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Processo histórico de elaboração da Constituição de 1988

24/05/2018 às 14:30
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Apresenta-se o processo histórico que levou à elaboração da Constituição de 1988 desde os primeiros levantes populares contra a estrutura do regime militar e o caráter essencialmente participativo presente na chamada "Constituição Cidadã".

 1.     Introdução

 O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise acerca do processo histórico que levou a elaboração da Constituição de 1988 desde os primeiros levantes populares contra a estrutura do regime militar. Para isso, o embasamento dos principais pontos a serem abordados será feito a partir dos textos “Cultura e poder no Brasil contemporâneo”, de Marcos Napolitano, “Genealogia da constituinte: do autoritarismo à democratização”, de Antônio Sérgio Rocha, e “Indeterminação e estabilidade: os 20 anos da Constituição Federal e as tarefas da pesquisa em direito”, de Marcos Nobre. Além de desenvolver uma compreensão do processo histórico, busca-se fazer correlações entre os textos abordados em determinados pontos e, por fim, aprofundar a importante questão que surge a partir de uma compreensão dos fatores abordados nos três textos: a participação popular no cerne da Constituição de 88.


2. Desenvolvimento

2.1. Parte I

Nesta parte, objetiva-se discorrer acerca dos textos de Marcos Napolitano, Antônio Sérgio Rocha e Marcos Nobre, e relacioná-los nos pontos em que convergem. É possível notar uma linearidade histórica no contexto retratado em cada um dos textos: o primeiro trata do período de crise do regime militar, com enfoque nas manifestações da população insatisfeita; o segundo situa-se no período de transição democrática e no estabelecimento de uma Assembleia Constituinte; por fim, o terceiro aborda o período pós-redemocratização e a consolidação da Constituição de 1988.

O texto de Marcos Napolitano busca retratar as grandes mobilizações populares pela democracia no fim do regime militar. O processo de mobilização começa com a camada de desempregados que sai às ruas realizando grandes protestos e saques para demonstrar a enorme insatisfação com a situação econômica de inflação, desemprego e recessão. É interessante, neste ponto, traçar uma relação com algo abordado no texto de Antônio Sérgio Rocha. Nele, por meio de uma reportagem veiculada na Veja em 1973, afirma-se a dificuldade de se estabilizar um regime político militar autoritário. Os governos podem ir se mantendo com a administração da economia, mas ao primeiro sinal de crise econômica eles perdem suas bases e desmoronam (Veja, 1973, pp. 3 – 12). Ou seja: sem um projeto consistente de institucionalização política, o governo militar tentou garantir o seu sustento com base em pilares frágeis como a economia e o autoritarismo. Quando finda o período do milagre econômico, o país sofre grande recessão, ocasionando diminuição na geração de empregos, na massa salarial e no consumo interno. O regime se vê obrigado a tomar medidas prejudiciais à população, que se mobiliza exigindo seus direitos sociais e coloca em evidência a insatisfação generalizada com o governo vigente. Esse é o primeiro ponto onde se pode enxergar uma relação entre os textos: Antônio Sérgio percebe, em sua obra, aspectos de suma importância para se compreender os fenômenos abordados por Marcos Napolitano.

