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Rafael Braga

02/11/2017 às 15:00
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Neste momento em que a sociedade convive com seu patrimonialismo criminoso exposto, diante de tantas investigações de seus agentes políticos, é preciso meditar sobre o caso de Rafael Braga: afrodescendente, pobre e "favelado".

Veja-se o que disse Lígia Batista (Rafael Braga e a seletividade do sistema de justiça criminal): 

"O rapaz jovem, negro, de família pobre, catador de latinhas, que sequer participava daquele protesto, foi preso por portar duas pequenas garrafas de produtos de limpeza, considerados como potenciais aparatos explosivos pela polícia, pelo Ministério Público e pela Justiça. Mesmo com a existência de um laudo pericial que atestou a impossibilidade daqueles produtos serem utilizados como bombas, o sistema de justiça criminal preferiu seguir pelo já conhecido caminho da seletividade penal, da criminalização da pobreza e do racismo.

Não à toa, Rafael foi o único condenado no contexto das manifestações, ainda que não fosse manifestante e não tivesse praticado crime algum. Sentenciado a cinco anos de prisão, Rafael iniciou o cumprimento de sua pena em regime fechado, e, com o tempo, pôde dar alguns passos em direção à liberdade. Em setembro de 2015, foi autorizado a trabalhar fora da prisão e a cumprir pena domiciliar, usando apenas uma tornozeleira eletrônica.

Contudo, em janeiro desse ano, enquanto ia comprar pão, foi abordado pela polícia e preso – agora com base em um flagrante forjado, de acordo com testemunhas. A nova acusação de tráfico de drogas e associação ao tráfico não se embasa em provas materiais, mas apenas no relato de um policial militar. Por conta disso, Rafael foi novamente levado ao cárcere e hoje aguarda um novo julgamento.".

Segundo testemunhas, Rafael Braga teria sido vítima de flagrante forjado. 

O flagrante forjado é a expressão do arbítrio. 

O  flagrante forjado é aquele totalmente artificial, pois composto por terceiros.

É também chamado de flagrante maquinado ou urdido. Constitui-se uma modalidade ilícita de flagrante, totalmente artificial, tendo em vista ser integralmente comporto por terceiros. Nesse caso, o agente forjador responde pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339, CP) e, sendo agente público, também por abuso de autoridade (Lei nº 4.898/65).

O caso narrado de nossa crônica policial determina a necessidade de que  precisamos desnaturalizar a raça como um simples mecanismo classificatório, que pouco traduz a realidade social, para compreendê-la não só como uma marca da espoliação e do despojo resultantes da colonialidade, mas também como um instrumento que rompe concepções de uma mestiçagem politicamente inapta ao enfrentamento das desigualdades.

Jovem afrodescendente, pobre, "favelado" e sem trabalho formal, o ex-catador seria a regra, e não a exceção. Tal como ele, 67,1% dos presos no Brasil são afrodescendentes – representados na soma de 18,1% afrodescendentes e 49% pardos –, não tiveram acesso à educação formal para além da alfabetização (52,9% não completaram o ensino fundamental) e pertencem à população empobrecida, de acordo com o diagnóstico do sistema carcerário publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Essa característica da população carcerária chama atenção para uma das principais facetas do sistema penal: sua seletividade. 

A defesa destaca, ainda, duas características comuns das duas prisões de Rafael: nos dois casos, ele foi preso apenas com base na palavra dos policiais — algo propiciado pela súmula 70 no estado do Rio de Janeiro — e adiciona um trecho do processo publicado pelo TJRJ no último dia 20 de abril: “a sua personalidade voltada para a criminalidade”. 

Trago um caso emblemático para os estudiosos de criminologia.

Preso desde a grande manifestação de 2013 no Rio de Janeiro, o catador de latas Rafael Braga Vieira, de 27 anos, que, desde 1º de dezembro cumpria sua pena em regime aberto, usando uma tornozeleira eletrônica, foi detido por policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da comunidade Vila Cruzeiro, na Penha, zona norte do Rio, onde vive com sua família. Rafael se dirigia a uma padaria, por volta das nove horas da manhã de hoje, quando cinco PMs o abordaram com violência na rua conhecida como “Sem Terra”, próxima à casa de sua mãe.

“Os policiais já chegaram xingando, pondo a mão no peito dele, dizendo que ele era bandido, para ele falar logo que era bandido, e ele dizia que não, que era trabalhador”, conta o advogado Lucas Sada, do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que atua em defesa de Rafael desde dezembro de 2013. Segundo ele, os agentes o conduziram então a um beco, onde o agrediram com socos no estômago, apontaram-lhe um fuzil e o ameaçaram de diversas formas para que ele fornecesse informações sobre o tráfico local, a despeito de Rafael alegar repetidas vezes que nada sabia.

“Ameaçaram-no de estupro, dizendo ‘fala se não a gente vai te comer!’, e que iam ‘dar porrada’, matá-lo, que iam ‘jogar arma e droga na conta’ dele”, afirma Sada. Após as agressões, Rafael foi algemado e levado à UPP local, onde, também segundo o advogado, ainda sofreu deboches e levou um chute, já sentado no chão.

Em seguida, Rafael foi conduzido à 22ª Delegacia de Polícia (Penha). Somente ali, de acordo com o advogado, ele se deparou com 0,6 g de maconha, 9,3 g de cocaína e um rojão, cujo porte lhe foi falsamente atribuído pelos policiais que o prenderam. Ele foi autuado por tráfico de drogas, associação para o tráfico e colaboração com o tráfico. A audiência de custódia, na qual se decidirá se Rafael será preso preventivamente ou terá liberdade provisória, ocorrerá amanhã, segundo Sada.

Tudo isso foi dito pela defesa de Rafael Braga, que nos traz a visão de um crime de abuso de autoridade. 

Eis que, diante de seu estado e saúde, veio a adquirir uma tuberculose dentro do sistema carcerário.

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Segundo dados do Ministério da Saúde, presos têm a possibilidade 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose. 

O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogerio Schietti Cruz concedeu liminar em habeas corpus para que Rafael Braga possa ser colocado em prisão domiciliar, após a confirmação de que o paciente está extremamente debilitado em razão de tuberculose adquirida dentro do sistema penitenciário.

Rafael Braga, que está em prisão preventiva, é catador de material reciclável e foi condenado em janeiro último a 11 anos e três meses de prisão por portar 0,6 grama de maconha e 9,3 gramas de cocaína. Nas manifestações públicas de junho de 2013, Rafael foi acusado de porte de artefato explosivo por carregar uma garrafa de desinfetante. Na época, ele foi condenado a cinco anos de prisão.

A defesa alegou que a substituição da prisão preventiva pela domiciliar era fundamental para preservar sua vida. Um pedido anterior de liminar havia sido negado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Ao conceder a liminar, o ministro do STJ destacou que “enquanto perdurar o agravado estado de saúde do paciente, é imperioso o seu afastamento da unidade prisional em que cumpre pena”.

De toda sorte, num momento em que a sociedade convive com seu patrimonialismo criminoso exposto, diante de tantas investigações de seus agentes políticos, é preciso meditar no caso de Rafael Braga: afrodescendente, pobre e "favelado".

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Rafael Braga . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5237, 2 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60556. Acesso em: 26 abr. 2024.

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