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A necessidade de criação do estatuto de proteção integral da pessoa transplantada

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Ao tempo em que se enaltece o esforço do Estado em buscar a inclusão social das pessoas com deficiência, não podemos deixar de alertar sobre o surgimento de uma nova minoria, fruto da evolução tecnológica.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa pretende enfrentar a temática relacionada à necessidade da criação de um estatuto de proteção integral voltado especificamente às pessoas transplantadas com o propósito de definir um rol mínimo de direitos protetivos partindo-se do paradigma dos direitos tutelados pelo ordenamento pátrio as pessoas com deficiência.

Em meio aos avanços tecnológicos da medicina e as políticas públicas voltadas ao transplante, o Brasil alcançou, na última década, o patamar de segundo lugar no mundo em número de transplantes realizados. Contudo, a partir do procedimento médico de transplante tem surgido uma nova minoria social de pessoas transplantadas que ainda se encontram desassistidas pelo ordenamento jurídico pátrio.

Diante dessa realidade, a presente pesquisa parte das seguintes problemáticas: Existem no ordenamento jurídico brasileiro normas legais especialmente voltadas à proteção da pessoa transplantada ou que poderiam ser utilizadas para esse fim? Quais as consequências da falta de normas especialmente criadas para a pessoa transplantada? Seria possível criar um estatuto específico à tutela desse segmento social com fundamento na Constituição Federal?

Com o grande número transplantes realizados no país milhares de pessoas transplantadas necessitam ser reincluídas na sociedade. Por esse motivo, o presente estudo tem o objetivo de demonstrar a necessidade da criação de um estatuto de proteção integral voltado especificamente à reinclusão social dessa minoria, que garanta a elaboração de políticas públicas como, por exemplo, de incentivos fiscais às empresas que venham a contratar uma pessoa transplantada.

Essa pesquisa justifica-se na medida em que pretende evidenciar a ausência de normas jurídicas voltadas a pessoa transplantada e, por conseguinte, demonstrar a necessidade de criação de um rol mínimo de direitos voltados à tutela dessa minoria social a partir de uma interpretação sistêmica da Constituição Federal, e com isso conscientizar a sociedade e as autoridades públicas da realidade social enfrentada por essas pessoas.

Ao mesmo tempo em que o Brasil comemora o segundo lugar no mundo em número de transplantes realizados, surge juntamente, a necessidade de reflexão acerca da proteção desses brasileiros pelo Estado após o procedimento médico de transplante. É nesse momento de retorno ao convívio social que a pessoa transplantada evidencia a ausência de direitos voltados à sua proteção, especialmente no retorno ao mercado de trabalho, diante da inexistência de previsão constitucional expressa e de uma legislação infraconstitucional de tutela dos direitos da pessoa transplantada.

Após o transplante é necessário que a pessoa transplantada faça um grande esforço físico e mental para se adaptar às suas novas condições de vida, principalmente sob o ponto de vista biológico, psicológico e social. Segundo especialistas, a pessoa transplantada enfrenta questões psicológicas intensas, a degradação física, o uso contínuo de medicamentos imunossupressores, as consultas médicas regulares e, principalmente, a incerteza da vida causada pelo medo da rejeição do órgão. Essas situações vivenciadas após o transplante podem gerar grandes dificuldades para a pessoa transplantada conseguir sua reinserção social na família, na sociedade, e ainda vir a causar a incapacidade para o trabalho.

Diante dessa realidade, a criação do estatuto visa assegurar um sistema normativo voltado especialmente à pessoa transplantada. Nesse sentido, cabe esclarecer que se procurou padronizar nesse estudo o uso da expressa “pessoa transplantada” com a finalidade de demonstrar a necessidade de garantia da dignidade da pessoa humana dessa parcela aos moldes da pessoa com deficiência.

