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Participação nos lucros e resultados: uma abordagem à luz do dever de proteção

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Este trabalho analisa como o direito fundamental social à participação nos lucros e resultados foi indevidamente regulamentado, tendo sido o Estado-Legislador ineficiente.

RESUMO: Este trabalho analisa como o Direito Fundamental Social à participação nos lucros e resultados foi indevidamente regulamentado, tendo sido o Estado-Legislador ineficiente. Sendo esse o cenário, o Estado-Juiz, enquanto vinculado objetivamente ao Texto Constitucional deve agir positivamente, diante da ofensa ao dever de proteção.

Palavras-chave: Participação nos lucros e resultados – dever de prestação.

SUMÁRIO: Introdução – 1. O dever de proteção – 1.1 Direitos Fundamentais como sistema de valores – 1.2 Eficácia irradiante dos Direitos Fundamentais – 1.3 Dever de proteção – 1.4 Proporcionalidade: entre a proibição do excesso e a proteção insuficiente –  1.5 O princípio da proporcionalidade como proibição da insuficiência – 2. A participação nos lucros, resultados e o estado ineficiente – 3. Conclusão – 4. Referências.


INTRODUÇÃO

O artigo 7º, inciso XI da CRFB/88 consagrou o direito fundamental à participação nos lucros e resultados, desvinculando-o da remuneração, e a Lei n. 10.101/2000, a fim de regulamentar o aludido direito, estabeleceu que este será objeto de negociação entre a empresa e seus empregados, mediante negociação coletiva, ou por comissão escolhida pelas partes – afinal almeja-se estabelecer integração entre o capital e o trabalho, incentivando a produtividade, como vazado no artigo 1º -, integrada, também, por um representante indicado pelo sindicato da respectiva categoria.

Ocorre que, na prática, as indigitadas comissões não existem e as normas coletivas, quando tratam da participação nos lucros limitam-se a dizer que o direito existe, mas não o regulamentam, ou, simplesmente, remetem-se à lei, estatuindo que a participação nos lucros ou resultados será estabelecida nos termos da norma vigente, quando esta já faz alusão à negociação coletiva.

Diante do afastamento tanto do legislador quanto dos atores sociais responsáveis pela negociação coletiva e individual, como deve agir o Magistrado do Trabalho? É sobre isso, em apertada síntese, que pretende refletir o presente artigo.


1. O DEVER DE PROTEÇÃO

1.1 DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO SISTEMA DE VALORES

Segundo a clássica doutrina do Estado Liberal, os Direitos Fundamentais somente eram entendidos consoante a lógica estatal abstencionista, para que fosse assegurado o direito de liberdade do indivíduo. Tal racionalidade trazia à reboque a ideia de que a Constituição era um mero documento político, inferior à Lei, o que redundava no não desenvolvimento do próprio Direito Constitucional, que evoluía paulatinamente, enquanto o Direito Civil crescia, imbuído de teorias que justificavam a sua superioridade.

O cenário narrado era bastante compreensível, diante da tradição jurídica presente ao longo de séculos e disseminada pelo mundo ocidental através do povo romano. Até o jusnaturalismo, no afã de se fazer mais perene, havia sido codificado, fazendo-se crer que algo não presente na legislação não era valorado pela sociedade. Era chegada a época de um jusnaturalismo racional.

Esse cenário positivista, que afastava a moral, a ética e a justiça do Direito, fez-se presente em todo o século XIX, auge das ideias liberais, perdurando fortemente na doutrina civil e constitucional até meados do século XX, momento em que houve uma mudança substancial de racionalidade e, pouco a pouco, a hermenêutica constitucional passou a admitir a permeação do Direito pela moral, constitucionalizando, por assim dizer, o próprio Direito, agora imbuído de valores que se irradiavam para todas as esferas governamentais e até para as entidades privadas, algo impensável segundo a lógica liberal-burguesa.

Para tanto, foi necessário que o mundo testemunhasse as barbáries praticadas pelo holocausto, onde o ser humano foi menosprezado, não dignificado, e tratado como meio para o alcance de um fim que se pretendia legítimo.

Na Alemanha, país responsável tanto pelo cenário horrendo narrado, quanto pela própria modificação do pensamento positivista e virada Constitucionalista, a Constituição de Weimar, hoje plenamente reconhecida como uma das primeiras no mundo a tratar sobre os Direitos Sociais, sequer concebia os Direitos Fundamentais como cláusulas pétreas, omissão que terminou sendo decisiva para fazer com que Hitler retirasse a cidadania dos judeus e iniciasse a perseguição destes pelos mais diversos recantos da Europa.

Terminada a Guerra, na Alemanha, em 1949, foi publicada a Constituição de Bonn e dois anos após, em 1951, foi criado o Tribunal Constituição Federal, composto por juristas contrários às ideias que justificavam o holocausto, fato peremptório para a modificação da hermenêutica constitucional, que passou entender os Direitos Fundamentais como um sistema de valores. Tal racionalidade foi construída a partir de um julgado, mas plenamente desenvolvida pela Corte Constitucional alemã, influenciando diretamente a interpretação dos princípios como normas, a eficácia dos Direitos Fundamentais entre os particulares – o que se denominou chamar de eficácia horizontal – e o alcance dos direitos de liberdade, agora entendidos sob a ótica também objetiva.

Tal interpretação modificou de vez a própria concepção dos Direitos Fundamentais Sociais, que passaram a se desenvolver, também, sob o aspecto protetivo, não só fático, mas, sobretudo, jurídico.

A Constituição Federal de 1988 foi fortemente influenciada pelo influxo interpretativo das normas constitucionais campeado na Alemanha e é justamente esse o motivo por que se faz necessária a análise da construção germânica dos Direitos Fundamentais como valores, já que a jurisprudência pátria ainda é carente de avanço científico nesse sentido[2].

