. Sendo assim, afigura-se um contrassenso pensar que tanto a PEC 227 quanto a PEC 67 possam funcionar como instrumento de deturpação da vontade popular, na medida em que a convocação de eleições diretas ambiciona justamente o oposto.

Estabelecidas essas premissas, exsurge a polêmica sobre a constitucionalidade do artigo 224 do Código Eleitoral, parágrafo quarto[4], acrescido pelo art. 4º da Lei nº 13.165/2015, objeto da ADI nº 5525/DF, ajuizada pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot, em maio de 2016. Na exordial, argumenta-se que, conquanto o art. 81 remeta os contornos à lei, não é dado a esta liberdade de conformação para estabelecer prazo diferente do preconizado na Constituição para eleições indiretas, e sim apenas pormenores procedimentais na realização da eleição.

Em contrapartida, há autores[5] que sustentam a aplicabilidade desse dispositivo apenas para os casos de cassação do diploma ou de perda do mandato ordenados pela Justiça Eleitoral. Em assim sendo, a hipótese de incidência do artigo 81 da Constituição circunscreve-se aos casos de dupla vacância posterior a uma eleição legítima, ao passo que o artigo 224, § 4º do Código Eleitoral trata de eleições viciadas. De qualquer maneira, a lei goza de presunção de constitucionalidade, não tendo sido suspensa sua eficácia até o encerramento do presente trabalho.

Nesse diapasão, crucial apreender que as contigências-gatilho da sucessão, no bojo de uma eleição legítima, tais como renúncia, morte ou impeachment do presidente e do vice-presidente diferem-se da perda de mandato decretada pela Justiça Eleitoral, por força da ilegitimidade no processo eleitoral. Isso porque a primeira situação relaciona-se com o Direito Constitucional, ao mesmo tempo em que esta última se atrela ao Direito Eleitoral, pois almeja desinvestir do cargo aqueles eleitos irregularmente, por intermédio da anulação das eleições originárias.

Em que pese essa intelecção, para muitos, soa desarrazoado essa diferenciação, uma vez que em ambas as hipóteses há vacância. De mais a mais, o art. 81 não teria feito ressalvas nesse sentido. Essa querela doutrinária reacendeu, em maio de 2017, caso mais recente aconteceu há bem pouco tempo, em maio de 2017, quando o TSE cassou os diplomas do governador e do vice-governador do Amazonas por captação ilícita de sufrágio, designando nova eleição na forma direta.

Posteriormente, o TSE regulamentou o procedimento para as eleições diretas, nos termos do § 3º do art. 224 do Código Eleitoral, com redação dada pela Lei nº 13.65/15, o que foi objeto de críticas aguçadas. De um lado, a Assembleia Legislativa do Amazonas[6] repreendeu a decisão do TSE, pois, em seu olhar, malferiu o princípio federativo, com esteio em regra não plasmada na legislação estadual.

A mais, a Assembleia glosou que mais consentâneo com o pacto federativo é o próprio ente parcial conduzir esse processo de realinhamento do seu Executivo, máxime diante da inexistência de obrigatoriedade de reprodução obrigatória do art. 81 da Lei Maior. À vista disso, sendo inaplicável o princípio da simetria ao dispositivo mencionado, a rigor, o tema estaria inserto na autonomia dos entes federativos, fora da incidência do art. 224, § 4º do Código Eleitoral. A Corte Suprema, nada obstante, acolheu o raciocínio feito pelo TSE e manteve a decisão, já que o art. 81 da Carta Magna se refere apenas às eleições presidenciais, o que leva à aplicação do Código Eleitoral.

Ao fim, impõe-se enfatizar que o art. 224, § 3º, do Diploma Eleitoral determina a realização de novas eleições, no caso de invalidação dos votos, independentemente do número de votos dados ao vencedor do cargo majoritário[7]. Assim, o argumento da inconstitucionalidade do art. 224 se concentrou na violação da autonomia administrativa e do princípio do máximo aproveitamento de votos.

No âmbito federal, essa disputa perdeu fôlego, com o novel julgamento pela improcedência da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) nº 194358 pelo TSE. A expectativa de certos setores sociais era que, devido ao princípio da indivisibilidade da chapa majoritária, contemplado no art. 91[8], do Código Eleitoral (CE), a procedência da ação implicasse na vacância da presidência e convocação de eleições diretas, com supedâneo no art. 224, § 4º, do CE.