As movimentações provocaram uma série de greves, de tal modo que o Brasil tornou-se, na década de 80, o país com maior número de greves no mundo. Inicialmente, as críticas ao regime relacionavam-se à violação dos direitos humanos por meio do aparelho repressor do Estado ao tentar manter a população quieta e obediente. Porém, com as revoltas e greves trabalhistas, a luta do povo contra o regime toma maiores proporções. Esses aspectos são mostrados por Antônio Rocha e mais detalhados no texto de Napolitano. Napolitano vai mostrar que as grandes movimentações nas ruas representaram a politização das demandas sociais no espaço público, e que o povo exigia medidas institucionais para satisfazer estes anseios. À medida que os protestos cresciam, tornavam-se cada vez mais organizados e pacíficos e, dessa forma, acabavam inviabilizando medidas repressoras por parte do regime, pois a repressão violenta do Estado se justificava com base no preceito de  ameaça à segurança pública. Antônio Sérgio Rocha mais uma vez traz informações convergentes às de Napolitano ao demonstrar como diversos setores da sociedade mesmo sem ir às ruas também expuseram sua insatisfação e demanda por mudanças. A oposição ao regime propôs a emenda que estipulava eleições diretas, que vieram a ser aclamadas em seguida pelos movimentos populares. Essa oposição se afincava nas propostas de medidas institucionais que apontassem para a democracia e para a convocação de nova Constituinte. A própria OAB, que durante anos manteve-se afastada de assuntos políticos, engajou-se na luta pela abertura democrática. Dezenas de juristas e personalidades políticas elaboraram uma “Carta aos brasileiros”, lida na Universidade de São Paulo, na qual bradavam por “Estado de Direito já” (Rocha, 2013, pp. 3 - 4). Apesar de tais insituições não englobarem todos os aspectos envolvidos na luta popular, como ressaltou Napolitano, elas contribuíram para enfraquecer as bases de suporte militar ao fortalecer a ideia consensual da “soberania popular contra o regime”. Napolitano critica a homogeneização das exigências populares por parte de alguns setores, como a mídia, e diz que há uma dicotomia de visões dos conflitos: os liberais e conservadores tratam a demanda por democracia como o principal consenso nas lutas, enquanto os esquerdistas e movimentos populares enxergam a democracia apenas como a equação do conflito, pois ele abarca questões ainda mais profundas, como a imensa situação de desigualdade.

Antônio Sérgio mostra que, apesar da incapacidade de obtenção de um projeto político sólido e coeso no regime militar (assunto tratado inicialmente nesta dissertação), houve a tentativa de garantir um aparato institucional, como se para manter uma legalidade mesmo sem legitimidade. Ou seja, a cúpula militar preocupou-se em manter um sistema legal e representativo (ainda que manipulado), por meio de medidas como: Colégio Eleitoral, permissão para a existência de uma agremiação oposicionista, Congresso Nacional aberto quase que continuamente, e até mesmo convocação de uma Constituinte que formularia nova Constituição para o país.  A Constituição de 1967 concentrava amplos poderes nas mãos do Executivo, o presidente representava a autoridade máxima e por isso não havia controles verticais e horizontais sobre suas ordens (Rocha, 2013, p. 2). Várias emendas constitucionais viriam a ser acrescidas ao texto constitucional nos anos seguintes de regime, extremando o caráter repressor do Estado e acabando até mesmo com as instituições representativas. É a partir da observação desse embasamento constitucional utilizado pela ditadura militar que o autor Antônio Sérgio Rocha afirma a importância do processo constituinte e da formulação de embasamento constitucional para a nova democracia no país. Como nos mostra este autor, o ordenamento jurídico do país está repleto de atributos militares e autoritários, então torna-se necessário convocar uma Assembleia Constituinte para reformular as bases jurídicas ao se restabelecer o Estado de Direito. Essa é a bandeira levantada por vários membros da oposição ao regime e até mesmo pela presidência da OAB em 1980 (Rocha, 2013, p. 4 - 5). Tancredo Neves, ao ser confirmado como candidato da oposição, discursa sobre a necessidade de promulgar-se nova Carta Constitucional, fato evidenciado também por Marcos Napolitano.

