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Da distribuição do ônus do tempo e tutela jurisdicional diferenciada

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13/10/2017 às 15:00
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O artigo analisa a imperiosa necessidade de distribuição do ônus do tempo entre as partes processuais, em especial no que atine a tutela jurisdicional diferenciada, em face das especificidades e particularidades do direito material tutelado.

1. DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO E DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DO TEMPO ENTRE AS PARTES NA RELAÇÃO JURÍDICA PROCESSUAL

A prestação jurisdicional imprescinde de um encadeamento de atos processuais a fim de, à luz dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, serem debatidos os assuntos controvertidos entre as partes processuais, tendo como fim último a prolação de decisão judicial definitiva e imutável. O processo, portanto, intrinsicamente, carece de um certo lapso temporal para maturação.

Na obra “Il tempo e il processo”, de autoria do doutrinador italiano Italo Augusto Andolina, conclui-se que o processo não pode ser concebido fora do tempo. Acrescenta-se que o tempo – sendo supérfluo recordá-lo – é um componente essencial do processo[1]. Mais à frente, argumenta que o próprio conceito do processo, esculpido em sua etimologia, evoca a dimensão temporal, o caminho ao longo do qual se desdobram e se organizam os fatos do processo (ações, atividades, comportamentos), os segmentos que compõem a tessitura, todos ligados e concatenados, visando à produção do resultado jurisdicional.  Constata-se, portanto, o entrelaçamento entre tempo e processo. A relação jurídica processual, per si, exige certa dilação temporal para a prática dos atos processuais. O tempo, assim, é um elemento essencial na compreensão do processo.

Entretanto, a adoção de estratégias protelatórias por parte do demandado, por exemplo, pode alargar excessiva e desnecessariamente o decurso temporal necessário para o encerramento do trâmite processual.

É notória, neste contexto, a importância do conceito de duração razoável do processo. O provimento jurisdicional não basta ser adequado, devendo ser prestado no momento adequado, em um prazo razoável. A solução judicial definitiva, caso seja concedida de forma morosa e tardia, pode não ser útil para a concretização do direito material tutelado, em virtude do perecimento deste ao longo do trâmite processual.

Ressaltando o caráter pernicioso da prestação jurisdicional morosa e tardia, o doutrinador Gilmar Mendes realça que:

“a duração indefinida ou ilimitada do processo judicial afeta não apenas e de forma direta a ideia de proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que permite a transformação do ser humano em objeto dos processos estatais. (...) Em comentários ao artigo 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana.”[2]

A Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 2004, realizou diversas modificações estruturais no Poder Judiciário, tendo também inserido o inciso LXXVIII[3] no bojo do rol dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal. Analisando tal inovação normativa, o doutrinador Humberto Dalla Bernardina de Pinho, em sua obra “Direito Processual Civil Contemporâneo”, tece os seguintes comentários:

“em atenção ao mandamento da efetividade processual, o Princípio da Tutela Tempestiva foi introduzido no artigo 5º de nossa Constituição através do inciso LXXVIII, pela Emenda Constitucional, com o objetivo de combater a morosidade na entrega da prestação jurisdicional e garantir o acesso à Justiça que, por sua vez, pressupõe não apenas a tutela adequada, mas também a tempestiva”[4]

O próprio artigo 4º da Lei nº 13.105/15 (novo Código de Processo Civil) infraconstitucionaliza o disposto no inciso LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, consoante se infere de sua redação: “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”. Constata-se, portanto, que a disciplina infraconstitucional confere um passo além, estabelecendo que a duração razoável do processo não se restringe única e exclusivamente à fase cognitiva, devendo a prestação jurisdicional executiva ser também pautada por uma duração razoável e proporcional.

Na obra “Projetos de Novo Código de Processo Civil – comparados e anotados”, o doutrinador Cássio Scarpinella Bueno ressalta que “a expressa menção à atividade satisfativa é digna de destaque para evidenciar que a atividade jurisdicional não se esgota com o reconhecimento (declaração) dos direitos, mas também com a sua concretização”[5].

A previsão do princípio da duração razoável do processo não encontra previsão normativa apenas na Constituição Federal, mas também em textos normativos internacionais, em vigor perante o sistema europeu e interamericano de direitos humanos.

Xavier Lagarde, na obra “Droit Processuel – Droit commun du procès”[6], ressalta a importância dos inúmeros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos na concretização e efetivação dos princípios e garantias processuais. Em determinado excerto de sua obra, o doutrinador ressalta que as normas internacionais possuem uma tessitura normativa fluida (especialmente principiológica) a fim de “permitir uma interpretação extensiva por parte dos órgãos internacionais de controle e também pela própria jurisdição nacional”. Mais à frente, acrescenta o professor que os textos normativos internacionais, ao consagrarem, no plano supranacional, direitos processuais fundamentais, “aportam uma garantia indispensável aos jurisdicionados no domínio do direito processual”[7].