Se for possível fixar o momento da mudança narrada, esse foi o julgamento do que se denominou caso Lüth.

Em 1950, durante a realização de um festival cinematográfico ocorrido em Hamburgo, o então presidente do Clube de Imprensa, Erich Lüth, além de expor publicamente o diretor de “Amantes Imortais”[3], Sr. Veit Harlan, acusando-o de grande disseminador das ideias nazistas através da Sétima Arte, também organizou um boicote juntamente aos distribuidores de filmes.

Harlan e os parceiros comerciais ajuizaram uma ação cominatória em face de Lüth, com fulcro no § 826 BGB, dispositivo da Lei civil alemã que obrigava todo aquele que, por ação imoral, causar dano a outrem, a uma prestação negativa – no caso, deixar de boicotar o filme –, sob a cominação de pecúnia.

A referida ação teve o pedido julgado procedente pelo Tribunal Estadual de Hamburgo. Lüth, então, interpôs recurso de apelação junto ao Tribunal Superior de Hamburgo e, ao mesmo tempo, Reclamação Constitucional, alegando violação do seu direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento, garantida pelo art. 5 I 1 GG[4].

O Tribunal Constitucional Federal, já em 1958, julgando procedente a Reclamação, revogou a decisão do Tribunal Estadual, declarando que de acordo com a jurisprudência permanente do Tribunal Constitucional Federal, as normas jusfundamentais contêm não só direitos subjetivos de defesa do indivíduo frente ao Estado, mas representam, ao mesmo tempo, uma ordem valorativa objetiva que, enquanto decisão básica jurídico-fundamental, vale para todos os âmbitos do direito e proporcionam diretrizes e impulsos para a legislação, a administração e a jurisprudência.

A partir dessa decisão, com fulcro na teoria axiológica, os Direitos Fundamentais, a despeito de encerrarem direitos subjetivos para os indivíduos, também passaram a ser considerados como valores objetivos[5] de uma comunidade e, como tais, se espraiam por todo o ordenamento, vinculando juridicamente todas as funções estatais, dentre elas, o próprio Poder Judiciário, que passa a ter como principal função interpretar a Constituição e as Leis, de modo a dar afetividade aos Direitos Fundamentais.

Nas palavras de Vieira de Andrade, os Direitos Fundamentais “não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares perante o Estado”, pois, eles “valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins de que se propõe prosseguir, em grande medida através da acção estadual”[6], que é, em outras palavras o próprio dever de proteção estatal em relação aos indivíduos.

Alexy, apesar de reconhecer que princípios e valores possuem a mesma estrutura, sendo ambos passíveis de sopesamento quando em conflito com outros princípios ou valores, afirma que aqueles ocupam o campo da deontologia, ou do dever-ser – como os conceitos de dever, proibição, permissão e direito a algo –, enquanto estes se localizam no âmbito da axiologia, identificado como o conceito de bom – como os conceitos de bonito, corajoso, seguro, econômico, democrático, social, liberal ou compatível com o Estado de direito[7].

Evidente que a assim denominada teoria axiológica dos Direitos Fundamentais encontrou séria divergência, sendo Habermas um dos seus principais opositores, quando lança contra o discurso da ponderação de valores o epíteto de “frouxo”, argumentando que:

ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária. No caso de uma colisão, todas as razões podem assumir o caráter de argumentos de colocação de objetivos, o que faz ruir a viga mestra introduzida no discurso jurídico pela compreensão deontológica de normas de princípios do direito. [...] Normas e princípios possuem uma força de justificação maior do que a de valores, uma vez que podem pretender, além de uma especial dignidade de preferência, uma obrigatoriedade geral, devido ao seu sentido deontológico de validade; valores têm que ser inseridos, caso a caso, numa ordem transitiva de valores. E, uma vez que não há medidas racionais para isso, a avaliação realiza-se de modo arbitrário ou irrefletido, seguindo ordens de precedência e padrões consuetudinários[8].

Informa Steinmetz[9] que a teoria axiológico-sistêmica também encontrou na doutrina de forsthoff grande crítica, acreditando o citado jurista que, na filosofia dos valores, “a interpretação jurídica dá lugar à interpretação filosófica”, tornando “inseguro o direito constitucional, dissolvendo a lei constitucional na casuística, porque o caráter formal-normativo do direito constitucional, isto é, a sua positividade jurídico-normativa, é substituída por uma suposta normatividade constitucional estabelecida caso a caso”.

Tomando emprestadas as palavras de Sarmento, “não se afigura necessária a adesão” à teoria da ordem de valores para “aceitação da existência de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais, e para o reconhecimento dos dois efeitos práticos mais importantes desta dimensão: a eficácia irradiante dos direitos fundamentais e a teoria dos deveres estatais de proteção”[10]. E é sobre isso que se tratará a seguir.

1.2 EFICÁCIA IRRADIANTE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A fim de orientar o alcance da teoria axiológica dos Direitos Fundamentais, na década de oitenta, Alexy indicou como única forma viável de se interpretar o caráter objetivo dos referidos direitos, a técnica da abstração de toda e qualquer noção subjetiva.

Nesse desiderato, pontuou o referido publicista, que apenas com uma tríplice abstração é possível fazer aparecer o caráter objetivo do direito[11].

Para tanto, o autor utiliza o direito à liberdade de expressão (caso Lüth), afirmando que, ao se realizar a primeira abstração (do titular), converte-se um dever relacional (que possui um direito subjetivo como contrapartida) em um dever não-relacional, ou seja, uma obrigação sem um direito subjetivo correspondente, que gera apenas um dever prima facie de o Estado atuar, de modo a se omitir de intervir na liberdade de opinião.

