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Oréstia (de Ésquilo) e o tribunal do júri

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Retoma-se a história do tribunal do júri a partir da literatura da Grécia Antiga.

Ingressei no Curso de Direito em março de 2005 e, no ano de 2008, quando estava no 8º período, para a disciplina de direito processual penal, tivemos uma prova discursiva como atividade componente da média. Dentre outras, havia a seguinte questão:

 

Com base na obra literária Oréstia, escrita pelo grego Ésquilo, identifique, de modo fundamentado, 3 (três) semelhanças com o rito do Tribunal do Júri vigente no Brasil.

 

Para responder a tal questão, faz-se necessário buscar maiores informações a respeito do autor e do período histórico em que os fatos foram escritos, originando semelhanças do Tribunal de então e o vigente.

Ésquilo[1] nasceu cerca de 525 a.C., próximo de Atenas, morreu em 456 a.C. e ficou muito conhecido, após sua morte, como o criador da tragédia grega, geralmente envolvendo temas da mitologia[2].

 O herói Epônimo[3], do Peloponeso[4], filho de Tântalo, originário da Lídia (na Ásia Menor), se desloca até Elis, na Grécia, como pretendente à mão de Hipodâmia, filha do Rei de Pisa Enomau.

Pêlops, com o auxílio de Mírtilo, servo do rei, consegue o seu intento fraudulentamente, resolvendo traiçoeiramente causar a morte do cooperador Mírtilo, que, ao expirar, lança uma maldição sobre Pêlops, que atingiria, inclusive, toda a sua raça, o Peloponeso.

Pêlops deixou por herdeiros Atreu e Tiestes, que vieram a disputar o trono de Micenas[5].

Tiestes se tornou amante de sua cunhada Aerope e juntos roubaram o carneiro de lã de ouro, que assegurava ao possuidor o trono então disputado.

Apesar do embuste, por ser protegido de Zeus, Atreu acaba detendo o trono e expulsa Tiestes de Argos.

Atreu, buscando se vingar simula uma reconciliação com Tiestes e serve um banquete, onde as principais “iguarias” são na verdade os filhos deste, escapando apenas o filho Egisto.

É o que se observa na passagem do livro primeiro, intitulado Agamemnon

Egisto: Atreu, pai deste homem ímpio, simulou acolhimento falsamente cordial

e pretextando assinalar condignamente um dia de holocausto, regalou meu pai com os corpos retalhados de seus pobres filhos.

No prato enorme, embaixo foram postos antes os pés e as mãos e por cima, para escondê-los, outros pedaços das crianças desmembradas.

O prato foi dado a meu pai, conviva único; sem distinguir de pronto a trágica verdade meu pai comia, sem saber, uma iguaria fatal à sua raça, mas ao perceber tardiamente o que até então comera, ergueu-se, recuou e entre gritos horríveis e vomitando alguns pedaços que engolira lançou tremenda maldição sobre os Pelópidas.

(versos 1852-1867 – p. 79. )

Tiestes amaldiçoou o ato do irmão, aumentando-a mais ainda sobre toda a casa de Pêlops, inclusive sobre as gerações seguintes.

Atreu deixou dois herdeiros, Agamemnon e Menelau. O primeiro casado com Clitemnestra, pai de Orestes e Ifigênia e o segundo com Helena, irmã da primeira, e que teve um caso com Páris[6], filho de Príamo, rei de Tróia, para onde fugiram.

Agamemnon e Menelau se insurgiram contra tal desfeita e uniram toda a esquadra grega e decidiram partir para Tróia, buscando vingança, mas Ártemis estava enviando ventos contrários e o adivinho do reino sugeriu que Agamemnon sacrificasse Ifigênia, sua filha, em holocausto, e assim conseguiram rumar para Tróia, saindo vencedores após dez anos de intensos combates.

Durante a guerra em Tróia, Clitemnestra, esposa de Agamemnon se tornou amante de Egisto, primo do esposo, que desejava vingar seu pai Tiestes, na pessoa do filho de Atreu.

Clitemnestra e Egisto conseguiram matar Agamemnon e Cassandra, filha do rei Príamo de Tróia e troféu de guerra.

Retornando do exílio, Orestes, sob orientação de Apolo, deseja vingar a morte do pai e enfim esgotar os efeitos da maldição original, vindo a matar sua mãe e Egisto.

Entram em cena as Fúrias vingadoras da mãe, que o perseguem até Atenas, onde ele se prostra diante da estátua da deusa Atenas e lhe implora proteção.

O espectro de Clitemnestra incita as Fúrias para que lhe vinguem a morte, segundo seu direito de vingar crimes cometidos entre consanguíneos.

Atena então sugere um julgamento, diante de um Tribunal, instituído para sempre, onde as fúrias lutariam pela vingança da morte de Clitemnestra, Apolo defenderia o direito de Orestes vingar a morte do pai e os seis cidadãos colocariam seus votos na urna.

O julgamento resultou em empate, onde Atena deu seu voto de Minerva[7], pelo qual Orestes foi absolvido.

Ficou instituído que crimes de sangue seriam julgados perante um Tribunal.