Em uma análise histórica, Xavier Lagarde realça que o tratamento normativo, no plano internacional, dos direitos e garantias processuais não é uma novidade. A incorporação, no plano dos tratos internacionais, de garantias no bojo do processo civil e penal remonta à Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. O artigo 10 expressamente prevê que

toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida[8]

Xavier Lagarde, ao analisar o artigo supracitado, ressalta que a Declaração Universal dos Direitos do Homem era apenas um valor de um ideal a ser alcançados pelos Estados, não havendo, todavia, um grau maior de vinculatividade, ainda mais quando se constata a inexistência de um órgão de controle, razão pela qual a garantia processual do artigo 10 da Declaração seria apenas um texto de referência, um valor moral[9], destituído de coercibilidade jurídica. Entretanto, trata-se de uma declaração universal de extrema importância, ante a relevância na influência que exercera nos demais textos normativos supervenientes, sendo considerada o texto-mãe, nas palavras do doutrinador (“texte-mère”).

Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, como acima salientado, as garantais fundamentais do processo foram enumeradas com uma tessitura mais aberta e fluida, não sendo enumerados direitos processuais de forma mais taxativa. Entretanto, nos outros tratados internacionais, a duração razoável do processo foi abordada de forma expressa e textual. 

Consoante se infere, por exemplo, do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica), ratificado pelo Brasil no dia 25 de setembro de 1992, “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável”. Tal garantia processual não é extensiva única e exclusivamente no âmbito do direito processual penal. O citado dispositivo normativo estende tal princípio textualmente não apenas aos processos instaurados para “a apuração de qualquer acusação penal formulada” contra o cidadão, como também na “determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

A importância de um processo que se desenvolva em uma duração pautada nas balizas normativas da proporcionalidade e da razoabilidade é ressaltada no próprio funcionamento dos meios de acesso dos cidadãos ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Diversamente do sistema europeu, o cidadão não tem acesso direito ao órgão com poder jurisdicional do sistema interamericano (no caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos). Assim, no caso de uma violação da Convenção Americana por algum de seus Estados-partes, o indivíduo, o grupo de pessoas ou entidade não governamental reconhecida legalmente em um ou mais Estados-membros da Organização deve acionar a Comissão Interamericana, mediante o protocolo de petição, descrevendo as denúncias ou queixas de violações aos direitos humanos reconhecidos e resguardados pelo sistema normativo interamericano.

O artigo 46 da Convenção estabelece uma série de requisitos que devem ser preenchidos para a superação do juízo de admissibilidade por parte da Comissão. Um deles é previsto na alínea “a” do supracitado dispositivo normativo – a necessidade de prévio exaurimento dos recursos da jurisdição interna. Entretanto, a imposição do esgotamento dos recursos internos é mitigada pela alínea “c” do artigo 46.2, justamente nos casos em que “houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos”. Assim, na sistemática de tutela dos direitos humanos na seara internacional, a prestação jurisdicional morosa e tardia é assemelhada à ausência de solução jurídica. Configuraria ônus excessivo ao cidadão condicionar o acesso à Comissão Interamericana, quando a inércia for imputada não a uma atitude omissiva sua, mas sim ao próprio Estado (que tem a missão de prestar a tutela jurisdicional de maneira adequada e célere).

O caráter indenizatório por eventual descumprimento estatal do dever prestacional imposto em prol da consecução da duração razoável do processo assume caráter divergente.

Na realidade italiana, em virtude da adesão à Convenção Europeia de Direitos Humanos, inúmeros jurisdicionados italianos acionaram a Corte Europeia pleiteando a condenação do Estado italiano ao pagamento de indenização pelos danos morais sofridos em decorrência da demora na obtenção da tutela jurisdicional, com fundamento no disposto no artigo 6º, parágrafo 1º, da Convenzione europea per la salvaguardia dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali, que expressamente prevê o direito do cidadão europeu à razoável duração do processo (ragionevole durata).

O volume cada vez maior de demandas junto aos mecanismos de controle internacional por parte da Corte Europeia de Direitos Humanos influenciou decisivamente na adoção de reformas normativas por parte da Itália a fim de concretizar e garantir a razoável duração do processo. No dia 23 de novembro de 199, houve alteração na Constituição Italiana, prevendo-se, expressa e textualmente, no bojo do artigo 111, a garantia a uma ragionevole durata. A duração razoável do processo, portanto, passou a ser uma garantia constitucional. Posteriormente, no dia 24 de março de 2001, foi editada a Legge Pinto, assim denominada em homenagem ao sobrenome de um dos senadores autores do projeto de lei em questão. A Legge Pinto[10] previu a reparação justa em caso de violação à razoável duração do processo, fixando mecanismos de competência, regras orçamentárias, bem como prazos para o ajuizamento da ação reparatória. Todavia, consoante o escólio do professor Paulo Hoffman, no artigo “O direito à razoável duração do processo e a experiência italiana”, a alteração legislativa não foi seguida de mudanças fáticas na estrutura do Poder Judiciário. A mera mudança normativa, por si só, não é suficiente para a alteração do plano fático. O mundo do dever-ser nem sempre corresponde, infelizmente, ao mundo do ser. Sem que haja uma alteração na perspectiva dos operadores do Direito e tampouco um investimento significativo na própria estrutura do Poder Judiciário, as mudanças normativas terão um impacto apenas circunstancial e pontual, não representando a solução concreta e palpável à realidade de crescente litigiosidade e judicialização dos litígios.