Em verdade, desde 2014, o Diretório Nacional do PSDB e a Coligação Muda Brasil[9] ajuizaram várias ações com o mesmo objeto e pedido, e.g., a AIJE nº 154781, a AIJE nº 194358, a Representação nº 846 e a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) nº 761. Essa alternativa não prosperou, levando a apreciação de novas possíveis soluções no pano de fundo constitucional hodierno.

Na esteira, conquanto eleito majoritariamente por força da unicidade de chapa, argumenta-se, de um lado, que o Presidente Michel Temer – ex-Vice-Presidente – não possui legitimidade democrática referendado pelos votos nas urnas. Assim, objetivam romper com a continuidade do governo, pugnando por eleições diretas[10], desde a divulgação dos áudios entre Joesley Batista e o Presidente que, em tese, implicam estes em práticas de corrupção.

Assim, por esse ângulo[11],[12],[13],[14],[15], o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff, identificado por essa parcela social como golpe desconstituinte[16], representou a ruptura com a soberania popular, engendrando o panorama de instabilidade política que hoje se vivencia. Nesse bojo, opções como renúncia, impeachment e a cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral, esta última inviabilizada pela recente absolvição das acusações, escurecem a previsão acurada de uma provável vacância sucessiva da Presidência.

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Por conseguinte, defendem as eleições diretas, viabilizadas por intermédio de interpretação extensiva do artigo 4º da Lei nº 13.165/2015 ou pela PEC 227/2016 ou 67/2016. Ainda, afirmam que há aspiração popular por novas eleições diretas como a melhor solução desse impasse institucional. Nesse diapasão, buscam uma reconciliação entre os campos jurídico e político, com fito de alcançar um constitucionalismo democrático consentâneo com a soberania popular[17].

Nesse viés, Bercovici[18] dispõe que

tentar separar o conceito de constituição do conceito de poder constituinte significa excluir a origem popular da validade da constituição e esta validade é uma questão política, não exclusivamente jurídica

De outro lado, outro grupo[19] entende que a aprovação da PEC 227/2016 ou  da PEC 67/2016 concretizaria um desvio de poder, visto que sua natureza casuística determinaria sua inconstitucionalidade, transmudando-se em golpe.

A par disso, grassa cizânia sobre o procedimento da eleição indireta entre as casas legislativas. Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 5821/2013, em curso desde 2013, tenciona estruturar o trâmite da eleição indireta. Contudo, o Senado defende votações em separado, mediante aplicação do ferramental da Lei 4.321, de 7 de abril de 1964. De encontro a essa posição, a Câmara agasalha a tese da imprescindibilidade de reunião unicameral para eleição, porque a Lei 4.321 não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988 e o artigo 57[20], parágrafo 3º não é numerus clausus.

Por fim, importante registrar que a PEC 21/2015 intenciona implantar o instituto do recall no Direito brasileiro. Nesse trilhar, a proposta, em sua redação inicial, adiciona ao artigo 14 da Constituição os incisos IV e V, consagrando o direito de revogação de mandato de membros dos poderes Executivo e Legislativo, bem como o direito de veto popular[21]. Contudo, o parágrafo doze da minuta de alteração exige o transcurso de dois anos da data da posse para o uso do recall.

Essa ampliação dos instrumentos da democracia semidireta ou participativa torna despicienda a configuração de crime de responsabilidade, bastando que ocorra o arrependimento do eleitorado em face e.g. da incompetência ou da traição em cotejo com a base ideológica que alçou o mandatário ao cargo, ressuscitando certa margem do mandato imperativo. O manejo do recall, portanto, vivifica a prestação de contas e a responsividade.


Os conceitos de democracia e constitucionalismo

Feitos esses esclarecimentos no tópico anterior, imperiosa a análise das questões levantadas sob as luzes conceptuais de democracia e constitucionalismo. Prefacialmente, relevante rememorar as lições de Rafael Vega Pasquín[22] no sentido de harmonizar o substrato formal e final do Direito para salvaguardar sua unidade e coerência.

Noutro giro, Chantal Mouffe[23] propõe o modelo agonístico de democracia em substituição ao modelo deliberativo, diante do deslocamento do consenso racional para o reconhecimento de um pluralismo conflitual. Nessa perspectiva, a recusa da natureza conflituosa do consenso, realizada com base em hegemonias provisórias, inaugura o risco de apatia política e desestímulo à participação política. A seu ver, a democracia deliberativa redundaria em naturalização das relações de poder, perdendo vista da multilateralidade de atores.