A população se organizou e mobilizou arduamente na exigência pela ruptura do regime militar para a democracia por meio das eleições diretas para presidente, como mostra Napolitano. Entretanto, a transição se daria por via de eleições indiretas, seguindo os moldes de abertura “lenta, gradual e segura” como se defendia no governo Geisel (Rocha, 2013, p. 3). A transição era inevitável: o regime militar já estava sem força e sem sustentação em praticamente nenhum setor da sociedade e o próprio Colégio Eleitoral elegeu a oposição nas votações. Como a transição para a democracia se deu com um grande atrelamento ao antigo regime, Antônio Sérgio irá mostrar que algumas vozes ligadas ao conservadorismo tentaram impedir a convocação de uma Assembleia Constituinte, afirmando que a reconstitucionalização deveria ser feita apenas pela remoção do entulho autoritário e, consequentemente, pelo retorno à versão pura da Constituição de 1967. Mas, como disse o ex-presidente da OAB Raymundo Faoro “remendos constitucionais não recuperam a legitimidade da ordem política (Faoro, 1981). Antes mesmo da convocação da Assembleia, houve modificações profundas no sistema político com a Emenda Constitucional n. 25, que restabeleceria plenamente os direitos políticos. A Assembleia Constituinte vem a ser convocada por meio de emenda na Constituição em vigor, ou seja, a de 1967. Esse fato gera várias críticas, pois demonstra a ligação direta entre a nova ordem insurgente e a ordem autoritária anterior, enquanto o que a população realmente exigia era uma ruptura e participação direta na escolha do novo chefe do Executivo. Mais uma vez os textos conversam entre si, visto que o de Antônio Sérgio explica a forma que se deu a transição e convocação da Constituinte e o de Marcos Napolitano esclarece os anseios populares diante de tal processo. O desejo popular era por uma Assembleia Constituinte exclusiva, diferente da congressual que se efetivou.

Antes da elaboração da Constituição forma-se a Comissão Arinos para criar um anteprojeto, de forma a possibilitar a participação geral. Antônio Sérgio mostra que o clima político da Nova República era marcado por tensões e até mesmo esse anteprojeto constitucional viria a ser um ponto de discórdias e críticas. No texto de Marcos Nobre se evidencia o porquê dessas tensões: o momento era marcado por uma crise de hegemonia. Não havia um bloco hegemônico consistente no período de restabelecimento da República. A falta de hegemonia pode ser vista como uma consequência da forma que se deu a transição, com a desagregação do bloco hegemônico do período militar sem a formação de um bloco que o substituísse, e do fracasso do Diretas-Já, que gerou frustração e sentimento de falta de identidade política entre governante e governado em amplos setores da sociedade. Além disso, na própria essência das manifestações populares não havia uma liderança política ou mediação institucional. Esse fator demonstra a completa falta de hegemonia que não veio a se formar com a disrupção do aparato militar: não havia um setor político único que atendesse àquela diversidade de indivíduos e demandas.

Após a rejeição à emenda Dante de Oliveira, que acataria pelo menos uma das demandas mais imediatas da população, as eleições diretas, no Congresso, Napolitano mostra o sentimento de derrota e insatisfação que invadiu a população. Foi realizada uma “transição pelo alto”, baseada em negociações palacianas. Até mesmo no parlamento houve medidas de protesto quando, por exemplo, o PT se recusou a aderir ao consenso de votação pelo Colégio Eleitoral e chegou a expulsar seus parlamentares que votaram (Napolitano, 2006, p. 140). Como avalia Antônio Sérgio usando as palavras de Genoíno Neto, “o movimento popular não foi cooptado pela transição pelo alto. O PT e a esquerda ficaram numa ala esquerda, sem ser domesticado, e o movimento social não foi cooptado. As comunidades populares e o movimento sindical vieram paralelamente a isso.” (Neto, 2008). Marcos Nobre vai mostrar que a crise de hegemonia dificultava a obtenção de maiorias parlamentares, o que resultou para a Constituinte um processo longo e altamente negociado. Apesar disso, Antônio Sérgio afirma que, graças a um maior comprometimento dos representantes progressistas do que dos conservadores na comissão, o projeto de Constituinte revela-se um documento surpreendentemente progressista, com proposições de diversos direitos individuais e coletivos, mecanismos para assegurar a materialização dos direitos humanos e a criação do Tribunal Constitucional como guardião da Constituição (Rocha, 2013, p.11). O projeto não foi enviado à Assembleia Nacional Constituinte pelo presidente Sarney, mas viria a circular pelos bastidores do Congresso, servindo em muitos momentos como base e fonte de estudo. É interessante analisar a convergência dos três textos demonstrada neste parágrafo: Rocha define o processo constituinte e seu caráter lento e altamente negociado, Nobre demonstra que tais características se dão pela crise de hegemonia existente, e Napolitano possibilitou a compreensão dos motivos dessa crise.

