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Sobre a dispensabilidade da transcrição integral dos diálogos em uma interceptação telefônica

22/02/2005 às 00:00
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Uma das questões que mais preocupa as Autoridades Policiais que, no dia a dia, trabalham utilizando-se de interceptações telefônicas é a imprescindibilidade ou não da transcrição integral dos diálogos interceptados.

Neste breve artigo iremos demonstrar porque, em nosso entendimento, a transcrição integral não é imprescindível.

O cerne da questão encontra-se nos parágrafos 1º e 2º do art. 6º da lei 9296/96, in verbis:

"Art. 6º- (...)

§ 1º No caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada será determinada a sua transcrição.

§ 2º Cumprida a diligência, a autoridade policial encaminhará o resultado da interceptação ao juiz, acompanhado de auto circunstanciado, que deverá conter o resumo das operações realizadas. (...)"

Em uma interpretação puramente gramatical do § 1º do referido artigo poderíamos chegar a supor a imprescindibilidade da transcrição integral, contudo tal entendimento sucumbe diante de uma análise mais profunda. Cabe ao intérprete da lei muito mais que meramente empregar as normas gramaticais para aplicar o direito ao caso concreto. Deve, pois, buscar o espírito da lei, sob pena de cometer injustiças.

Então, qual teria sido o escopo do legislador ao incluir o mencionado parágrafo no corpo da lei, senão permitir ao acusado o exercício de seus direitos constitucionais da ampla de defesa e do contraditório?

Não se pode imaginar em um estado democrático de direito um processo penal sem o respeito a estas garantias fundamentais da dignidade humana.

Portanto o acesso do acusado e de sua defesa técnica ao resultado das diligências é sem dúvida alguma imprescindível ao regular curso do processo. Contudo, segundo nosso entendimento, isto somente poderia ocorrer após o encerramento da medida requerida, sob pena de se ver frustrada a própria diligência.

Assim, caso a interceptação telefônica ocorresse no curso da investigação criminal, o momento da ciência do acusado sobre a existência da referida medida cautelar seria o do oferecimento da denúncia já que, duarnte o inquérito, o procedimento é inquisitivo.

Verificamos, deste modo, que o acesso do acusado ao conteúdo das interceptações é indispensável ao regular curso do processo. Porém, como se dá este acesso? Seria necessária a transcrição integral de todos os diálogos?

Parece-nos que a resposta a esta questão somente pode ser negativa. O objetivo do parágrafo 1º do art 6º da lei de regência é assegurar o respeito aos princípios da ampla defesa e do contraditório, permitindo que o acusado tenha acesso a todo o material obtido por intermédio da medida cautelar em análise tornando possível, desta maneira, que sua defesa técnica possa executar plenamente seu mister.

Destarte, para que sejam respeitados os princípios constitucionais mencionados basta que a defesa tenha acesso integral ao material da interceptação, de forma a possibilitar o seu exercício.

O direito de defesa poderá ser perfeitamente exercido se forem disponibilizados à defesa, em meio magnético, todo o conteúdo. E estará sendo exercido de forma mais eficiente, uma vez que a gravação em áudio permite reconhecer o tom de voz em uma conversa interceptada, o que possibilita que se distinga uma ironia ou simples brincadeira, que podem mudar completamente o sentido de uma frase. Observe-se que a transcrição, da forma que odiernamente é feita, somente a letra fria no papel, não é capaz de captar estas nuances da linguagem falada.

Outro aspecto que a prática do trabalho policial nos permite conhecer é que somente uma pequena parte dos diálogos interceptados diz respeito aos fatos sob investigação. Em sua imensa maioria as gravações se referem a conversas normais do cotidiano, como as realizadas entre pais e filhos, marido e mulher, etc.

A transcrição destes trechos, além de caracterizar uma invasão desnecessária na privacidade dos investigados, representa uma clara ofensa ao princípio da economia processual, já que o trabalho de transcrição integral exige uma grande quantidade de pessoal e de tempo para ser concluído, gerando, também, um imenso volume de documentos sem qualquer relevância para o processo.

Esta excessiva burocratização gerada pela exigência da transcrição integral desatende, ainda, ao princípio da instrumentalidade das formas, já que é possível atender à ampla defesa e ao contraditório somente com o áudio das interceptações, qual seria a necessidade de se despender tempo, pessoal e dinheiro público em um serviço de pouca relevância para o transcurso do processo penal?

O princípio da eficiência, previsto no art. 37, caput, de nossa Lei Maior, também encontra-se ferido, a nosso ver, diante da exigência de transcrição integral da interceptação. O Aparelho Policial Estatal estaria deixando de realizar outras investigações cujos resultados poderiam ser bastante relevantes na luta do Estado contra o crime organizado.

Para aqueles mais apegados à forma, atento ao nosso vetusto diploma adjetivo penal pátrio e a nossa tradição de reduzir todos os atos processuais a escrito, podemos, ainda, sugerir uma solução salomônica, em que tanto a defesa quanto a acusação de posse do áudio da interceptação, indicariam os trechos de relevância para o processo, e somente estes seriam objeto de degravação, desonerando a polícia judiciária.

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Não haveria no caso concreto qualquer prejuízo à defesa se ao invés da transcrição integral, fosse disponibilizado o áudio das gravações em meio magnético. Existe, neste mesmo sentido, jurisprudência do STJ:

"(...)II - Não obstante, in casu, tenha sido indeferido o pleito de

degravação das conversas telefônicas, é de se observar que, por

outro lado, possibilitou-se o acesso da defesa ao seu conteúdo

durante a instrução processual, podendo o acusado, como de fato o

fez, defender-se da prova que contra si fora produzida.

III - Violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório não

caracterizada.(...) (DJ 15.12.2003 p.00340, STJ, 5ª Turma)."

Além disso, verifica-se que o parágrafo 2º do referido artigo determina apenas a remessa do resultado da interceptação ao juiz, não especificando de que forma este resultado será remetido, podendo-o ser, de acordo com a nossa opinião, na forma de transcrição ou do próprio áudio.

Em razão do acima exposto, verificamos que os parágrafos mencionados vieram assegurar o acesso da defesa ao conteúdo dos diálogos interceptados, e não exigir da polícia judiciária a transcrição integral de toda interceptação, sob pena de tornar inexeqüível o procedimento de interceptação, diante da dificuldade prática de se efetuar este serviço.


BIBLIOGRAFIA

Lênio L. STRECK, "A escuta telefônica", em Enfoque Jurídico, TRF 1ª Região, n.1, p.4.

Gomes, Luis Flávio e Cervinni Raúl, "Interceptação Telefônica – lei 9296, de 24/07/96", São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997

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Sobre o autor
Wellington Clay Porcino

Delegado de Polícia Federal, Coordenador da Força Tarefa de Repressão aos Crimes Previdenciários no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORCINO, Wellington Clay. Sobre a dispensabilidade da transcrição integral dos diálogos em uma interceptação telefônica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 594, 22 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6332. Acesso em: 24 abr. 2024.

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