Nesse sentido, a autora alvitra o pluralismo agonístico, dentro do qual os adversários do jogo democrático não são vistos como inimigos. Isso porque o pilar do modelo agonístico reside em um imperativo bilateral-atributivo, qual seja: o dever de tolerância democrática e o direito de defesa de ideias. Extrai-se[24], nesse sentido, que

Introduzir a categoria do “adversário” requer tornar complexa a noção de antagonismo e a distinção de duas formas diferentes mediante as quais ela pode emergir: o antagonismo propriamente dito e o agonismo. O antagonismo é a luta entre inimigos, enquanto o agonismo representa a luta entre adversários. Podemos, portanto, reformular nosso problema dizendo que, desde a perspectiva do “pluralismo agonístico”, o propósito da política democrática é transformar antagonismo em agonismo. Isso demanda oferecer canais por meio dos quais às paixões coletivas serão dados mecanismos de expressarem-se sobre questões que, ainda que permitindo possibilidade suficiente de identificação, não construirão o opositor como inimigo, mas como adversário. Uma diferença importante em relação ao modelo da democracia deliberativa é que, para o “pluralismo agonístico”, a tarefa primordial da política democrática não é eliminar as paixões da esfera do público, de modo a tornar possível um consenso racional, mas mobilizar tais paixões em prol de desígnios democráticos.

Uma das chaves para a tese do pluralismo agonístico é que, longe de pôr em risco a democracia, a confrontação agonística é, de fato, sua condição de existência. A especificidade da democracia moderna reside no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi-lo pela imposição de uma ordem autoritária. Rompendo com a representação simbólica da sociedade como um corpo orgânico – que era característica do modo holístico de organização social –, uma sociedade democrática reconhece o pluralismo de valores, o “desencantamento do mundo” diagnosticado por Max Weber e os conflitos inevitáveis que dele decorrem.

Oportuno sublinhar também a concepção positiva de democracia econômica de Anthony Downs[25]. Segundo ele, a democracia é uma disputa de racionalidade política em que coexistem partidos de oposição, com a finalidade de alinhavar apoio político e manter-se no poder. Apesar disso, há dois limites: o partido não cometerá atos de ilegalidade, tampouco prejudicará membros da equipe. Nessa senda, o governo é democrático[26] quando presente as seguintes condições:

1. Um único partido (ou coalizão de partidos) é escolhido por eleição popular para gerir o aparato de governo. 2. Essas eleições são realizadas dentro de intervalos periódicos, cuja duração não pode ser alterada pelo partido no poder agindo sozinho. 3. Todos os adultos que são residentes permanentes da sociedade, são normais e agem de acordo com as leis da terra são qualificados para votar em cada uma dessas eleições. 4. Cada eleitor pode depositar na urna um e apenas um voto em cada eleição. 5. Qualquer partido (ou coalizão) que receba o apoio de uma maioria dos eleitores tem o direito de assumir os poderes de governo até a próxima eleição. 6. Os partidos perdedores numa eleição não podem jamais tentar, por força ou qualquer meio ilegal, impedir o partido vencedor (ou partidos) de tomar posse. 7. O partido no poder nunca tenta restringir as atividades políticas de quaisquer cidadãos ou outros partidos, contanto que eles não façam qualquer tentativa de depor o governo pela força. 8. Há dois ou mais partidos competindo pelo controle do aparato de governo em toda eleição.

Ressalto o quanto exposto, cabe aduzir noções gerais da visão realista schumpteriana de democracia[27],[28], na qual reina a heterogeneidade de valores na sociedade de massa, fato este que se revela como empecilho à determinação de um bem comum válido a todos, à moda do parodoxo schumpeteriano[29]. Na esteira, Fernando Quintana[30], em análise do referido autor, traz à baila que a espetacularização de um suposto bem comum único pode levar a “(...) autocratização da política em que a vontade coletiva, a soberania popular, funciona miticamente para justificar o poder”.

Dito isso, mister interpretar os fatos narrados no item 1 com cautela, com o propósito de evitar o uso de percepção particular da soberania popular como panaceia da crise de legitimidade que se coloca hodiernamente. Isso porque, bem colocados os argumentos, a soberania popular poderá vir a ser utilizada como reforço das duas visões exibidas no item 1 deste breve ensaio.

Além disso, sem nos filiarmos a uma corrente ou outra, acrescenta-se ao debate que uma visão agonística da democracia corrobora a ideia de que haja uma tolerância no contraste de ideias no jogo democrático, reconhecendo que não há um consenso racional na arena pública no momento. Esse olhar serve de anteparo à naturalização das hegemonias e relações de poder transitórias em exercício, em virtude do confronto pluralista. Tomado emprestado esse entendimento, a nosso ver, a simples previsão do art. 81, da Lei Maior não se revela suficiente para frear o caminho das eleições diretas.