O processo constituinte virá acompanhado de intensa participação da sociedade civil, “um fenômeno de magnitude única na história brasileira” e que explica o caráter abrangente e detalhista do texto constitucional (Nobre, 2008, p. 2). Na busca por uma explicação para tal fenômeno apresentado por Marcos Nobre, talvez seja possível encontrar a resposta no legado das grandes movimentações populares do “Diretas-Já”, pois nelas, como analisa-se no texto de Marcos Napolitano, a soberania é recolocada no poder civil e a nova idéia de democracia que se cria rompe os limites institucionais. O povo reocupa sua posição de poder e a democracia agora vem acompanhada de intensa participação para que a Constituição garanta seus direitos fundamentais. O texto de Antônio explica a elaboração constitucional: ela é dividida em duas partes, sendo que uma delas, comandada pelo bloco “Sistematização”, é voltada justamente para debater no Congresso as demandas dos movimentos sociais e dos diversos atores extraparlamentares. Havia também o “Centrão”, o segundo bloco que comandava a atividade constituinte e configurava as negociações “pelo alto”, dos principais líderes partidários. Ambos os blocos relacionavam-se em uma dinâmica de “conflito-consenso”, como mostra Antônio Sérgio. Inicia-se então a disputa entre os que aclamavam por uma Constituinte exclusiva e soberana, que não queriam a nova ordem institucional atrelada ao poder constituído anterior e pressionavam para que os parlamentares assumissem o controle sobre a situação política, e os que defendiam o caráter derivado da Constituinte, então ela deveria apenas formular a nova Constituição e em nada interferir no processo anterior à promulgação da Constituição. Toda essa disputa advinha das bases da transição: como o processo político não se deu por uma ruptura, a Constituinte teria caráter exclusivamente derivado.

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Conclui-se o projeto da nova Carta Constitucional em meio a diversas divergências e polêmicas. O próprio presidente Sarney criticou abertamente os conteúdos constitucionais demonstrando receio de que alguns de seus artigos tornassem o país ingovernável. Ulysses Guimarães, presidente da Câmara e da Assembleia Constituinte, rebate diretamente a declaração de Sarney: “A fome, a miséria, a ignorância, a doença inassistida, é que são ingovernáveis”. Ele declara que esta será a Constituição cidadã. Quanto a esse aspecto dissertado por Antônio Rocha, o autor Marcos Nobre vai afirmar que o texto constitucional foi pensado sob um modelo nacional-desenvolvimentista, combinando elementos liberais e elementos típicos do Estado Social. Para ele, este é o grande mérito da Constituição Federal de 88, adicionando-se o caráter plástico desta que permite ampla interpretação e, com isso, reivindicações pelos diversos movimentos. Essas características, segundo Nobre, garantiram sua legitimidade e vitalidade, além de concretizarem a jurisdificação da política. Assim, todas as forças políticas deveriam recorrer ao direito para preservar espaço na luta por direitos e fundos públicos, estabilizando a “guerra de todos contra todos” na redemocratização e ressaltando o caráter participativo ensejado por essa nova Constituição (Nobre, 2008, p. 3). Segundo o autor, a crise de hegemonia só veio a ser superada no governo FHC, ao mesmo tempo em que este reconheceu a devida importância e legitimidade da Constituição estabelecendo maioria de três quintos do Congresso para realizar algum tipo de alteração nela.

O texto de Marcos Nobre possui um maior enfoque econômico, pois analisará as questões relativas aos recursos orçamentários do Estado e ajustes fiscais realizados no governo FHC. Apesar do texto de Marcos Napolitano abordar a questão econômica superficialmente como um fator importante no desenrolar das manifestações, ele deu mais atenção ao processo político e histórico de crise do regime militar como um todo. O texto de Antônio Sérgio, como já foi dito, mostra como a questão econômica possui valor fundamental na administração do governo quando ele diz que o governo militar desabaria aos primeiros sinais de crise e recessão. Esta última compreensão, retirada do texto de Antônio Sérgio, foi de grande importância para garantir a estabilidade alcançada, segundo Marcos Nobre, do governo FHC, o qual foi capaz de superar a crise de hegemonia política. “A grande novidade da era FHC foi a de construir parâmetros institucionais para organizar e consolidar o engessamento político que veio com a redemocratização. Foi assim que estabilidade de tornou sinônimo de ‘resposabilidade fiscal’” (Nobre, 2008, p. 3).

