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Petição inicial

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01/01/2019 às 14:20
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O mais poderoso sujeito processual é o autor, que dá os contornos pelos quais se deve pautar a atuação judicial.

INTRODUÇÃO

Um erro frequente do operador do direito processual civil seria pensar no sentido de que o Juiz seja o sujeito processual com maior poder de uma relação jurídica processual, e tal se dá na medida em que, não obstante o Juiz possa, de fato, decidir a lide, autorizar a produção de provas e mesmo desempenhar o poder de polícia em alguns casos, fato é que o mesmo opera de acordo com os parâmetros que lhe foram ditados pelo autor ao propor a demanda – tanto que o Juiz não pode fugir de tais parâmetros sob pena de prolatar decisão extra, ultra ou citra petita, o que é fator de nulidade de uma relação jurídica processual.

E como é cediço, desenvolveu-se no direito pátrio, a teoria dos vícios transrescisórios da decisão, formulada a partir da restauração da cláusula latina do Digesto Justianeu, no direito medieval, consubstanciada na forma da querela nullitatis insanabilis que ganhou força no ordenamento jurídico pátrio a partir da adoção da teoria no âmbito do Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Barbosa Moreira, em meados da década de 1970.

Ou seja, costuma-se apontar no sentido de que uma petição inicial apta seja um efetivo pressuposto processual de existência de uma relação jurídica processual – em síntese, inexiste processo se a petição não estiver apta a produzir um processo regular, ideia que pode ser embasada nos fundamentos da chamada escala ponteana dos atos jurídicos – os três planos do negócio jurídico (e atos processuais são espécies de atos jurídicos dos quais os negócios também são espécie) pela qual os atos antes de serem válidos e produzirem efeitos jurídicos (o plano da eficácia é o plano da perfeição) faz mister que se complete o suporte fático ou fattispecie do ato processual (plano da existência).

Pelo óbvio que não se pretende confundir os requisitos de validade material com validade processual, eis que se cuida de condições diferentes, mas que podem ser reunidas em uma teoria geral comum. Sobre a escala ponteana, apontar-se-ia o quanto asseverado pelo próprio Pontes de Miranda, em seu célebre Tratado de Direito Privado:

“Não há relação jurídica nula nem direito nulo, nem pretensão nula, nem ação nula, como não há relação jurídica anulável, nem direito anulável, nem pretensão anulável, nem ação anulável. Nulo ou anulável ou rescindível é o ato jurídico, inclusive o ato jurídico processual, como a sentença”.

... Em suma, o “fato jurídico, primeiro, é; se é, e somente se é, pode ser válido, nulo, anulável, rescindível, resolúvel etc.; se é, e somente se é, pode irradiar efeitos, posto que haja fatos jurídicos que não os irradiam, ou ainda não os irradiam”. ... O ato jurídico inválido não é ato inexistente, não é zero-ato jurídico, é ato jurídico menor que um (< 1)6. Ato inexistente não tem defeito; ele não é.  MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado.3ª. ed. São Paulo: RT, 1983, t. 4, p. 4. 3 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, t. 4, cit., p. 3. 4 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, t. 6, p. 141.

Em linhas gerais, antes que se considere da própria validade e eficácia do ato processual (campo antes da incidência apenas e tão somente da ação rescisória) alguns vícios processuais seriam extremamente graves a evidenciar a necessidade de declaração de sua inexistência pela via da ação autônoma, como se dá no caso dos autos (e como se apontará linhas adianta o estágio atual de desenvolvimento da teoria dos vícios transrescisórios permite mesmo a discussão de causas de graves nulidades).