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Afinal, como salientado pelos doutrinadores Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antonio Carlos de Araújo Cintra,

Tudo que já se fez e se pretende fazer nesse sentido visa, como se compreende, à efetividade do processo como meio de acesso à justiça. E a concretização desse desiderato é algo que depende menos das reformas legislativas (importantes embora), do que da postura mental dos operadores do sistema (juízes, advogados, promotores de justiça). É indispensável a consciência de que o processo não é mero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica, mas, acima disso, um poderoso instrumento ético destinado a servir à sociedade e ao Estado[11].

Em que pese a ausência, no ordenamento jurídico brasileiro (diversamente do que ocorreu na Itália, como visto acima), de regulamentação infraconstitucional específica que venha a estabelecer as balizas normativas acerca da configuração de tal responsabilidade civil, o doutrinador Cássio Scarpinella Bueno, em sua obra “Curso Sistematizado de Direito Processual Civil”, ressalta a importância do §6º do artigo 37 da Constituição Federal, determinando-se a responsabilidade estatal objetiva, bem como a desnecessidade de regulamentação infraconstitucional para a vinculação estatal quanto ao dever jurídico de conferir razoável duração às relações processuais:

“E mais: que se trata de um princípio constitucional do direito processual civil e, portanto, inderrogável por qualquer norma infraconstitucional e que, como tal, independe de lei para ser implementado em todos os sentidos (...) A discussão relativa à possibilidade de indenização a ser paga pelo Estado pela não duração razoável do processo, pela não observância, portanto, do princípio expresso no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, por isto mesmo, não parece ter, pelo menos à falta de lei expressa que regulamente os parâmetros concretos de uma tal indenização, maior expressividade. Um tal dever indenizatório não pode ser denegado, até por causa do que dispõe o art. 37, §6º, da Constituição Federal. Mas o que o princípio aqui examinado – que é direito fundamental – quer é que se criem condições, as mais variadas, concretas de atingimento de uma dada finalidade. Enfocá-lo como uma cláusula de mera indenização apequena a sua própria função no Estado brasileiro. Por ora, portanto, é mais importante revelar o seu conteúdo prestacional”[12]

Analisando os parâmetros para a averiguação quanto a possível violação da cláusula da duração razoável do processo, o doutrinador Eduardo Arruda Alvim ressalta que “o Tribunal Europeu de Direitos Humanos fixou três importantes critérios para se aferir se houve ou não dilação indevida do processo, a saber: a) complexidade do assunto versado na causa; b) comportamento dos litigantes e de seus procuradores; e c) a atuação e comportamento do órgão jurisdicional”[13]

Indo ao encontro das balizas adotadas pelo sistema europeu de proteção dos direitos humanos, realçadas pelo doutrinador, pode-se agregar os parâmetros elencados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na análise de alguns dos precedentes envolvendo o Estado brasileiro no polo passivo, como o caso “Ximenes Lopes” e “Nogueira de Carvalho” (ambos em face do Brasil). Em ambos os precedentes, depreende-se que a Corte adotou balizas para avaliação quanto à possível violação da garantia processual prevista no artigo 8º da Convenção Americana: (i) a complexidade da matéria posta à apreciação do Judiciário; (ii) atividade processual adotada por ambas as partes (procrastinatória ou cooperativa); (iii) a conduta das próprias autoridades judiciais.

A primeira parte do inciso LXXVIII realça a importância da duração razoável do processo. A parte final do dispositivo normativo, por sua vez, visa à concretização e à efetivação de tal comando constitucional, ao prever a necessidade de criação e aperfeiçoamento de meios garantidores da celeridade da tramitação processual. Não é suficiente apenas explicitar, com força normativa constitucional, a importância da duração razoável do processo. A fim de que a relação jurídica processual seja efetiva, adequada e célere, impõe-se ao Estado, como dever prestativo vinculado, a criação, estruturação, organização e aperfeiçoamento de tutelas processuais adequadas às peculiaridades de cada um dos direitos materiais que se pretende resguardar ou tutelar. A instrumentalidade das garantias procedimentais e das tutelas processuais em prol da efetividade processual deve ser uma meta constante do ordenamento jurídico. Trata-se do princípio da eficiência, a fim de gerenciar a atividade jurisdicional para tornar mais eficiente o trâmite processual, conferindo maior agilidade e celeridade, desde que sempre respeitadas as balizas normativas do contraditório e da ampla defesa, nos seus mais diversos graus.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALIM, Pedro Losa Loureiro. Da distribuição do ônus do tempo e tutela jurisdicional diferenciada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5217, 13 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60597. Acesso em: 24 abr. 2024.

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