A realidade enfrentada após o transplante precisa ser analisada com o devido respeito e enfrentada de maneira sistêmica e integral, ou seja, deve ser tratada sob o ponto de vista de todos os aspectos da vida da pessoa transplantada, como a saúde, o transporte, a assistência social, a previdência e o trabalho, a fim de garantir sua reinclusão social e com isso proporcionar uma vida digna.

Para criação do Estatuto de Proteção Integral da Pessoa Transplantada partiu-se da análise da legislação pátria de tutela da pessoa com deficiência a fim de se definir um rol mínimo de direitos extensíveis a pessoa transplantada e, no âmbito internacional, utilizou-se como referência a Lei n. 26.928, promulgada pelo parlamento Argentino, em janeiro de 2014, a qual instituiu o “sistema de protección integral para personas trasplantadas”, primeira lei no mundo sobre o tema.

No que se refere ao procedimento metodológico, o presente estudo classifica-se quanto aos objetivos da pesquisa como descritiva e exploratória; quanto ao método e forma de abordagem do problema a pesquisa é classificada como qualitativa e quantitativa; e quanto aos procedimentos adotados para a coleta de dados refere-se a uma pesquisa bibliográfica e documental.


CAPÍTULO I

A PESSOA TRANSPLANTADA: GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS COMO FUNDAMENTO DE CRIAÇÃO DO ESTATUTO DE PROTEÇÃO INTEGRAL DA PESSOA TRANSPLANTADA

A dignidade da pessoa humana, como princípio constitucional que fundamenta todo o arcabouço jurídico brasileiro, deve servir de fonte primária para qualquer interpretação constitucionalmente que se faça necessária. Cabe enaltecer que a conquista do respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos fundamentais simboliza a evolução social humana por meio da justiça e do combate à exploração do homem pelo seu semelhante.

Significa de tal modo a vitória da liberdade contra a opressão e da paz contra as barbáries da guerra. Nos ensinamentos de Nunes (2002, p. 38) “[...] torna-se necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades, que, infelizmente, marca a existência humana”. A dignidade humana simboliza um verdadeiro superprincípio constitucional, significando a norma maior que deve orientar o constitucionalismo contemporâneo, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido. (PIOVESAN, 2003, p. 393).

Diante da importância da dignidade para o ordenamento jurídico, os operadores do direito precisam observar este supraprincípio. Nas lições de Nunes (2002) a dignidade ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais, por isso quando houver a necessidade de interpretação, aplicação ou criação de norma jurídica a dignidade da pessoa humana jamais deve ser desconsiderada.

Com relação aos direitos e garantias fundamentais, estes têm como fundamento jurídico principal a dignidade da pessoa humana, que funciona como pilar de sustentação de todo o sistema constitucional brasileiro. Ela torna-se o verdadeiro plano de fundo direcionador dos direitos humanos fundamentais, que por sua vez nela encontram seu principal fundamento.

Diante da realidade enfrentada pela pessoa transplantada, surge a necessidade de reflexão a cerca da garantia de proteção contra toda e qualquer atividade que possa vir a lesar seus direitos. Na medida em que o Estado Brasileiro adota políticas públicas voltadas ao incentivo ao transplante e possibilita o desenvolvimento de novas tecnologias, precisa também aperfeiçoar seu ordenamento jurídico de tutela às pessoas transplantadas, ou seja, reinserir essa parcela na sociedade e no mercado de trabalho.

Portanto, para a construção de um estatuto de proteção jurídica da pessoa transplantada o parlamento brasileiro deve guiar-se a luz da garantia da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

1.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DE PROTEÇÃO DA PESSOA TRANSPLANTADA

Diante da ausência de uma legislação voltada especificamente à proteção da pessoa transplantada, surge a reflexão acerca da garantia da dignidade da pessoa humana dessa minoria social, tendo em vista que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana é reconhecido como a viga mestra da qual se edificam todos os direitos humanos fundamentais voltados à tutela do ser humano. 