Cuida-se evidentemente de situação que vem sendo estudada e desenvolvida pela dogmática processual, com contornos que tem sido fixados pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais pátrios. Fredie Didier aponta no sentido de que a teoria da querela nullitatis pode ser invocada nos casos de falta dos pressupostos processuais de existência da relação jurídica processual (ou da superação do conceito de relação processual pelo módulo processual de Élio Fazzlari – a relação processual em uma sociedade de confiança ou justified trust – ideia de que as instituições devam inspirar confiança justificada das pessoas – pedra angular das democracias participativas com Estados democráticos e de direito – conforme proposto por exemplo por Alain Peyrufitèe – deve ser pautada pelo reconhecimento de que cada processo traga em si um módulo processual básico que garanta um mínimo de garantias processuais) ou mesmo para comprometimentos sérios da validade com causas de nulidades absolutas.

Para que não se perca tempo com questiúnculas de menor importância, impende ponderar no sentido de que, em decisão publicada no conhecido site CONJUR, em 15 de maio do corrente ano (2017), a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Resp 14.56.632, em aresto da lavra da Ministra Nancy Andrighi acabou por reconhecer uma certa fungibilidade entre as situações de ação rescisória e querela nullitatis, determinando a ruptura com prelados de formalismo exacerbado, autorizando que vícios graves sejam discutidos no bojo dos processos de querela nulitatis. Hoje, há, portanto, uma certa fungibilidade que permite a concessão de maior elastério ao conceito da querela nullitatis insanabilis.

E como é cediço, os pressupostos processuais de existência estão relacionados aos sujeitos essenciais do processo (daí se referir a doutrina a situações em que não se tenha petição inicial apta, citação válida, Juiz dotado de investidura e falta de capacidade postulatória) – ou seja, a petição inicial em condições de correção é dado muito importante para a gênese de um processo e até mesmo para permitir a formação de coisa julgada – se processo não existe, a sentença não existiu e não existindo não será passível de formação de coisa julgada (enquanto fator de imutabilidade dos efeitos de uma decisão).

Ainda sobre a validade processual não seria desnecessário apontar no sentido de que precedentes recentes do STJ tem entendido a questão da nulidade ou vaidade do ato processual sempre à luz do pragmático adágio de direito franco pelo qual pás de nulitée sans grief, o qual, em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual não haverá nulidade sem prejuízo processual efetivo – artigos 278, 282 e seus consectários do Código de Processo Civil. Valem aqui os ensinamentos de Antônio Janyr Dall’agnol, em Invalidades Processuais, no sentido de que:

Em direito, e em especial no direito administrativo, é equivocado identificar ilegalidade e invalidez. A ilegalidade (no sentido amplo de irregularidade normativa) encerra um juízo de constatação, verificação ou conhecimento sobre uma específica relação entre normas (relação sintática): diz respeito à desconformidade de uma norma inferior em face de uma norma superior de observância obrigatória. Traduz juízo descritivo, segundo o qual norma inferior contraria norma superior, ou invade esfera própria de aplicação de norma especial, segundo o disposto em norma superior. A ilegalidade, a inconstitucionalidade, ou qualquer outra espécie de irregularidade jurídica, considerada neste sentido descritivo, encerra asserção presumidamente lógica (embora, por óbvio, também inevitavelmente axiológica). Mas a invalidez, reversamente, decorre de uma decisão jurídica, traduz um juízo normativo, adotado apenas a partir de uma ponderação entre o valor da legalidade/irregularidade e o valor da estabilidade das relações jurídicas, ou o valor de outro princípio jurídico reconhecido pelo sistema. A invalidez de um ato somente é decretada após uma avaliação de sua necessidade (isto é, decorre de um juízo sobre uma relação sintático-semântico-pragmática: norma-realidade norma da-utente da norma).

O juízo de invalidez normativa pressupõe o juízo de irregularidade da norma, mas nem toda irregularidade jurídica importa em invalidez. Há irregularidades não invalidantes, ou, no mesmo dizer, ilegalidades não invalidantes. São inúmeras as situações em que o ordenamento preserva a norma editada irregularmente como válida (irregularidades formais sem prejuízo, normas referentes a situações consolidadas, atos de funcionários de fato ou atos cuja decretação de invalidez importaria grave dano a princípios relevantes do ordenamento). Mais do que isso: o ordenamento encarrega-se de prever diversos mecanismos de preservação e correção de normas ilegais, ou irregulares: a convalidação, a conversão e a estabilização de normas ilegais. Neste diapasão, pode-se afirmar que a invalidez é uma forma de sanção da ilegalidade e não um efeito lógico necessário da irregularidade normativa.