Todavia, para alcançar um “nível supremo de abstração”, é necessária a feitura de uma segunda abstração (do destinatário do direito) para, então, abstrair algumas particularidades do objeto (omissão de intervenção estatal). Como resultado final, haverá somente um “simples dever-ser” da liberdade de expressão, o que o Tribunal Constitucional Federal intitulou de “decisão básica jurídico-objetiva”, e o autor de “norma básica que decide valores”, que “se irradiará por todos os âmbitos do ordenamento”[12].

A partir dessa concepção irradiante dos Direitos Fundamentais, doutrina e jurisprudência germânicas evoluíram para outros conceitos que redundaram profundamente no aprimoramento da eficácia e efetividade das normas constitucionais, como, por exemplo, a assim denominada eficácia horizontal, ou vinculação dos particulares aos Direitos Fundamentais, que, aplicada ao Direito pátrio, como se defenderá mais adiante, permite a interpretação de desnecessidade de uma lei obtida através do processo legislativo comum (lei complementar) para a observância do direito do trabalhador à proteção contra a dispensa arbitrária.

A teoria axiológica encontra no Direito constitucional brasileiro ampla possibilidade de aplicação, tendo-se que a Constituição Federal de 1988 é eivada de valores, positivados ou não, a exemplo do valor social do trabalho.

Nesse trilhar, fácil é perceber que as normas constitucionais, para além do conteúdo subjetivo, encerram valores que se irradiam para os mais diversos ramos do Direito, não só civil, mas também penal, econômico e, sobretudo, do trabalho, encontrando nos conceitos jurídicos indeterminados (bons costumes, ordem pública, boa-fé, abuso de direito) um forte campo para aplicação dos valores consagrados no Texto Constitucional.

No direito francês, embora não se adote flagrantemente a teoria da eficácia irradiante[13], em 1991, uma empresa de entretenimento lançou um concurso, onde se sagrava vencedor quem arremessasse um anão a uma maior distância. Indignado com o show de horrores, um dos prefeitos por onde passava o “espetáculo”, utilizando-se da regra contida no artigo 3º da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, decidiu, administrativamente, interditar o evento.

Na oportunidade, o anão em questão, em litisconsórcio com o empresário, ingressaram com ação perante o Tribunal Administrativo de Versailles, no intuito de anular o ato do prefeito. O Conselho do Estado Francês, em última instância, afirmou que o princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado para a interpretação de conceitos jurídicos indeterminados, como o de “ordem pública”, evidenciando que o referido princípio-valor está para além da própria vontade do ser humano, que, no caso do anão, desejava ser arremessado, tendo alegado a sua condição física, que redundava na impossibilidade de encontrar um trabalho melhor.

A decisão referida consagra não só o valor dignidade humana, mas, sobretudo, concebe-o sob a ótica objetiva, sendo indiferente se há ou não vontade de o ser humano se aviltar diuturnamente. Pensar o contrário é permitir que o próprio Estado possa mensurar a quantidade de dignidade que pode existir em cada ser humano, ideologia que sempre embasou estados totalitários e fundamenta até os dias atuais a ideia de uma raça, etnia ou religião superior.

1.3 DEVER DE PROTEÇÃO

Corolário da teoria axiológico-sistêmica dos Direitos Fundamentais, os direitos de proteção são, no dizer de Alexy, “os direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros”[14], como ocorre, exemplificativamente, com as normas que tratam de direito penal, responsabilidade civil, direito do trabalho, proteção ao meio ambiente, direito do consumidor, onde há forte intervenção jurídica estatal, dispondo até onde os particulares podem avançar para que não seja ofendido interesse de outrem.

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Os direitos a proteção, por serem autênticos direitos subjetivos e objetivos constitucionais a ações positivas estatais, podem encerrar prestação fática ou normativa (jurídica), tendo tais direitos como escopo a delimitação das “esferas dos sujeitos de direito de mesma hierarquia, bem como a garantia da exigibilidade e da realização dessa demarcação”[15]. Ao tempo em que o direito a proteção encerra direito subjetivo para o indivíduo em face do Estado, também se apresenta em idêntica forma, impondo-se ao Estado a atividade legislativa, administrativa e jurisdicional, todas elas tendo como norte os Direitos Fundamentais, entendidos agora em seu aspecto objetivo-irradiante.

Se classicamente o Estado foi concebido tão só segundo a lógica liberal, a função protetora estatal é algo que remonta à época de formulação das teorias acerca do contrato social, assim entendido como o grande pacto firmado pela sociedade, onde, em linhas simplórias e pragmáticas, os indivíduos cederiam parcela da sua individualidade, em prol da proteção estatal, ou segurança de atos praticados por terceiros.

Em um contexto onde a autotutela passou a não mais ser tolerada, coube ao Estado a função de viabilizar segurança aos indivíduos. Dita segurança é, classicamente, firmada em face do Estado, que tem como missão se abster de intervir nas relações privadas, mas também através do Estado, segundo concepção mais moderna após o advento do Estado Social. Essa última concepção de proteção estatal é entendida sob o aspecto fático, através das prestações sociais, ou jurídicas (normativas), tendo o Estado a obrigação de proteger os Direitos Fundamentais em face de atos praticados por terceiros, com a elaboração de leis e aparelhamento da Administração.