As reformas constitucionais realizada ao longo dos anos e abordadas por Nobre foram fundamentais para consolidar a legitimidade da Constituição e seu caráter de “texto vivo” que pode ser modificado e cujo sentido depende da disputa política. Isso é fundamental na aplicação de novos direitos sociais e políticos, por exemplo. Recursos como a Medida Provisória são um excelente exemplo da possibilidade de integrar e ampliar o ordenamento jurídico. Dessa forma, as demandas e a cidadania tão buscadas pelos cidadãos em suas lutas, apresentadas no texto de Marcos Napolitano, começam a ser finalmente ouvidas (em certa medida) no processo de elaboração da nova Constituinte. Antônio Sérgio mostra a afirmação do teor social e progressista ressaltados por Ulysses Guimarães sobre a “Constituição cidadã”. Esse teor foi garantido pelos mecanismos de abertura que permitiram à população colocar suas necessidades em pauta na Constituinte. Nobre também reconhecerá a importância da intensa participação da sociedade civil como um marco na história brasileira surgido com a Constituição de 88. Essas questões serão devidamente aprofundadas na segunda parte deste trabalho. Por fim, segundo Nobre, a nova etapa de discussões constitucionais se dá acerca de ações afirmativas de direitos e políticas de reconhecimento, com base na ideia de que o exercício de determinadas liberdades, depende de algumas condições de igualdade. O foco, mais especificamente, está na legislação complementar. A consolidação da Constituição como documento legítimo e sólido, porém que pode ser modificado e cujo sentido depende da disputa política, muda o espaço de discussão de seu sentido. Antes se buscava espaço no Legislativo para debates Constitucionais: os setores da sociedade, no texto de Antônio Sérgio, traziam suas pautas para discussão e aprovação na Assembleia, os parlamentares detinham a função de estabelecer as abordagens constitucionais. Nesse segundo momento, Marcos Nobre sugere que, com o documento constitucional já consolidado, as disputas de seu sentido migram para o Judiciário, tendo em vista que a população entende o caráter de “texto vivo” da Constituição e que o seu sentido é interpretativo. Nobre acredita que o STF vai cada vez mais assumir sua função de Corte Constitucional e assim, pela primeira vez desde a promulgação da Constituição Federal, uma série de precedentes interpretativos poderá ser unificada em uma interpretação mais sólida e coerente do texto constitucional (Nobre, 2008, p. 5).

2.2. Parte II

Com bases na análise feita dos textos na primeira parte deste trabalho, iniciaremos agora um aprofundamento com relação a um dos aspectos que pode ser conversado a partir dos três textos: a participação popular e como a Constituição de 1988 foi fundamental para efetivá-la e garantir uma democracia participativa de fato. A conquista do Estado Democrático de Direito se deu, em grande medida, graças a luta popular na exigência por seus direitos, tomados pela ditadura autoritária. A população mostrou a sua força e em 1988 surgia a chamada “Constituição Cidadã”, que reconheceria a soberania existente no povo. O novo modelo de gestão pública que nasce com a nova democracia reconstrói a consciência dos indivíduos de seu papel na manutenção (e na melhoria) do bem estar social. E a Constituição de 88 tem papel fundamental ao ampliar a atuação da sociedade e fornecer mecanismos próprios para o exercício da participação popular.

 A transição para a democracia representara uma abertura “lenta, gradual e segura”, como já abordado na primeira parte, mas também uma ascensão dos movimentos sociais organizados. Diferente do que a população exigia nas ruas, o modelo de abertura democrática foi nos moldes militares, o que gerou grande insatisfação. Ao mesmo tempo, o povo tomou consciência da força que possuía ao movimentar-se por suas demandas. Eles reivindicavam, além de tudo o que foi tratado anteriormente na Parte 1, um espaço de participação em que a sociedade civil pudesse ter voz sobre os processos decisórios de políticas públicas (ROCHA, Enid, 2008). Dessa forma, os parlamentares, governantes e demais autoridades políticas percebiam a necessidade de fazer o jogo político com a atenção devida a demandas populares. Apesar da decisão pela Constituinte congressual em detrimento da Constituinte Exclusiva, preferida pela massa popular, o novo anteprojeto constitucional surgiria com caráter predominantemente progressista e muito atento à democracia participativa e aos direitos individuais e coletivos.