A validade é uma qualidade contra-fática. As normas valem até que sejam invalidadas. Não há invalidez (ausência de obrigatoriedade de norma jurídica) automática. Toda invalidez reclama decretação. É impróprio, portanto, tratar da invalidez

16 Voto de relator proferido no julgados de Processos administrativos que tramitam na Universidade Federal da Bahia, iniciados em 2005 na Faculdade de Direito dessa universidade, tombados sob os números 23066.037018/05-68, 23066.037016/05-32, 23066.037023/05-06, 23066.037027/05-59, 23066.037045/05-31, 23066.037047/05-66. como conseqüência normativa em sentido semelhante à conseqüência presente nas relações fáticas. Não há causalidade entre a irregularidade na composição do suposto normativo e a invalidade como conseqüência. A relação é de imputação, não de causalidade. Trata-se de conseqüência que exige valoração e decisão; não se contenta com o simples conhecimento. Não há invalidez como dado original e ontológico de qualquer norma. A invalidez é qualidade atribuída, derivada de um juízo de ponderação que excede a mera apreciação da norma de forma isolada”.

Nessa ordem de ideias se apercebe que o autor é sujeito processual dotado de grande poder, que tem anos para se preparar para a demanda (o tempo que leva para o direito prescrever, em uma ideia inicial – sem que se abordem aspectos como o da teoria da actio nata objetiva x actio nata subjetiva, por exemplo) enquanto o réu tem parcos quinze dias após a realização da audiência de tentativa de conciliação pelas regras do CPC/15 – daí a necessidade de estudar, com maior vagar as relações que unem o autor ao processo e as balizas que devem ser seguidas pelo Magistrado na análise do que resta posto pelo autor em sua demanda.

E vale dizer que o Juiz estará adstrito, preso em sua atuação funcional,  ao quanto tiver sido destacado na causa de pedir de uma petição inicial. Ou seja, a motivação da decisão judicial estará ligada ao quanto destacado na causa petendi (fatos básicos que estejam em relação lógica com o que se vai pedir, autorizando o acolhimento do pedido).

A tarefa de analisar o tema proposto não é das mais amenas eis que cuidará de analisar um fenômeno que não é unívoco, como ocorre no caso da motivação no direito brasileiro, isso porque não existe consenso a respeito da natureza jurídica da motivação na doutrina nacional, posto que existem, pelo menos, duas correntes a respeito do tema. Para a primeira corrente, a motivação seria o “iter lógico” utilizado pelo Magistrado para chegar a uma decisão, ou seja, seria a demonstração do raciocínio do Juiz para chegar à sua conclusão, servindo, portanto, a que se conheçam tais razões.

Esta corrente estaria mais alinhada com o pensamento de autores constitucionalistas que entendem que o fundamento político de existência de um Poder Judiciário seria, justamente, a sua imparcialidade, cujo controle seria feito, dentre outras formas, pela obrigatoriedade de motivação dos atos judiciais (nesse sentido a opinião da minha saudosa professora Ada Pellegrini Grinover). Observe-se, aliás, a respeito do tema, a opinião do Ministro Alexandre de Moraes (STF), para quem: “Bandrés afirma que a independência judicial constitui um direito fundamental dos cidadãos, inclusive o direito à tutela judicial e o direito ao processo e julgamento por um Tribunal independente e imparcial.”[1]

E, ainda mais, com a motivação, se permite ao interessado conhecer as razões que levaram o Juiz a decidir, o que viabiliza o seu direito de inconformismo diante da decisão, possibilitando o exercício do direito ao duplo grau de jurisdição, implícito na ordem constitucional pátria. É da essência do contraditório efetivo (contradicere – garantido não só no artigo 5º, LIV CF mas também no artigo 7º CPC) que se possa ter acesso ao que levou o Magistrado a decidir nesse ou naquele sentido – ou seja, o referido controle de imparcialidade.