Nesse trilhar, retomam-se as palavras de Vieira de Andrade, que, ao diferenciar a clássica acepção dos direitos de defesa como direitos do indivíduo em face do Estado, contrariando a lógica liberal, os direitos a prestações “imporiam ao Estado o dever de agir, quer seja para a protecção dos bens jurídicos protegidos pelos direitos fundamentais contra a actividade de terceiros, quer seja para promover ou garantir as condições materiais ou jurídicas de gozo efectivo desses bens jurídicos fundamentais” e que esse moderno modo de enxergar a missão estatal se liga diretamente ao advento do Estado Social, que ampliou os deveres do Estado.

Mais adiante, o publicista ainda arremata apontando que em todo caso “o direito pode ser a prestações materiais ou jurídicas”, citando como exemplos das prestações estatais jurídicas a “regulamentação das relações de trabalho”[16]. É dizer, o Estado tem o dever, decorrente do direito a prestação, de proteger o indivíduo trabalhador das arbitrariedades praticadas por terceiros, e a relação de emprego é campo fértil para o exercício de tal mister, diante do forte poder social concentrado tão somente nas mãos do empregador. Não é sem razão que o Estado intervém para proteger o indivíduo trabalhador e quando deixa de fazê-lo, há um descumprimento do dever de proteção que lhe é próprio.

Diversamente da concepção subjetiva dos Direitos Fundamentais, a dimensão objetiva apregoa que a proteção estatal não é somente fundada no interesse geral da comunidade, interessando ao poder público a missão protetora do ser humano concretamente situado, para que somente assim seja alcançado o desenvolvimento da personalidade.

Sem embargo, o Estado, a despeito da sua concepção clássica de abstenção, passa a ser o grande responsável pela concretização dos direitos fundamentais desse Homem concreto, em um contexto de Estado Social, o que não gera a automática refutação do Estado Liberal, tendo-se que o Estado abstencionista, convive, modernamente, ao lado do Estado Social. Nesse cenário, o ser humano passa a ter a possibilidade de alcançar a sua mais alta personalidade através do Estado, que, de grande oponente, se transmuda em realizador dos Direitos Fundamentais.

Nesse cenário de mudança paradigmática, estabelecida, sobretudo, após a chegada do Estado Social de Direito, os Direitos Fundamentais, passam também a ser encarados segundo a ótica positiva, sendo papel do Estado a sua realização através da proteção fática e também jurídica, esta por meio da criação de normas protetivas (sobretudo normas que tratam de proteção ao particular, em face de atos praticados por outros particulares) tratando dos mais diversos ramos do Direito, dentre os quais, o Direito do Trabalho.

Com o acertamento da lente por onde eram observados os Direitos Fundamentais, ampliando o espectro de sua visão, os poderes já constituídos (Legislativos, Executivo e Judiciário) também tiveram os seus deveres hipertrofiados, pois, além de terem a missão de assegurar a liberdade do indivíduo em face do Estado, passaram igualmente a ter a obrigação de fazer realizar os Direitos Fundamentais por meio das suas respectivas atividades, agora enxergadas positivamente.

Entendidos os Direitos Fundamentais sob a dimensão objetiva, cabe ao Estado a promoção de políticas públicas para a concretização de tais direitos, como, por exemplo, a feitura de campanhas para a prevenção a sérias doenças, proteção ao meio ambiente e até a fiscalização do cumprimento das normas protetivas, como a atividade perpetrada pelo Poder Executivo no combate ao trabalho escravo e degradante, ao cumprimento das NRs, para a prevenção de acidentes de trabalho.

O Poder Judiciário, também vinculado aos Direitos Fundamentais segundo a teoria axiológica, igualmente tem a missão de fazer valer tais direitos, permitindo a plena eficácia das normas que têm como escopo a proteção à dignidade do ser humano.

Quanto ao Poder Legislativo, nos passos da teoria axiológica, cabe-lhe a missão de promover, através da legislação, os Direitos Fundamentais, confeccionando normas constitucionais ou ordinárias protetivas ao indivíduo em face de atos praticados por terceiros.

1.4 PROPORCIONALIDADE: ENTRE A PROIBIÇÃO DO EXCESSO E A PROTEÇÃO INSUFICIENTE

Durante o século XIX e parte do século XX, o princípio da legalidade dominou toda a teoria constitucional e civilista, encontrando no positivismo jurídico o seu expoente doutrinário. Nesse contexto ideológico, cabia ao Poder Legislativo falar em nome do povo, emitindo normas, nem sempre condizentes com a vontade popular e que, não raras vezes, deixavam de guardar grande preocupação com os Direitos Fundamentais, sem maiores reflexões acerca da constitucionalidade da emissão de tais atos normativos, uma vez que o princípio da legalidade fornecia o aparato necessário à elevação do Poder Legislativo ao máximo patamar, impedindo que este pudesse ser questionado acerca da adequação ao texto constitucional.

Em meados do século XX, máxime após o fim da Segunda Guerra Mundial, descortinado que foi o atentado contra a dignidade do ser humano pela prevalência do princípio da legalidade – que supedaneou todas as barbáries cometidas no holocausto –, o cenário ideológico modificou-se substancialmente.

O mesmo Estado alemão, que tinha no princípio da legalidade o seu meio expoente para justificar todos os atos arbitrários do poder legislativo, também foi o grande responsável[17], na Europa, pela modificação hermenêutica que alçou o princípio da proporcionalidade ao patamar constitucional.

Após percuciente construção jurisprudencial comandada pelo então novel Tribunal Constitucional Federal, que já em 1958 tratou sobre a jurisprudência dos valores, passou a conceber os Direitos Fundamentais e até a própria Constituição como ordem axiológica que se irradia tal qual raios solares sobre todo o ordenamento jurídico, influenciando, principalmente, a atividade legiferante, não sendo esta, nesse contexto, absoluta e soberana, mas, ao revés, rendendo reverência ao texto constitucional, este sim, guardião de todos os valores pinçados da sociedade e formalmente consagrados.

