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Inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria do servidor público

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29/09/2020 às 15:10
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Reflete-se sobre a pena de cassação da aposentadoria, em face das alterações constitucionais que modificaram o regime próprio de aposentadoria, e sua suposta inconstitucionalidade.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Reforma previdenciária: de um benefício de natureza estatutária a um benefício de natureza previdenciária. 3 A cassação de aposentadoria no âmbito disciplinar da Lei 8.112/90. 4 Aposentação: regime jurídico administrativo e regime jurídico previdenciário. 5 A cassação da aposentadoria como pena inapropriada em face do atual regramento jurídico. 6 Conclusão. 7 Referências.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho se dispõe a descrever a atual concepção da pena de cassação de aposentadoria do servidor aposentado, que comete falta grave punível com demissão, com foco em apresentar sua inconstitucionalidade em face da reforma previdenciária, promovida pelas Emendas Constitucionais nº 03, de 1993, nº 20, de 1998, nº 41, de 2003 e nº 47, de 2005, principalmente pela tendência política de aproximar as normas dos Regimes Próprios às do Regime Geral de Previdência Social.

No atual panorama, a Administração Pública tem a prerrogativa de punir seus agentes com a cassação de sua aposentadoria, quando, na ativa, praticaram fatos puníveis com a demissão.

A problemática que envolve o tema reside justamente no fato de que, com a reforma previdenciária, foi instituído o sistema contributivo e solidário nos regimes próprios de aposentadoria de que trata o art. 40 da Constituição Federal. Deste modo, tornou-se inviável ao Poder Público, no âmbito de seu poder disciplinar, penalizar seus servidores com a pena de cassação de aposentadoria.

Nesse contexto, o objetivo geral é discutir sobre a inconstitucionalidade dessa sanção, face a reforma previdenciária supracitada.

Quanto aos objetivos específicos, tem-se em mente abordar princípios, normas, doutrinas e jurisprudências que fundamentam tal argumentação.

Como ponto de partida, pretende-se abordar mudanças no plano constitucional do Regime Próprio de Previdência Social e a consequente mudança da natureza de sua concessão, bem como a intenção do legislador em equipará-lo ao Regime Geral de Previdência Social.

O artigo científico divide-se em tópicos inteiramente organizados numa perspectiva de abordar o conteúdo de forma dinâmica, a fim de correlacionar todos os assuntos de forma íntegra e fundamentada.       


2 REFORMA PREVIDENCIÁRIA: De um BENEFÍCIO DE NATUREZA ESTATUTÁRIA A um BENEFÍCIO DE NATUREZA PREVIDENCIÁRIA

O Regime Próprio de Previdência Social da União é o regime de previdência, estabelecido no âmbito da União, que assegura, por meio de lei, aos servidores titulares de cargos efetivos, pelo menos, os benefícios de aposentadoria e pensão por morte previstos no art. 40 da Constituição Federal [BRASIL. 2008].

De acordo com o caput do art. 40 da Constituição [BRASIL. 1988]:

Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial.

Por equilíbrio financeiro a atuarial, ensina AMADO [2016, p. 1.287] que:

Equilíbrio financeiro é garantia de equivalência entre as receitas auferidas e as obrigações do RPPS em cada exercício financeiro, ao passo que equilíbrio atuarial a garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das obrigações projetadas, apuradas atuarialmente, a longo prazo, devendo os RPPS passar  por avaliações e reavaliações atuarias com o objetivo de dimensionar os compromissos do Plano de Benefícios e estabelecer o Plano de Custeio para a observância do equilíbrio financeiro e atuarial. [Grifou-se].

O caput do presente artigo, como exposto, prevê que o regime de previdência é de caráter contributivo e solidário. Quanto ao caráter contributivo, este foi inicialmente instituído pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993. Entre outras medidas, alterou o § 6º do art. 40 da Constituição, ao prever que as aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei.