Nesse contexto, é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana não decorre do ordenamento jurídico, portanto, ela não existe somente onde é reconhecida pelo direito, uma vez que é anterior a ele e constitui-se num bem inato do ser humano que não pode ser concedido ou retirado das pessoas. (MARTINEZ, 1996).

A dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito, no qual o Brasil se constitui, possui um valor supremo de democracia que fundamenta todo o ordenamento jurídico. (SILVA, 2002). Pode-se afirmar que a República Federativa do Brasil tem como pedra fundamental de todo seu sistema constitucional pátrio a dignidade da pessoa humana, cuja previsão encontra-se expressa no artigo 1º, inciso III da Carta Magna. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Frente à importância da dignidade da pessoa humana para o sistema constitucional pátrio, o qual consagra o homem como centro do universo jurídico, parte-se para a seguinte indagação: qual o significado do termo dignidade da pessoa humana? Para responder essa questão central, é importante ressaltar que explicar o significado de dignidade da pessoa humana é uma tarefa bastante complexa, uma vez que, embora a sua compreensão seja relativamente fácil, é uma expressão carregada de sentimentos. (CARVALHO, 2006).

De acordo com Nunes (2002, p. 38), o conceito de dignidade foi sendo construído no decorrer da história, fruto da reação às atrocidades que infelizmente marcam a experiência humana. Para o autor, é necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica. A dignidade não cuida de aspectos específicos da existência humana como a integridade física, a intimidade, a vida, ou a propriedade, mas sim de uma qualidade tida como inerente, atribuída a todo e qualquer ser humano, ou seja, um valor próprio que identifica o ser humano como tal. (SACHS, 2000 apud SARLET, 2012, p. 50).

Sempre que se procurar explicar o significado de dignidade da pessoa humana, é indispensável fazer-se referência aos ensinamentos do filósofo Immanuel Kant. Apresenta-se a seguir o conceito de dignidade nas palavras de Kant, em respeito a tamanho significado filosófico:

No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (KANT, p. 134 apud SARLET, 2012, p. 40).

Para o filósofo Kant, o homem deve existir como um fim em si mesmo, e nunca ser utilizado como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações o ser humano tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais. (KANT, p. 134 apud SARLET, 2012, p. 40).

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Portanto, o homem como ser racional nunca deve ser considerado um meio para os outros seres, mas fim em si mesmo. Depreende-se desses ensinamentos de Kant que a pessoa humana encontra-se no reino dos fins, do que podemos compreender o ser humano como um ser com dignidade própria, que possui uma dignidade nata que o caracteriza.

Para Kant o ser humano por ser possuidor de razão e manter sua autonomia de vontade, consequentemente possui a faculdade de autodeterminação e consciência para agir de acordo com a representação de certas leis que ele próprio faz. (SARLET, 2012). Evidencia-se da base teórica Kantiana que a dignidade da pessoa humana impossibilita a coisificação e a instrumentalização do ser humano, já que este deve ser considerado um fim e não como um meio. (BAEZ, 2010, p. 24).

A dignidade da pessoa humana tem como núcleo principal o direito do indivíduo de se autodeterminar, conforme a sua própria razão, no que diz respeito às decisões essenciais relativas a sua própria existência, portanto considera-se um atributo inerente a todos os seres humanos. (DWORKIN, 2003). Como um valor humano, a dignidade compromete-se em propiciar aos indivíduos condições para que possam ter uma vida decente conforme suas as necessidades mais íntimas, ou seja,  segundo as particulares de cada indivíduo.

Esse valor intrínseco do ser humano proporciona ao mesmo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais e felicidade, e onde esta autonomia lhe faltar ou não puder ser atualizada, ainda assim deve ser considerado e respeitado pela sua condição humana. (KOPPERNOCK, 1997 apud SARLET, 2012, p. 63).