Na Assembleia Nacional, predominava uma bancada conservadora, mas as jornadas contra a ditadura deixaram um legado que podia ser sentido até no interior da própria Assembleia, com uma disciplinada bancada de esquerda dividida em alguns partidos. A pedido do Partido dos Trabalhadores (PT), Fabio Konder elabora um anteprojeto que previa a iniciativa popular para formular leis, tanto ordinárias ou complementares, quanto emendas constitucionais. Houve certo debate quanto a possibilidade de participação popular, alguns líderes partidários demonstravam certa resistência, enquanto outros partidos apoiavam a reivindicação. Os parlamentares mais conservadores argumentavam que o princípio da representatividade existia justamente para garantir que a sociedade elegesse representantes que atendessem aos interesses sociais, e colocar a própria população participando do processo constituinte representaria uma corrupção deste princípio. Porém, como Antônio Lambertucci afirma, a forma representativa carregava “as limitações à expressão democrática dos cidadãos” (Lambertucci, 2009, p. 83), pois o que se vê frequentemente é uma corrupção da representatividade e descaso político com as questões sociais, além de muitas vezes não haver um sentimento de representatividade entre o cidadão e o candidato.

O Movimento Nacional pela Participação Popular na Constituinte, no Rio de Janeiro, que reuniu cerca de sete mil pessoas, a criação do Plenário Pró-Participação Popular, em São Paulo, e as diversas mobilizações externas realizadas pelo país reivindicando mecanismos de participação popular foram cruciais na implementação de tais aparatos. A inclusão da emenda popular foi uma importante vitória para os movimentos e comitês populares. Foram diversas as emendas apresentadas voltadas para a participação popular, que traziam uma série de sugestões como a utilização de tribuna, a apresentação de sugestões populares, a realização de audiências públicas e por aí vai. Em razão do número elevado de emendas propostas, o relator Fernando Henrique Cardoso apresentou um relatório, um parecer e propôs um substitutivo, o qual inovava em mecanismos e acatou a proposta de permitir sugestões populares para a Constituição, desde que subscritas por 30 mil eleitores e patrocinadas por no mínimo três entidades legais (artigo 23 do Substitutivo, página 463). O substitutivo também acolheu, dentre outros mecanismos, a realização de audiências públicas. Após diversas discussões, controvérsias e propostas de emendas ao substitutivo, emite-se um 2º substitutivo que praticamente em nada alterou o projeto de participação popular. Ele é aprovado e assim estabelece o Regimento Interno da Assembleia Nacional Constituinte.

A partir disso, as instruções sobre a utilização da iniciativa popular começaram a ser difundidas e os movimentos começaram um intenso processo de elaborar propostas e coletar assinaturas. O mecanismo de emenda popular causou um enorme impacto na ampliação do espaço público e na mobilização social, que começou a atingir níveis jamais antes vistos. A apresentação de emendas populares para o projeto de Constituição representava a vontade da população quanto ao documento constitucional que gostariam de ver para o país, um avanço significativo, jamais antes visto na história brasileira. O aumento da participação leva ao fator que Marcos Nobre tratou em seu texto: um texto constitucional abrangente e detalhista, muito heterogêneo. Ulysses Guimarães discursaria que a Constituição de 1988 alargou a democracia brasileira em participativa, além de representativa. “O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é superlegislador, habilitado a rejeitar pelo referendo projetos aprovados pelo parlamento” (GUIMARÃES, Ulysses, 1988). De acordo com Maria da Glória Benevides citada na obra de José Arlindo Soares, “a própria Constituição de 1988 incorporou o princípio da participação popular direta na administração pública e ampliou a cidadania política, estabelecendo vários mecanismos de reforço às iniciativas populares” (Soares, 1998, p. 75).