Entretanto, em nossa perspectiva dos escritos de Downs e Schumpter, a periodicidade das eleições deve ser respeitada, assim como não se coaduna com a democracia a deposição à força do governo, podendo expandir a exegese. Infere-se, pois, que as inquietudes acerca das escolhas políticas do governo atual como as indigitadas reformas trabalhista e previdenciária, a título de exemplo, devem ser manifestadas na próxima eleição pelos meandros democráticos instituídos na ordem jurídica, razão pela qual a PEC 21/2015 é bem-vinda, já que desmistifica o papel da soberania popular em relação aos entraves institucionais ora versados.

De outro prisma, espera-se que o Judiciário, jungido à cultura do self-restraint, não seja convocado a se pronunciar sobre o assunto, por lhe faltar a legitimidade democrática mais intensa. Assim, o debate está imbricado com o exercício do poder soberano pelo povo, motivo pelo qual deflui do espírito da democracia que a solução dada a esse tipo de crise de legitimidade, que também afeta a própria Corte Constitucional, siga a saída dada pelas pressões e interconexões entre o povo e o Legislativo.

Nessa toada, Waldron[31] se põe contra fenômeno da Supremocracia, alicerçada em parte na teoria da living constituion ou da living tree. Em outras palavras, o autor apresenta razões contrárias à transformação do Judiciário em uma soberania hobbesiana, além do limite do Direito, em substituição ao poder constituinte, titularizado pelo povo. Sob ótica similar, Colón-Ríos[32] inclina-se à concepção voluntária da autoridade da Constituição, na vertente estrutura revisional básica fraca, pois este modelo confere ao povo maior margem de manobra no exercício da soberania popular.

Fincado nessas premissas, em aspecto ancilar, curial que se impeça a formação de um modelo supraconstitucional de normas, erigido pelo Judiciário, sob pena de inverter a estrutura piramidal, legado de Hans Kelsen[33], e elevar este Poder ao ápice da Pirâmide, acima da própria Lei Maior. Essas considerações relacionam-se diretamente com um possível manejo das ações concentradas contra as Propostas de Emenda à Constituição levantadas no item 1 deste trabalho.

Nesse sentido, o STF, com supedâneo em uma interpretação não unívoca do art. 16, da CF, poderia frustrar os objetivos de aplicação das PEC’s nº 67/2016, 227/2016 e 21/2015 ao cenário de crise que se apresenta no momento, por violação ao princípio da anterioridade eleitoral. Em assim procedendo, em nossa interpretação de Colón-Ríos, o Judiciário estaria erguendo-se como instituição hobbesiana em desfavor da soberania popular.

Por tudo o quanto exposto, importa transliterar o escólio de Celso de Alburquerque Silva[34]

Em toda e qualquer discussão, há certas verdades primas de onde dependem todos os argumentos seguintes; a evidência desses princípios, anterior a toda reflexão, necessita, decerto modo, do assentimento da razão; e, quando eles não produzem este efeito, ou é por falta de percepção, ou por influência de algum interesse, paixão ou preconceito qualquer. (...) E da mesma natureza são esses princípios de interpretação, que não é lícito ao intérprete distinguir onde o formulador da regra não o fez; que todo poder deve seguir a razão de seu objeto; que na determinação maior se inclui a menor, que onde a Constituição quis os fins necessariamente outorgou os meios e que na interpretação dos direitos fundamentais deve-se escolher o sentido que lhes dê a maior eficácia possível.

Tomado isso em consideração, sobreleva entender os meios de contenção judicial diante da parêmia “quem vigia os vigilantes?”[35]. A esse questionamento, Sarmento[36] responde que se adote a teoria de diálogos constitucionais, de sorte a não conferir a nenhum dos Poderes da República a prerrogativa de dar a “última palavra” sobre o sentido da Constituição, deixando aberto sempre os canais democráticos para revisitar soluções outrora decididas.

Nesse contexto, insere-se a temática do efeito backlash, isto é, a reação contrária do povo às decisões controversas do Judiciário, forçando um realinhamento da interpretação em consonância com o estado espiritual-democrático do povo. Afinal, como adverte Karl Schmitt citado por Sarmento[37], a abertura e a fluidez do texto constitucional, em última instância, imbrica o juízo de constitucionalidade a um juízo político.

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Sobre o autor
Lucas Medeiros Gomes

Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Especialista em Regulação na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público Federal. Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Lucas Medeiros. Constitucionalismo e democracia: eleições diretas ou indiretas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5116, 4 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58793. Acesso em: 23 abr. 2024.

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