Nas lições de Nunes (2002), em relação à dignidade este pondera no sentido de que o ser humano vive no meio social e que nenhum indivíduo é isolado. O ser humano nasce com integridade física e psíquica, e no decorrer da vida chega num momento de seu desenvolvimento em que seu pensamento, suas ações e seu comportamento, têm de ser respeitados, bem assim sua liberdade, imagem, intimidade, consciência, religiosa, científica,, etc., afinal tudo compõe sua dignidade.

Para Moraes (2003, p. 60), a dignidade da pessoa humana apresenta-se com dupla concepção, "a primeira prevê um direito individual protetivo em relação ao próprio Estado e aos demais indivíduos, a segunda estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes".

A dignidade da pessoa humana deve ser considerada como um direito individual protetivo de receber tratamento igualitário tanto do Estado quanto dos demais indivíduos, no sentido material de igualdade, ou seja, de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, suprindo suas as carências físicas, intelectuais, econômicas e sociais. (PEZZELLA e BORBA, 2012, p. 243).

Para Silva e Spengler Neto (2005), a experiência nazista resultou em inúmeras atrocidades que afrontaram a dignidade da pessoa humana. As crueldades praticadas pelos nazistas são consideradas "o marco histórico que gerou a consciência de que se deveria preservar a dignidade da pessoa humana a qualquer custo, devendo-se, assim, lutar contra tudo que a viole".

Em 1948, a Organização das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, após as desumanidades da Segunda Guerra Mundial. Em seu preâmbulo a declaração afirma que "o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.”  (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948).

Para Piovesan (1996), a Declaração Universal dos Direitos Humanos é o documento alicerce da luta universal contra a opressão e a discriminação. Ela defende a igualdade e a dignidade das pessoas, e reconhece que os direitos humanos e as liberdades fundamentais que devem ser aplicados a todos os indivíduos do planeta. Essa declaração "vem a atestar o reconhecimento universal de direitos humanos fundamentais, consagrando um código comum a ser seguido por todos os Estados".

A referida declaração "constitui a mais importante conquista dos direitos humanos fundamentais em nível internacional", proclamando "a necessidade essencial dos direitos da pessoa humana serem protegidos pelo império da lei, para que a pessoa não seja compelida, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão". (MORAES, 2003, p. 34-36).

O Tribunal Constitucional da Espanha, inspirado na Declaração Universal, manifestou-se no sentido de que a dignidade da pessoa humana deve ser considerada "um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”. (LLORENTE, p. 72 apud SARLET, 2012, p. 55).

Tarefa imposta a todos os Estados, a dignidade da pessoa humana exige que os Estados conduzam as suas atuações "tanto no sentido de preservá-la, quanto objetivando a promovê-la, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição dessa dignidade.” (PODLECH, 1989, p. 280 apud SARLET, 2012, p. 56).

Em 1988, a Constituição Federal Brasileira foi promulgada sob forte influência das Cartas Constitucionais de outros Estados que garantiam a proteção dos direitos humanos. É marcante nessa Carta Magna a tutela dos direitos fundamentais, sob o fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana como substrato principal para todos os demais direitos e garantias individuais e coletivos. O Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio da dignidade do ser humano. (CASTRO, 2003, p. 19).

Pode-se concluir que a dignidade da pessoa humana é inerente a todo ser humano pelo simples fato de existir, portanto merece toda proteção do Estado. O ser humano não deve sofrer qualquer forma de discriminação em razão de sua deficiência, condição física, saúde, raça, credo, ou crença religiosa. Consequentemente, toda interpretação da norma, na aplicação do ordenamento pátrio, deve fundar-se nesse princípio constitucional central da República Brasileira.

Portanto, em que pese a ausência de norma protetiva específica que garanta os direitos da pessoa transplantada, essa lacuna jamais pode ser interpretada como ausência de direitos desse segmento social, mas sim como um dever do Estado de  atender essa iminente necessidade por meio da edição de um estatuto protetivo sob o manto constitucional da dignidade da pessoa humana.