Impende salientar que anteriormente às alterações iniciadas por esta Emenda Constitucional, a previdência social do servidor público possuía natureza de prêmio pelos serviços prestados ao Estado; deste modo, não havia custeio específico por parte do servidor.

Para melhor exposição do assunto, AMADO [2016, p. 1.283] ensina como se dava o sistema antes da instituição de um regime previdenciário de caráter contributivo, nos seguintes termos:

Inicialmente, o dispositivo não continha regra relativa à organização de um regime previdenciário propriamente dito. A aposentadoria não estava concebida como benefício previdenciário, computando-se, na sua concessão, apenas o tempo de serviço prestado ao Estado, ou a particular, sob égide de regime trabalhista. Na concessão, não se examinava a idade do segurado ou a existência de contribuição. Em resumo, o regime jurídico previdenciário se confundia com o regime jurídico de trabalho dos servidores públicos. Os benefícios eram concedidos como um benefício de natureza estatutária ou administrativa, e dependiam apenas do vínculo funcional, do tempo de serviço prestado ao Estado. Por isso, não exigiam a contribuição e seu valor correspondia à última remuneração do servidor, exceto nos casos dos proporcionais. [Grifou-se].

Em 1998, por meio da Emenda Constitucional nº 20/1998, foram introduzidas modificações mais significativas no art. 40 da Constituição Federal, assegurando-se o regime de previdência de caráter contributivo no caput do artigo, bem como suas formas de aposentação: por invalidez, permanente, compulsoriamente e voluntariamente.

Explica DI PIETRO [2016, p. 700] que:

A Emenda Constitucional nº 20/98 alterou a redação do art. 40 da Constituição Federal, assegurando aos servidores ocupantes de cargo efetivo regime de previdência de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial. [Grifou-se].

Verifica-se, nesse contexto, a intenção embrionária do legislador em equiparar as regras do Regime Próprio de Previdência ao Regime Geral de Previdência Social, uma vez que determinou no § 12, do art. 40, da CF, a aplicação subsidiária dos requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social aos regimes próprios de previdência social.

É o que explica AMADO [2016, p. 1.290]:

Há uma tendência política de aproximar as normas dos Regimes Próprios às do Regime Geral de Previdência Social, sendo esse movimento visível na redação do §12, do artigo 40, da CRFB, ao prever que o regime de previdência dos servidores públicos titulares de cargo efetivo observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral de previdência social. Logo, em caso de omissão, se houver compatibilidade, foi autorizada pela Constituição a utilização das normas das Lei 8.212/91 e 8.213/91 ao RPPS. [Grifo do autor].

Mais uma vez, o regime de previdência do art. 40 da Constituição Federal sofreu outras modificações, pelas Emendas Constitucionais nº 41, de 2003; nº 47, de 2005 e nº 88, de 2015, que, entre outras modificações, instituiu o regime solidário ao regime de previdência, bem como a contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e pensionistas.

Neste contexto, o regime previdenciário do servidor público, revestido de caráter contributivo e solidário, não mais pode ser considerado benefício de natureza estatutária ou administrativa. Tal instituto passou a ser considerado como benefício previdenciário, sujeitando-se ao regime previdenciário e suas especificidades.


3 A CASSAçÃO DE APOSENTADORIA NO ÂMBITO DISCIPLINAR DA LEI 8.112/90

No plano federal, a legislação definidora das normas básicas relativas ao regime jurídico dos servidores públicos é a Lei nº 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

A cassação da aposentadoria é uma sanção determinada no art. 127, inciso IV, da lei supramencionada, em que, a depender de processo administrativo disciplinar, significa uma pena semelhante à demissão, a romper o vínculo financeiro e jurídico da pessoa beneficiada com o Estado. Esta penalidade tem como consequência punir o servidor que houver praticado, na atividade, falta punível com a pena de demissão, conforme art. 134 da mesma lei.