Foi no citado leading case Lüth que o indigitado Tribunal Constitucional Federal primeiro se utilizou do princípio da proporcionalidade para sopesar os princípios constitucionais da liberdade de expressão e a privacidade, que, naquele caso concreto, colidiam.

Para tanto, utilizou-se o Tribunal do princípio da proporcionalidade, fazendo emergir uma teoria que possui efeitos recíprocos, entendendo que a lei tanto limita o direito fundamental, quanto à luz deste também é interpretada. Embora o alcance do princípio da proporcionalidade ainda não estivesse bem delineado na jurisprudência da Corte, fora utilizada, a partir de então em diversos julgados, tanto que Bonavides[18], ancorado em Stern, afirmou que foram mais de 150 julgados tratando da aplicação do novo princípio da proporcionalidade no Tribunal Constitucional Federal, após o advento da Lei Fundamental de 1949.

Todavia, somente em 1971,[19] o referido Tribunal destrinchou o princípio da proporcionalidade, tratando da proibição do excesso do legislador , com a análise dos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Deixava, segundo a Corte, o princípio da proporcionalidade, de ser um princípio adotado somente no Direito Administrativo, passando a ser implicitamente um princípio constitucional, em um contexto de Constituição aberta e material.

Se antes o referido princípio era utilizado somente para combater os excessos da Administração, quando do exercício do seu poder de polícia, a partir da construção jurisprudencial narrada, o aludido princípio passou a ser utilizado como norma implícita ao texto constitucional alemão e, portanto, apta a efetuar controle de constitucionalidade de atos legislativos infraconstitucionais emitidos pelo legislador e este, por seu turno, passava a ser vinculado aos valores constitucionalmente consagrados, estando proibido de praticar excessos legiferantes (übermassverbot).

Tal construção jurisprudencial foi de importância imensa para a edificação do controle de constitucionalidade e a compreensão da Constituição como norma ápice em um Estado de Direito.

Partindo da teoria alemã acerca do princípio da proporcionalidade, é possível encontrar a divisão deste em três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Entende-se que a medida administrativa ou legislativa resta adequada quando apta para o atendimento dos fins que a fundamentaram. Ou seja, analisa-se a relação entre fins e meios, sendo adequado o ato que guardar pertinência com a finalidade perseguida.

Já no juízo de necessidade analisa-se se a medida adotada pelo Estado, dentre todas as possíveis, é a menos gravosa para o alcance objetivado. No dizer de Canotilho, o exame deve compreender: a) a exigibilidade material, pois o meio deve ser o mais ‘poupado’ possível quanto à limitação dos direitos fundamentais; b) a exigibilidade espacial aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção; c) a exigibilidade temporal pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coactiva do poder público; d) a exigibilidade pessoal significa que a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados[20].

Já no que toca à proporcionalidade em sentido estrito, ultrapassadas as duas fases anteriores, cabe ao julgador ponderar se “o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga activa da mesma”[21], sendo especialmente nessa fase necessária a farta argumentação jurídica, para que a vontade dos demais poderes não se faça substituir pela arbitrária vontade do Estado-juiz.

O princípio da proporcionalidade, concebido como proibição do excesso, encontrou previsão formal na Lei Fundamental alemã e inspirou o legislador constituinte português de 1976, tendo-se que a Carta lusitana contempla nos artigos 18º/2, 19º/4 e 166º/2 o referido princípio.

A Carta Política de 1988 não prevê formalmente o princípio em questão, mas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal o concebe como implícito no Texto Constitucional, vigente e necessário ao nosso Estado de Direito[22] e, forte na lição de Bonavides, pode-se assegurar que o referido princípio, apesar de não existir formalmente na Constituição, existe “como norma esparsa” no Texto Constitucional, tendo-se que “a noção mesma se infere de outros princípios que lhe são afins, entre os quais avulta o princípio da igualdade, sobretudo em se atentando para a passagem da igualdade-identidade à igualdade- proporcionalidade, tão característica da derradeira fase do Estado de Direito”[23].

Enquanto a Alemanha, país que tratou tardiamente sobre o controle de constitucionalidade, vinculava o princípio da proporcionalidade ao Direito Administrativo, mais especificamente no tocante ao controle dos excessos aos atos de poder de polícia da Administração, evoluindo para o controle de excesso em relação aos atos legislativos, os Estados Unidos há muito já tinham na cláusula do devido processo legal, inserida por meio das Emendas 5ª e 14ª, a certeza de que as normas emanadas pelo Poder Legislativo poderiam sofrer controle de constitucionalidade (judicial review), quando não guardassem razoabilidade, princípio este que estava implicitamente contido na referida cláusula do devido processo legal.

Vale lembrar que a referida cláusula passou por duas fases[24]. Na primeira, com caráter puramente processual, o princípio somente era voltado para as garantias penais processuais, tais como o contraditório, a ampla defesa, os recursos e a possibilidade de citação no processo. Já na segunda fase, o devido processo legal, embora não tenha abandonado a sua versão clássica processual, passou a ser entendido sob a ótica substantiva, permitindo que o Judiciário pudesse efetuar o controle de constitucionalidade dos atos legislativos, ou seja, o próprio controle do mérito dos atos discricionários do legislador, encontrando o Judiciário fundamento na averiguação da compatibilidade em relação ao meio escolhido pelo legislador e os fins almejados, assim como na verificação da legitimidade dos fins, tendo afirmado Barroso, que “por intermédio da cláusula do devido processo legal passou-se a proceder ao exame de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality) das leis e dos atos normativos em geral do direito norte-americano”[25].