1.2 OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS COMO GARANTIA DA TUTELA DA PESSOA DA PESSOA TRANSPLANTADA

Inicialmente, para fins de discussão acerca da melhor terminologia a ser adotada, apresenta-se a distinção do significado dos termos “direitos humanos”, “direitos fundamentais” e “direitos humanos fundamentais”, que comumente são utilizados como sinônimos. Para este estudo preferiu-se adotar a expressão direitos humanos fundamentais para demonstrar a necessidade de tutela da pessoa transplantada, na medida em que esta expressão tem o condão de reforçar a unidade essencial e indissolúvel entre os direitos humanos e os direitos fundamentais.

Os direitos humanos são aqueles positivados nos tratados e declarações internacionais, que têm por base a dignidade humana, e em sua dimensão básica são universais. Constituem um conjunto de normas que impedem a redução do indivíduo à condição de objeto. Os direitos humanos vêm sendo reconhecidos e implantados lentamente, ao logo da história, como forma de realização da dignidade humana. (BAEZ, 2010, p. 29).

A expressão direitos humanos guarda relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional. Eles aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional. (SARLET, 2006, p. 35-36). Para Diniz (2001, p. 19-20), “os direitos humanos, decorrentes da condição humana e das necessidades fundamentais de toda pessoa humana, referem-se à preservação da integridade e da dignidade dos seres humanos e à plena realização de sua personalidade”.

Já os direitos fundamentais são agentes da realização dos direitos humanos, no interior da ordem jurídica de cada país, tendo como limite a dignidade da pessoa humana, impedindo qualquer forma de redução do indivíduo à condição de objeto ou a diminuição de seu status como sujeito de direitos. (BAEZ, 2010, p. 29). O termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado. (SARLET, 2006, p. 35-36).

Nesse diapasão, os direitos humanos são frutos de processos culturais de emancipação do ser humano na luta constante pela dignidade da pessoa humana, enquanto os direitos fundamentais são os resultados de processos culturais de regulação das conquistas alcançadas pelos processos emancipatórios. Logo, os direitos fundamentais não são apenas a positivação dos direitos humanos, mas a garantia das conquistas que aqueles alcançaram, pois os direitos humanos cabem dentro dos direitos fundamentais, mas deles extravasam. (PEZZELLA e BORBA, 2012, p. 243).

A compreensão e a delimitação do conceito dos direitos fundamentais foram sendo construídas na realidade social com o surgimento do mundo moderno, nos séculos XV e XVI. Trata-se de um conceito histórico que foi sendo costurado em conjunto com a realidade e submetido a esses elementos que concorrem para a sua percepção pelo Direito Positivo. (PEZZELLA e BORBA, 2012, p. 233).

Finalmente, os direitos humanos fundamentais podem ser conceituados como o conjunto de valores éticos, positivados ou não, que visam a proteger e realizar a dimensão básica da dignidade humana, impedindo que os indivíduos sofram qualquer tipo ou redução legal ou moral ao seu status como sujeitos de direitos. (BAEZ, 2011 p. 45). Para Sarlet (2012), o uso da expressão direitos humanos fundamentais auxilia a ressaltar que os direitos humanos também buscam reconhecer certos valores e reivindicações essenciais a todos os seres humanos.

Assim, determinado direito humano fundamental, como o direito à vida, deve persistir e ser invocado, mesmo nos estados ou sociedades que não o reconheçam dentro de suas ordens jurídicas internas, pois é por natureza inerente a todos os seres humanos. Essa característica permite destingi-los claramente dos direitos fundamentais, uma vez que esses últimos, para existirem, devem passar por um processo de positivação e reconhecimento no direito interno dos Estados. (CANOTILHO, 1999 apud BAEZ, 2011, p. 46).