A legislação brasileira, ao regulamentar a responsabilidade administrativa do servidor público, define os deveres e as proibições a ele aplicáveis, além de indicar a sistemática para a apuração de falhas e o consequente sancionamento [FURTADO. 2016, p. 858].

Ao tomarem posse em cargos públicos, os servidores se sujeitam a determinados regimes jurídicos que lhe impõem uma série de deveres e proibições, inclusive, sujeitando-se à prerrogativa da Administração Pública para puni-los.

Os deveres e as proibições estão respectivamente elencados nos artigos 116 e 117 deste instituto, em que se verifica uma série de condutas que o servidor deva agir ou se abster.

Ensina FUTARDO [2016, p. 594] que “no âmbito do Direito Administrativo, o poder punitivo se manifesta por meio do poder disciplinar”, acrescenta ainda que “somente os servidores públicos e outras pessoas que colaborem com a Administração Pública, de que seria exemplo uma empresa contratada, sujeitam-se ao poder disciplinar do Estado”.

Quanto ao tema, MEIRELLES [2011, p. 126] assim definiu o poder disciplinar:

[...] faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de funcionamento do serviço ou do estabelecimento a que se passam a integrar definitiva ou transitoriamente.

Neste sentido, por meio do poder sancionador, o Estado tem à sua disposição mecanismo eficaz para, diante de comportamento contrário aos normativos regentes da atividade administrativa, apurar eventuais irregularidades e, se comprovada a participação de servidor público, aplicar a devida sanção disciplinar [CGU. 2016, p. 39].

É importante destacar que a Administração Pública não pode agir sem que lei assim o defina, tal característica decorre do princípio da legalidade, este, explicita a subordinação da atividade administrativa à lei e surge como decorrência natural da indisponibilidade do interesse público [MELLO. 2015, p. 78].

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O princípio da legalidade da Administração Pública é uma pauta fechada de atuação do gestor público, determinando que todas as suas ações ou omissões somente serão desencadeadas quando ordenado pela lei.

Segundo MELLO [2015, p. 78]:

A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

Tal determinação vem listada na norma constitucional, em seu Art. 37, que assim prescreve:

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte [BRASIL. 1988].

Quanto à legalidade, aplicada à seara disciplinar, ensina COUTO [2017, p. 80] que:

A legalidade, como princípio da Administração Pública [...], significa que o gestor público está, em toda sua atividade funcional, inclusive nas sindicâncias e processos administrativos disciplinares, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e sujeitar-se às sanções administrativas, cíveis e penas previstas no ordenamento jurídico.

Percorrendo essa linha de pensamento, uma vez prevista na legislação vigente a possibilidade de cassação de aposentadoria, como sanção, esta, deve ser observada no âmbito da administração. Não há discricionariedade para que o gestor público, verificada a ilegalidade praticada por servidor, possa deixar de instaurar procedimento administrativo disciplinar para apuração de tal falta grave. Trata-se de um dever legal, ou dever em apurar, de modo que a autoridade que tiver ciência no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, nos termos do art. 143 da Lei nº 8.112/90.


4 aposentação: Regime jurídico administrativo e regime jurídico previdenciário

O dicionário Aurélio [2017] define aposentação como “Ato ou efeito de aposentar ou ser aposentado”. Tal instituto pode ser enxergado sob diversos enfoques, desde de seus trâmites para a sua concessão, bem como quanto aos regimes que o impliquem justificações.

No que tange a concessão de aposentadoria, está-se diante de um ato regido pelo regime jurídico administrativo, em que se deve obediência às regras e princípios que estruturam a Administração Pública.

Ensina DI PIETRO [2016, p. 64] que:

A expressão regime jurídico administrativo é reservada tão-somente para abranger o conjunto de traços, de conotações que tipificam o Direito Administrativo, colocando a Administração Pública numa posição privilegiada, vertical, na relação jurídico-administrativa. Basicamente pode-se dizer que o regime administrativo resume-se a duas palavras apenas: prerrogativas e sujeições.