Barroso e Bonavides concordam que ambos os princípios, que, no fim guardam simetria, são mais fáceis de serem entendidos do que conceituados[26], mas aquele se arrisca, afiançando que a razoabilidade consiste em “mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e administrativa”. Trata-se, portanto, “de um parâmetro de avaliação dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça”[27].

Já para Ávila, que trata razoabilidade e proporcionalidade como postulados, esta “pressupõe a relação de causalidade entre o efeito de uma ação (meio) e a promoção de um estado de coisas (fim). Adotando-se o meio, promove-se o fim: o meio leva ao fim”. Já em relação àquele, na “utilização da razoabilidade como exigência de congruência entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada há uma relação entre uma qualidade e uma medida adotada: uma qualidade não leva à medida, mas é critério intrínseco a ela”[28].

Sarmento doutrina que, embora os princípios da proporcionalidade e razoabilidade possuam “matrizes históricas diferentes, na prática são fungíveis, pois almejam o mesmo resultado: coibir o arbítrio do Poder Público, invalidando leis e atos administrativos caprichosos, contrários à pauta de valores abrigada pela Constituição”[29].

1.5 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO PROIBIÇÃO DA INSUFICIÊNCIA

Classicamente concebido como vedação ao excesso, modernamente o princípio da proporcionalidade é também enxergado sob nova ótica, assim entendida como a proibição da insuficiência, ou da proteção insuficiente, tese segundo a qual, na medida em que cabe ao Estado fomentar os Direitos Fundamentais, executando políticas públicas, ou, simplesmente, legislando sobre determinadas matérias, sem interferir excessivamente nos ditos Direitos, em um contexto de vedação ao excesso, também lhe cabe a necessária legislação protetiva, de forma ampla, para abarcar o máximo espectro fundamental protetivo, sob pena de ignorar a proporcionalidade pela insuficiência.

Ou seja, se o Estado não pode ser excessivo, também não lhe cabe ser omisso ou insuficiente, deixando o cidadão à mercê da intervenção de terceiros em sua esfera privada, sem que haja medida impeditiva ou punitiva própria. No dizer de Canotilho, existe um “defeito de protecção quando as entidades sobre quem recai um dever de protecção (Schutzpflicht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma protecção constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais”[30].

Nesse momento, é válido retomar a divisão dos Direitos Fundamentais a prestação nos sentidos material ou fático e jurídico, interessando tão somente este último para a análise do alcance do princípio da proporcionalidade como proibição da insuficiência, para posterior digressão acerca da omissão prestacional legislativa em relação ao direito à participação nos lucros e resultados e como deve se comportar o Estado-Juiz diante de tal realidade.

A contemporânea teoria dos Direitos Fundamentais defende que ao Estado cabe o dever de não violar tais direitos, assim como também a obrigação de proteger os titulares de tais em face dos danos e ameaças advindas de outros particulares, em um contexto de dimensão axiológica interpretativa da Constituição enquanto ordem de valores.

Dito dever de proteção se irradia para todas as esferas estatais e ganha principal relevo nas atividades legislativa, administrativa e judicial, que devem guardar o dever de promover todos os Direitos Fundamentais.

Encontra-se na doutrina de Alexy os direitos a proteção como legítimos direitos subjetivos do cidadão, assim entendidos como “direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado a que este o proteja contra intervenções de terceiros”, ou “direitos constitucionais a que o Estado configure e aplique a ordem jurídica de uma determinada maneira no que diz respeito à relação dos sujeitos de direito de mesma hierarquia entre si”[31].

O primeiro e notório caso julgado pelo Tribunal Constitucional Federal acerca do alcance do dever de proteção ocorreu em 1974, quando foi publicada lei estadual descriminalizando o aborto. Na oportunidade, já em 1975, a Corte, através de controle concentrado de constitucionalidade, decretou a invalidade da lei, dando ênfase ao direito à vida, consagrado na Lei Fundamental de Bonn, que tem início – segundo o julgado referido – já com o feto, a partir do 14º dia seguinte à concepção. Também entendeu o Tribunal como relevante o direito à privacidade da mulher grávida, mas este, por não ser absoluto, entraria em colisão com o direito à vida do feto. Utilizou-se, portanto, do critério de ponderação e, tendo-se afirmado que o legislador tinha a obrigação constitucional de proteger a vida do feto, declarou-se a inconstitucionalidade da lei que descriminalizava o aborto, estabelecendo-se, no entanto, algumas exceções, a saber, quando houver risco à vida ou saúde da mãe, ou aborto eugênico. Com isso, firmou a Corte o entendimento segundo o qual “ao descriminalizar o aborto, o legislador teria violado o dever de proteção ao bem jurídico vida, ao qual estava adstrito”[32].

Na referida decisão (BVerfGE 39,1 (Schwangerschaftasabbruch I), o Tribunal Constitucional Federal concluiu que:

o dever de proteção do Estado é abrangente. Ele não só proíbe – evidentemente – intervenções diretas do Estado na vida em desenvolvimento, como também ordena ao Estado posicionar-se de maneira protetora e incentivadora diante dessa vida, isto é, antes de tudo, protegê-la de intervenções ilícitas provenientes de terceiros (particulares). Cada ramo do ordenamento jurídico deve orientar-se por esse mandamento, conforme sua respectiva definição de tarefas. O cumprimento do dever de proteção do Estado deve ser tão mais consequentemente perseguido quanto mais elevado for o grau hierárquico do bem jurídico em questão dentro da ordem axiológica da Grundgesetz. Dispensando maiores fundamentações, a vida humana representa um valor supremo dentro da ordem da Grundgesetz; é a base vital da dignidade da pessoa humana e o pressuposto de todos os demais direitos fundamentais[33].