Para Moraes (2003, p.39), os direitos humanos fundamentais podem ser definidos como o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que têm por finalidade o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

Os direitos humanos fundamentais "colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a limitação do poder e visar o pleno desenvolvimento da personalidade humana". (MORAES, 2003, p. 20). Desse modo "o respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra-mestra na construção de um verdadeiro Estado de direito democrático". (MORAES, 2003, p. 21-22).

Remonta ao antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a. C., a origem dos direitos humanos fundamentais, onde já eram previstos alguns mecanismos de proteção individual em relação ao Estado. O forte desenvolvimento dos direitos humanos deu-se do final do século XVIII, após a Revolução Francesa e estendeu-se até o século XX, culminando em 1948 na edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos. (MOARES, 2003, p. 24-25).

Com o surgimento do Estado, surge também o indivíduo como senhor de direitos, que deixa de ser súdito para ser cidadão, e a construção de um vínculo político-jurídico entre o cidadão e o Estado, onde esse último assume a soberania. O Estado tem o dever de atuar de maneira a proteger, tutelar e prover as necessidades com vistas sempre a reequilibrar as relações no plano concreto dos fatos que se desenvolvem no cotidiano. (PEZZELLA e BORBA, 2012, p. 233).

Em relação aos direitos humanos fundamentais a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) consagra especialmente o direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, à igualdade e à liberdade de pensamento, consciência e religião nos seus artigos III, VII e XVIII:

Artigo III

Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

[...]

Artigo VII

Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

[...]

Artigo XVIII

Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião.

Quanto mais desenvolvida culturalmente for uma sociedade, mais protegida será a dignidade da pessoa humana, e mais próxima de uma realização efetiva dos direitos fundamentais. Uma sociedade que não discute e não permite uma ampla discussão social e jurídica da importância da pessoa em sua plenitude, na perspectiva física e psíquica, deixa de cumprir o seu papel principal de desenvolvimento integral da pessoa. (PEZZELLA e BORBA, 2012, p. 241).

Nas lições de Bobbio (2004) em sua clássica obra “A Era dos Direitos”, os direitos humanos apresentam-se em gerações, também consideradas pela doutrina como dimensões. A primeira dimensão corresponde aos direitos de liberdade, ou um não agir do Estado. A segunda dimensão representa os direitos sociais, ou também uma ação positiva do Estado, ou seja, uma realização prática. A terceira dimensão constitui-se numa categoria heterogênea de direitos como: solidariedade, fraternidade, direito a paz e de viver num ambiente não poluído. A quarta dimensão decorre das pesquisas biológicas, que também permitirão a manipulação do patrimônio genético de cada indivíduo.

Portanto, nas palavras de Sarlet (2009, p. 87), pode-se concluir que os “todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual seriam concretizações”. Nesse sentido, “há uma relação indissociável entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais, pois estes são explicitações da dignidade”. De modo que “em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”.

No ordenamento jurídico brasileiro, em relação ao transplante de órgãos e tecidos, pode-se identificar direitos fundamentais tanto do doador e quanto do receptor por meio da interpretação constitucional. Tendo em vista o objetivo deste estudo, tratar-se-á especialmente do receptor (pessoa doente), demonstrando-se o seu direito fundamental de submeter a um transplante a partir da interpretação sistêmica constitucional da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade do direito à vida, do direito de liberdade de consciência, do direito à integridade física, do direito ao próprio corpo, do direito de personalidade e do incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento científico, dentre outros.

Conforme amplamente exposto, a dignidade da pessoa humana é um valor moral e espiritual inerente ao ser humano, da qual emanam todos demais direitos fundamentais. Toda pessoa é dotada desse preceito, que se constitui o princípio máximo do Estado Democrático de Direito. Portanto, diante da existência de uma doença crônica incurável que coloque em risco a vida de um ser humano, a dignidade da pessoa humana é o valor nato que garante o seu direito a submeter a um transplante na busca de uma melhor qualidade de vida.