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O próprio Superior Tribunal de Justiça, enquanto órgão cuja função de padronização da legislação nacional infraconstitucional resta patente na Constituição Federal de 05.10.1.988 ( artigo 105 e seus consectários ), já se manifestou neste mesmo sentido, como se pode observar pelo teor da seguinte ementa:

A motivação das decisões judiciais reclama do órgão julgador, pena de nulidade, explicitação fundamentada quanto aos temas suscitados. Elevada a cânone constitucional apresenta-se como uma das características incisivas do processo contemporâneo, calcado no due process of law, representando uma garantia inerente ao Estado de Direito ( STJ – 4ª Turma, ROMS 6465-SP, Rel. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 29.10.1.997, D.J.U. 09.12.1.997, p. 64.705 ).

Para uma segunda corrente, a motivação não seria um caminho percorrido pelo Magistrado, mas, ao contrário, seria um discurso para justificar a decisão, visando convencer os jurisdicionados a respeito de seu acerto[2]. Para esta vertente do pensamento jurídico, a motivação não seria, elemento de validade de uma decisão judicial, mas elemento que colaboraria com o escopo da jurisdição, guardando pertinência maior com a função social da jurisdição, enquanto pacificação social de conflitos.

De todo modo, seja pela adoção de uma, ou de outra destas correntes, não se consegue, com clareza, divisar o limite, ou a medida em que se teria um parâmetro para aferir o conteúdo mínimo de fundamentação de uma decisão judicial, malgrado todos concordarem com o fato de que se cuida de providência obrigatória. Observe-se que a norma contida no artigo 489, par. 1º e seus incisos do CPC/15 parecia ser de clareza solar a respeito das balizas que deveriam ser seguidas pelo Julgador, mas, em certa medida, em nome da viabilidade do sistema judiciário (dados do CNJ dão conta de uma ação nova a cada cinco segundos no Brasil) que juízes não deveriam analisar todos os argumentos alinhados em uma peça exordial – no entanto é necessário pontuar no sentido de que todos os argumentos aptos a levarem à prolação de decisão em sentido contrário devem ser afastados – sem isso não há contraditório mínimo (artigo 7º CPC).

Tal questão alcança relevo ainda maior em sede de análise da petição inicial, que é o primeiro pressuposto de regularidade processual, na medida em que, nos termos da teoria angular da relação jurídica processual, tem-se que somente haverá processo a partir do momento em que se despachar (e tal expressão será questionada adiante) ou distribuir uma petição inicial.

E, mais ainda, na petição inicial, conforme é cediço, estarão as linhas básicas da futura e eventual controvérsia jurídica, sendo certo que, de via indireta, a própria exordial acabará por dar os contornos do exercício do direito de defesa (direito de exceção contraposto ao direito de ação, iniciado pela petição inicial) na medida em que não teria sentido o réu defender-se em relação a fatos ou institutos não mencionados na petição inicial, delimitando, ainda, o próprio exercício da atividade jurisdicional (não se pode esquecer que o Magistrado deve ficar adstrito ao pedido, sob pena de proferir decisões nulas, como nos casos de decisões ultra, infra ou extra-petita).

E lembra-se aqui a ideia apontada por Pontes de Miranda, em seu Tratado das Ações, no sentido de que a defesa seria um contradireito e não um direito. Somente se exerce a defesa quando o autor já deduziu sua pretensão – a ideia é a de que não posso protocolar minha contestação no fórum antes que o autor tenha apresentado sua petição inicial, ou seja, somente posso exercer meu contradireito de defesa depois que o autor exerceu o direito de ação.

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Sobre o autor
Julio César Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Gaculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Julio César Ballerini. Petição inicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5662, 1 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63126. Acesso em: 19 abr. 2024.

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