Em 1993 o referido Tribunal voltou a afirmar que o Estado tem o dever de proteção legislativa à vida, no segundo caso sobre o aborto (BVerfGE 88, 203 – Schwangerschaftsabbruch II) e na referida decisão restou firmado que:

o Estado deve adotar medidas normativas e de ordem fática suficientes para o cumprimento do seu dever de proteção, que conduzam a uma proteção adequada e efetiva (proibição de insuficiência), com a consideração dos bens jurídicos em colisão. Para isso é necessário um conceito de proteção que combine medidas preventivas e repressivas.

Invocando o mesmo argumento da insuficiência da proteção por parte do Estado, o Tribunal Constitucional Federal em outras oportunidades reafirmou essa nova perspectiva do princípio da proporcionalidade, como na área da defesa contra o terrorismo (BVerfGE 46, 160, 163), em 1978, bem como no caso da proteção ambiental referente a ruídos provocados por aeronaves e centrais nucleares, apontando sempre a necessidade de o Estado emitir normas protetivas aos respectivos bens jurídicos.

Todavia, em 1993 (BcerfGE 203), o Tribunal Constitucional alemão voltou a tratar o tema aborto, apontando nova diretriz para a vedação à insuficiência de intervenção estatal na esfera privada, constituída em torno da desnecessidade de criminalização da interrupção da gravidez até a décima segunda semana de gestação. Também se colhe o referido julgado que: “a proibição da insuficiência não permite a livre desistência da utilização, também, do direito penal e do efeito de proteção da vida humana dele decorrente”[34].

Após asseverar que a literatura especializada aponta como três as funções pertencentes à dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais – caráter de normas de competência negativa, necessário ao controle abstrato das normas; efeitos horizontal e de irradiação dos direitos fundamentais; dever estatal de tutela – afirma Schwabe que este último dever se refere ao “dever do Estado de proteger ativamente o direito fundamental, ou seja, de proteger o seu exercício contra ameaças de violação provenientes de particulares”. Também enfatiza o referido publicista que “a proteção se refere à ação a ser impetrada pelo Estado para a proteção ativa dos direitos fundamentais, em face das possíveis inobservâncias por particulares”. Finaliza, porém, pontuando que “o Estado é obrigado, pelo dever de tutela, derivado dos direitos fundamentais, a forçar a observância, a omissão de ação ameaçadora aos respectivos direitos fundamentais, provenientes de particulares”[35].

Ao revés da maior parte da doutrina[36], que põe o dever de tutela legislativa como direito prestacional vinculado à eficácia objetiva dos direitos fundamentais, defende o referido autor que do aludido dever estatal, “se baseia numa situação de ameaça de alguns direitos, perpetrada por particulares, [nascendo para estes] uma posição jurídico-subjetiva que provoca o mesmo efeito próprio da função clássica dos direitos fundamentais de oferecer resistência contra intervenção lesiva de outrem”. E arremata dizendo: “trata-se da função de resistência ampliada àqueles casos nos quais os particulares passaram a ameaçar a liberdade tutelada. Esta função exige do Estado[37], em suma, que ele aja contra as situações de ameaça de um direito fundamental”[38].

Ou seja, o dever de tutela legislativa, além de ser um direito de defesa, igualmente conduz a um direito subjetivo a que o indivíduo seja protegido contra atos provenientes de terceiros, ou a uma ação positiva por parte do Estado.

Percebe-se, dessa forma, que não há um abismo tão grande entre direitos de defesa e direitos a prestações, sendo ambos capazes de gerar direito subjetivo, importando muito mais o nível de densidade normativa que cada um dos Direitos Fundamentais possui segundo a sua respectiva previsão constitucional.

Alexy, analisando ambos os direitos, pontua que a estrutura do direito a prestação é igual à do direito de defesa, no tocante à possibilidade de escolha (discricionariedade) do Legislador[39]e se utiliza de exemplo claro, afirmando que o “direito de proteção exige a utilização de ao menos um meio de proteção, (e) o direito de defesa exclui a utilização de todo e qualquer meio de utilização ou afetação negativa”[40]. Ou seja, em se tratando de direito de defesa, este somente será satisfeito e plenamente alcançado quando todos os meios de intervenção ao Direito Fundamental forem afastados; já para a satisfação do dever de proteção, é suficiente a realização de uma única ação adequada de proteção ou fomento; “se mais de uma ação de proteção ou de fomento é adequada, nenhuma delas é, em si mesma, necessária para a satisfação do dever de proteção ou de fomento; necessário é somente que alguma delas seja adotada”[41].

Mais adiante o publicista informa que a distinção é acolhida pelo Tribunal Constitucional Federal, quando entende que é dever do Estado proteger, mas a decisão de como proteger, compete ao legislador e não ao Poder Judiciário[42]. Este, quando da análise do controle de constitucionalidade, deve verificar primeiramente se o Estado adotou ao menos uma das medidas viáveis à proteção do Direito Fundamental, para posteriormente verificar se a medida adotada e escolhida pelo legislador atende ao fim perseguido e previsto na Constituição. Caso haja somente uma medida efetiva, o Estado deve adotá-la e, caso não o faça, terá falhado por omissão e ignorado o dever de proteção.

Nesse mesmo sentido, dispõe Sarmento, quando discorre acerca da novidade da jurisprudência alemã, que vem adotando “o conceito da proibição da insuficiência (untermassverbot)”, afiançando que esta é violada quando “a ação protetiva dos poderes públicos fica aquém do patamar mínimo necessário à tutela dos direitos fundamentais”. Entretanto, chama atenção o autor referido, para o controle efetuado pelo Poder Judiciário, que “deve ser mais comedido do que o empregado na fiscalização da proibição do excesso, exatamente em razão do maior grau de discricionariedade de que, em regra, dispõe o Estado no desempenho de tarefas comissivas relacionadas à garantia dos direitos fundamentais”[43].