Os direitos humanos fundamentais são todos os direitos mais próximos e indissociáveis do gênero humano, dos quais o direito à vida é o maior bem tutelado pelo ordenamento jurídico, haja vista que sem esta, a própria sociedade não existiria. Para Moraes (2004, p. 65), “o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”.

O artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, assegura a inviolabilidade do direito à vida. Esse dispositivo constitucional determina que cabe ao Estado assegurar o direito à vida em sua dupla acepção, a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter uma vida digna quanto à subsistência. Nesse viés, o direito à vida deve ser entendido como direito a um nível adequado com a condição humana. (MOARES, 2003, p. 87).

Em relação ao direito de liberdade de consciência, o filósofo Immanuel Kant, no final do século XVIII, visualizou a liberdade como liberdade de consciência e, segundo ele, deveria ser protegida, somente podendo ser coibida a conduta exteriorizada. Porém, foi na Idade Moderna que a liberdade passou a ser sinônimo de consciência, onde a ideia da liberdade é tida como fenômeno subjetivo baseado na consciência individual. (CABRAL, 2009).

A Constituição Federal no artigo 5º, inciso VI, tutela a liberdade de consciência que se caracteriza como exteriorização do pensamento e está intimamente ligada às liberdades de expressão e de pensamento. Como um direito fundamental decorrente da dignidade da pessoa humana, o receptor detém o direito de liberdade de consciência de se submeter a um transplante. (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

O direito à integridade física é um direito fundamental que encontra guarida no artigo 5º, incisos III e XLVII da Carta Magna, sob as formas tendentes a abolir excessos como a tortura, as penas cruéis e o tratamento desumano ou degradante. Trata-se de uma proteção jurídica que busca evitar ao ser humano o dano físico, o prejuízo à saúde ou a perturbação às facultadas mentais, essa tutela repercute na legislação penal com a previsão de sanções as ações de ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem (art. 129, caput, do Código Penal), e na legislação civil onde constitui ato ilícito (art. 949 e arts. 189, 187 e 927 do Código Civil). (CATÃO, 2004, p. 168).

A integridade física também encontra previsão legal no artigo 13 do Código Civil, o qual proíbe a disposição do próprio corpo, quando esta importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. A única exceção admitida está contida no parágrafo único do referido artigo, que permite a disposição, por pessoa capaz, de tecidos, órgãos e partes do corpo para fins de transplante ou tratamento, na forma da Lei n. 9.434/97. (FIÚZA, 2003, p. 26-27).

No artigo 14, o Código Civil dispõe que “é válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte sobre os atos de disposição do corpo”. No parágrafo único do referido artigo prevê que “o ato de disposição pode ser revogado a qualquer tempo” pelo doador. (CÓDIGO CIVIL, 2002).

O artigo 15 do Código Civil proclama que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, essa exigência de autorização espontânea e consciente do paciente, ou de seu representante, se incapaz, para se submeter à cirurgia ou a tratamento médico, representa a inviolabilidade do corpo humano. (GOMES, 2010).

O direito ao próprio corpo ainda é pouco regulamentado na legislação pátria, encontra previsão em dispositivos do Código Civil ligados a direitos da personalidade e leis esparsas como a Lei n. 9.434/97 que refere-se à remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante. (CATÃO, 2004, p. 175).

Apresenta-se ainda como um princípio no biodireito, "especialmente diante dos avanços das técnicas de tratamentos empregados pela medicina que envolvem a possibilidade de disposição de certas partes do corpo humano, ora em prol do mesmo sujeito, ora em favor de outra pessoa". (SILVA, 2002, p. 240).

Esse direito fundamental ao próprio corpo impõe os limites admissíveis de interferência no corpo humano em todas as etapas e dimensões da vida humana, seja embrião, feto, criança, adolescente, pessoa adulta, pessoa idosa, ou já falecida. (GAMA, 2003). Em que pese a vontade individual, o direito ao próprio corpo humano encontra limites jurídicos para disposição de partes na dignidade da pessoa humana e no direito à vida. Assim, a pessoa individualmente não tem direito real sobre partes de seu corpo, havendo, portanto, a necessidade de uma ordem pública que expressamente permita a disposição de partes do corpo humano. (GOMES, 2010).