Quanto às mobilizações populares no espaço público, muito enfatizadas por Marcos Napolitano e abordadas na primeira parte deste trabalho, mais uma vez pode-se notar a importância delas até mesmo no momento constituinte. As grandes caravanas a Brasília, organizadas por comitês e movimentos pró-participação para pressionar o Congresso Constituinte, tiveram grande influência sobre a decisão dos parlamentares. Muitos deles sentiam-se pressionados a aceitar as emendas populares mesmo sem concordar plenamente com elas apenas para não perder a popularidade e o apoio da população. Entre os temas tratados pelas emendas populares aprovadas para integrar a Constituição Federal de 1988 estavam: saúde pública, direitos trabalhistas, livre iniciativa, cooperativismo e muitos outros direitos individuais e coletivos.

Ainda não pode ser dito exatamente que a população dita suas próprias leis, como ressalta Florestan Fernandes ao afirmar que “seria utópico sonhar com isto na presente situação histórica e no plano parlamentar. [...] os de baixo possuem um espaço próprio no processo constituinte e, portanto, a nova Constituição deve refletir todas as classes, toda a nação, servindo como um novo ponto de partida para o expurgo da República e a universalização dos direitos e liberdades civis fundamentais” (Fernandes, 1987, p. A3). Ainda deve haver um aperfeiçoamento no arranjo político brasileiro, que possibilite maior representatividade e participação, além de ser necessário buscar medidas de enfrentamento da enorme desigualdade existente na sociedade brasileira.

Os grandes avanços alcançados com os mecanismos de participação popular na configuração constitucional sem dúvidas tiveram imensa importância na consagração da democracia e na obtenção de certa representatividade da população. A participação popular configura-se como uma das garantias do Estado Democrático de Direito e por isso o Poder Público deve fornecer mecanismos para o exercício de uma participação plena. Por isso, a sociedade deve se manter ativa na busca pela efetivação de suas demandas e na busca por seu espaço de direito no sistema político brasileiro, para assim exercer plenamente a sua cidadania.


3. Conclusão

Em virtude do presente exposto, é possível analisar todo o processo histórico que resultou no caráter essencialmente participativo da nossa atual Constituição Federal. Os levantes populares iniciados no período final da ditadura não geraram respostas institucionais imediatas a seus anseios, mas tiveram caráter marcante na história brasileira da participação popular, garantindo a politização das questões sociais no espaço público e reposicionando a população como a legítima detentora do poder na democracia. O processo constituinte de 1987 vem, pela primeira vez no Brasil, acompanhado de diversas medidas para incorporar a participação popular na elaboração do texto constitucional, que graças a isso, é bastante abrangente. A participação ativa do povo na busca por garantir seus direitos e buscar uma sociedade mais justa é um princípio fundamental para as bases do Estado Democrático de Direito. Por isso, concluo, o estudo da totalidade de exposições aqui feitas tem relevância fundamental: a sociedade deve conhecer a existência e a importância dos mecanismos de que dispõe, e estar sempre na busca por manter e até ampliar sua participação e o pleno exercício da aclamada cidadania.


4. Bibliografia

CARDOSO, Rodrigo. A iniciativa popular legislativa da Assembleia Nacional Constituinte ao regime da Constituição de 1988: um balanço. Disponível em: <http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/acessoConteudo.php?nrseqoco=60348>. Acesso em: 09/06/2016.

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BASTOS, Aurélio Wander. Assembleia Constituinte Exclusiva – o dilema entre a práxis histórica e o ideal racional. In: Direito e Democracia. Debates sobre Reforma Política. Organização: Marcio A. Mendes Costa. Rio de Janeiro. Escola Judiciária Eleitoral, 2008.

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NAPOLITANO, Marcos. Do grande medo à grande festa: o protesto de multidões e a crise do regime militar (1983/1984). In: Cultura e poder no Brasil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2002, p. 105 - 144.

ROCHA, Antônio Sérgio. Genealogia da constituinte: do autoritarismo à democratização. Lua Nova, São Paulo, n. 88, 2013, p. 29 - 87.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ACCIOLY, Isabella. Processo histórico de elaboração da Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5440, 24 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64846. Acesso em: 19 abr. 2024.

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