Sem descurar desse mesmo raciocínio, Baltazar Júnior vem afirmar que:

na atual dogmática constitucional, os direitos fundamentais, ao lado da sua clássica função negativa de limitar o arbítrio das intervenções estatais na liberdade, ou seja da proibição do excesso (übermassverbot), passaram a desempenhar também o papel de mandamentos de proteção ao legislador, na chamada proibição de insuficiência (untermassverbot), que determina a existência de deveres de proteção jurídico fundamentais, na terminologia mais aceita, que enfatiza o aspecto da obrigação estatal, ou direitos de proteção jurídico-fundamentais, expressão que dá ênfase ao direito do cidadão, e não ao dever do Estado[44].

É de perceber, nesse trilhar, que o Estado, ao mesmo tempo em que possui dever de abstenção e de não intervenção, impedindo desarrazoadamente os Direitos Fundamentais, igualmente possui dever de promovê-los através de políticas públicas voltadas à efetivação material dos aludidos direitos, bem como através da confecção de normas jurídicas protetivas ao cidadão, sobretudo quando terceiros também são detentores de parcela de poder, como sói ocorrer nas relações laborais.

Essa forma de enxergar o dever estatal de tutela guarda intimidade com a clássica noção de existência do Estado[45], cabendo a este a proteção do povo territorialmente em si localizado, que, em tese, abdica de parcela de liberdade e privacidade em prol da salvaguarda estatal. E, quando no passado o Estado proibiu a autotutela, chamou para si a obrigação de proteger o cidadão em face de atos de terceiros, nascendo nesse momento já o próprio direito a prestação estatal, procedimento e organização.

Vale dizer, se os Direitos Fundamentais são tidos como “determinações de objetivos estatais”[46], também são compreendidos como direitos subjetivos à defesa contra atos de terceiros, atividade que deve ser promovida pelo Estado, através, sobretudo, da via legislativa.

Em outras palavras, a lição de Sarlet:

partindo-se de possível e prestigiada (embora não incontroversa) distinção entre uma dimensão negativa e positiva dos direitos fundamentais, convém relembrar que, na sua função como direitos de defesa os direitos fundamentais constituem limites (negativos) à atuação do Poder Público, impedindo ingerências indevidas na esfera dos bens jurídicos fundamentais, ao passo que, atuando na sua função de deveres de proteção (imperativos de tutela), as normas de direitos fundamentais implicam uma atuação positiva do Estado, notadamente, obrigando-o a intervir (preventiva ou repressivamente) inclusive quando se tratar de agressão oriunda de outros particulares, dever este que - para além de expressamente previsto em alguns preceitos constitucionais contendo normas jusfundamentais, pode ser reconduzido ao princípio do Estado de Direito, na medida em que o Estado é o detentor do monopólio, tanto da aplicação da força, quanto no âmbito da solução dos litígios entre os particulares, que (salvo em hipóteses excepcionais, como o da legítima defesa), não podem valer-se da força para impedir e, especialmente, corrigir agressões oriundas de outros particulares.[47]

Aparentemente a proibição da insuficiência é contrária à proibição de excesso, mas essa é uma impressão apenas primária, pois, se se firmar a lente por onde ambas são observadas, fácil será perceber que as duas são faces da mesma moeda.

Se há proibição de excesso, significa dizer que há dever de tutela, pois, se assim não fosse, seria impossível haver excesso, o que demonstra que ambos os conceitos estão mesmo inseridos no princípio da proporcionalidade, que, em linhas gerais, funciona como remédio, deve ser ministrado na exata dose, nem mais, nem menos. E essa dosagem é feita, em um primeiro momento, pelo Estado-Legislador ou Estado-Administração, mas, quando estes falham, em excesso ou em falta de seu dever, cabe ao Estado-Juiz administrar a dose exata de tal “remédio”, valendo afirmar mais uma vez que o Judiciário também é atrelado objetivamente aos Direitos Fundamentais. A simples interpretação que esvazia o conteúdo jurídico-fundamental, por si só, atenta contra os valores constitucionalmente estabelecidos.

Baltazar Júnior, após chegar à mesma conclusão, reafirmou o direito subjetivo à proteção, pontificando que “os direitos de defesa são, então, protegidos por meio dos deveres de proteção, que servem para uma intensificação de sua força de validez”. Ou seja, direitos de defesa e à prestação “funcionam como garantias estatais da liberdade em dois diferentes níveis ou momentos diversos, mas, de certa forma, complementares”[48].

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Sobre a autora
Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale

Juíza Auxiliar da 33ª Vara do Trabalho de Salvador/BA; mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia e professora convidada no curso de pós-graduação lato sensu desta instituição, bem assim da Faculdade Baiana de Direito; especialista em Direito Processual Civil e do Trabalho pela Universidade Potiguar, onde se formou e lecionou durante seis anos, as disciplinas Direito do Trabalho e Constitucional; Membro do Conselho e professora convidada da Escola Judicial do TRT da 5ª Região e da Escola Associativa da AMATRA5; Diretora cultural da AMATRA5, biênio 2013/2015; Diretora de Direitos Humanos da AMATRA5, biênio 2015/2017; Membro do Conselho Editorial da Revista Eletrônica do TRT da 5ª Região; autora de diversos artigos; ex-professora substituta da UFRN.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALE, Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira. Participação nos lucros e resultados: uma abordagem à luz do dever de proteção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5647, 17 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62459. Acesso em: 26 abr. 2024.

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