Nesse diapasão, o ser humano tem direito ao seu próprio corpo e pode exercê-lo com certos limites, corpo este formado de aparelhos, sistemas, tecidos e células, o qual representa a integridade física desse ser humano. O corpo humano é uma estrutura autônoma, funcional e psíquica do ser humano, sendo sob esse ponto de vista considerado um bem jurídico tutelado pelo direito, e que deve ter sua inviolabilidade resguardada pelo Estado. (SÁ, 2003, p. 97).

Sobre o direito de personalidade, Miranda (2000) ensina que "a personalidade em si não é direito; é qualidade, é o ser capaz de direitos, o ser possível estar nas relações jurídicas como sujeito de direito". A personalidade é atributo inerente ao homem, ou seja, não requer o preenchimento de qualquer requisito, nem depende do conhecimento ou da vontade do ser humano. Mesmo que o indivíduo não tenha consciência da realidade, é dotado de personalidade, pelo simples fato de ser pessoa. (PEREIRA, 2001, p. 142).

O Código Civil no seu artigo 1º dispõe que "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil". Os direitos da personalidade têm por finalidade a proteção dos direitos indispensáveis à dignidade e integridade da pessoa. O civilista Bittar (2003) conceitua direitos da personalidade como sendo "os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, [...], para a defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros".

No que tange ao incentivo a pesquisa e ao desenvolvimento científico, não cabe ao Estado Brasileiro proibir os indivíduos que se beneficiem dos avanços tecnológicos, isto porque são advindos de áreas que o próprio Estado promove o incentivo conforme proclama a Constituição Federal no seu artigo 218:

Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas.

§ 1º - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências.

[...] (Constituição Federal, 1988).

Pode-se concluir que Carta Magna garante a todos os brasileiros o direito fundamental de se submeter a um transplante pela analise sistêmica das normas e princípios constitucionais. Assim, esse direito fundamental encontra alicerce na dignidade da pessoa humana, no direito à vida, no direito de liberdade de consciência, no direito à integridade física, no direito ao próprio corpo, no direito de personalidade, no incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento científico e nos demais direitos fundamentais.

Em que pese a garantia constitucional da pessoa transplantada a uma vida digna com respeito aos seus direitos fundamentais, a partir do procedimento cirúrgico de transplante evidencia-se uma lacuna com relação à tutela específica da pessoa transplantada. Consequentemente, o Estado precisa garantir um rol mínimo de direitos específicos como forma de concretizar o princípio da dignidade de pessoa humana dessa parcela da sociedade.

Infelizmente, conforme será demonstrado no capítulo seguinte, o mercado de trabalho altamente competitivo tem eliminado sumariamente da disputa por uma vaga de emprego aqueles brasileiros que se submetem a um transplante. Sem um emprego para garantir a renda da família, todos integrantes do núcleo familiar tem sua subsistência ameaçada, e a pessoa transplantada aumenta a possibilidade de rejeição do órgão, uma vez que fatores sociais e psíquicos influenciam na melhoria da qualidade de vida e diminuem as chances de rejeição.

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Sobre os autores
Caren Silva Machado

Especialista em Direito do Trabalho. Professora e Pesquisadora da UNOESC. Advogada;

André Amaral Medeiros

Bacharel em Direitos pela UNOESC; Advogado; Bacharel em Ciências Contábeis pela UFSM; Especialista em Gestão Pública Municipal pela UFSC; Especialista em Direito Tributário; Auditor de Finanças Públicas da Fazenda Estadual de Santa Catarina;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Caren Silva ; MEDEIROS, André Amaral. A necessidade de criação do estatuto de proteção integral da pessoa transplantada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5426, 10 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64758. Acesso em: 19 abr. 2024.

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