FILHO [2015, p. 48] tem a seguinte definição:

O regime jurídico de direito público consiste no conjunto de normas jurídicas que disciplinam o desempenho de atividades e de organizações de interesse coletivo, vinculadas direta ou indiretamente à realização dos direitos fundamentais, caracterizado pela ausência de disponibilidade e pela vinculação à satisfação de determinados fins.

A aposentação do servidor público federal é concedida por meio de ato eminentemente administrativo, por sua vez, ato administrativo complexo, pois, além da manifestação do órgão ao qual o servidor é subordinado, é necessária a manifestação de vontade de órgão diverso, nesse contexto, o Tribunal de Contas da União – TCU, a fim de que se torne exequível.

É o que se expõe do julgamento do Mandado de Segurança nº 26.132, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que se tem por ementa [BRASIL. STF, 2016]:

Agravo regimental em mandado de segurança. Decisão do Tribunal de Contas da União. Aposentadoria. Ato complexo. Registro no TCU. Decadência. Inaplicabilidade. Conclusão pela ilegalidade do ato de concessão de aposentadoria. Possibilidade. Não há direito adquirido a regime jurídico. Ausência de violação dos princípios da separação dos poderes, da coisa julgada e da segurança jurídica. Agravo regimental não provido.

1. Consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não há direito adquirido a regime jurídico referente à composição dos vencimentos de servidor público, podendo, destarte, a Corte de Contas da União concluir pela ilegalidade do ato de concessão de aposentadoria se a conclusão obtida, embora respeitando decisão judicial transitada em julgado, se fundamenta na alteração do substrato fático-jurídico em que proferido o decisum (tais como alteração do regime jurídico do vínculo ou reestruturação da carreira).

2. É pacífica a jurisprudência da Corte no sentido de que o ato concessivo de aposentadoria, pensão ou reforma configura ato complexo, cujo aperfeiçoamento somente ocorre com o registro perante a Corte de Contas, após submissão a juízo de legalidade. Assim, a aplicação do prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99 somente se opera a partir da publicação do referido registro. [Grifou-se].

3. Desnecessidade de restituição das parcelas recebidas por força de medida liminar deferida com fundamento em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, cassada em virtude da recente mudança de entendimento. Projeção do postulado da confiança assentada pelo plenário deste Supremo Tribunal no julgamento do mandado de segurança n. 25.430 (Relator para o acórdão o Ministro Edson Fachin). Precedentes. 4. Agravo regimental não provido.

Quantos aos elementos extrínsecos, a aposentadoria, por se tratar elemento ligado a previdência social, sujeita-se também ao Regime Jurídico Previdenciário.

Impende mencionar que o Direito Previdenciário é o ramo de Direito composto por regras e princípios que disciplinam os planos básicos e complementares de previdência social do Brasil, assim como a atuação dos órgãos e entidades da Administração Pública e as pessoas privadas que exercem atividades previdenciárias [AMADO. 2016, p. 184].

Diante de tal contexto, podemos verificar a interconexão da aposentadoria com derivados ramos do Direito, especialmente com o Constitucional, onde toda a base da legislação previdenciária se encontra esculpida na Constituição Federal, notadamente nos artigos 40, 201 e 202 [AMADO. 2016, p. 184]; com o Administrativo, uma vez que as regras específicas quanto a este instituto encontram-se regulamentadas em lei, decretos e portarias que determinam direitos e procedimentos para a sua concessão; com o Tributário, em que se exige o pagamento de tributos classificados como contribuições previdenciárias, e com o Previdenciário, onde encontram-se regras e princípios que disciplinam os planos de previdência social no Brasil [AMADO. 2016, p. 184].

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Felipe. Inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria do servidor público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6299, 29 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62530. Acesso em: 27 abr. 2024.

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Nota dos editores: Alguns trechos deste trabalho podem estar desatualizados no momento de sua publicação na Revista Jus Navigandi.

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