Este é o resumo da obra, para que se entenda a origem do julgamento, que era sempre fundamentado em vingança. Consanguíneos vingando a morte de consanguíneos. A partir do momento que o sangue de uma mãe é derramado, as Fúrias Vingadoras entram em cena, legitimadas no direito de vingar este sangue. Tudo resulta no direito a vingança em que há um choque de interesses. De um lado Clitemnestra vingando a morte da filha Ifigênia e, de outro, Orestes vingando a morte do pai.

O Tribunal foi instituído exclusivamente para julgar os crimes de sangue:

Entretanto, já que a questão chegou ao meu conhecimento, indicarei juízes de crimes sangrentos, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa atribuição.

(versos 637-642, p. 164)

 

Prestai toda a atenção ao que instauro aqui atenienses, convocados por mim mesma para julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue.

(versos 900-904, p. 174)

A função é exercida na atualidade pelo Tribunal do Júri, de acordo com o artigo Art. 5º, XXXVIII, CRFB:

é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

A acusação é exercida pelo Ministério Público, na antiguidade representado pelas Fúrias Vingadoras:

Um assassínio clama em altos brados pelas divinas Fúrias vingadoras

(versos 524-525, p. 107)

 

O ofício que o destino inexorável fixou e nos impôs eternamente é perseguir todas as criaturas lançadas por suas própria demência na via tortuosa do homicídio até descerem ao profundo inferno.

(versos 449-454, p. 158)

A seguir, passa-se à demonstração das semelhanças entre o Tribunal instituído na Antiguidade Clássica e o Tribunal do Júri vigente no Brasil:

TRIBUNAL GREGO

TRIBUNAL DO JÚRI

“Retornarei depois de escolher os melhores entre todos os cidadãos de minha Atenas, para que julguem esta causa retamente fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos mandamentos da justiça” (versos 646-650, p. 164).

Art. 436 do CPP – [...] cidadãos [...] de notória idoneidade.

 

Art. 472 do CPP – [...] concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça [...]

Atena (Dirigindo-se às Fúrias do CORO)

“Quero dizer-vos que a palavra agora é vossa e declarar que estão abertos os debates. Falando em primeiro lugar, o acusador deve instruir-nos claramente sobre os fatos” (versos 762-765, p. 168).

Seção XII – Dos Debates

Art. 476 do CPP – Encerrada a instrução, será concedida a palavra ao Ministério Público, que fará a acusação, nos limites da pronúncia [...]

 

“Levantai-vos agora de onde estais, juízes, e decidi com vossos votos esta causa”

(Os juízes levantam-se um de cada vez para depositar os votos na urna, enquanto APOLO e o CORIFEU altercam). (versos 941-942, p. 175)

 

“Depositai depressa os votos nesta urna, juízes incumbidos de uma decisão.”

(Os juízes depositam e pouco depois tiram os votos da urna e os separam diante de ATENA) (versos 983-984, p. 176-177).

Art. 486 – Antes de proceder-se à votação de cada quesito, o juiz presidente mandará distribuir aos jurados pequenas cédulas, feitas de papel opaco e facilmente dobráveis, contendo 7 (sete) delas a palavra sim, 7 (sete) a palavra não.

 

Art. 487 – [...] o oficial de justiça recolherá em urnas separadas as cédulas correspondentes aos votos e as não utilizadas.

 

Art. 489 – As decisões do Tribunal do Júri serão tomadas por maioria de votos.

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Foi uma maneira muito interessante de se estudar o Direito Processual Penal, uma vez que pudemos refletir sobre um clássico e sobre o procedimento atual. Quando o estudo produz sentidos em nossas vidas, ele certamente acrescenta valores e é internalizado de uma maneira prazerosa.

Espero ter ajudado!

Caso você tenha encontrado algum equívoco, contradição, erros de Língua Portuguesa, tenha reclamações e/ou sugestões, por gentileza, envie mensagem para o endereço [email protected].

Permaneço à disposição.


Notas

[1] ÉSQUILO. Oréstia: Agamemnon, Coéforas, Eumemides. Trad. do grego, introd. e notas, Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

[2] História fabulosa dos deuses, semideuses e heróis da antigüidade. Segundo Silveira Bueno in Minidicionário da Língua Portuguesa.São Paulo: FTD. p. 435.

[3] O herói, o poeta, o sábio que dá o seu nome a uma era, a uma cidade (ibidem)

[4] O Peloponeso (em grego, Πελοπόννησος, transl. Pelopónissos) constitui uma larga península no sul da Grécia, separada do continente pelo Istmo de Corinto. Etimologicamente, o seu nome deriva do antigo herói grego Pélope (em grego Πελοψ, Pélops), filho de Tântalo e antepassado dos Atridas, o qual teria dominado toda a região, e da palavra grega que designa ilha, νησος (níssos), donde teríamos o nome Ilha de Pélops. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Peloponeso. Acesso em: 14 out 2008. 9h17min.

[5] Localizado cerca de 90 km a sudoeste de Atenas, no nordeste do Peloponeso. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Micenas. Acesso em: 14 out 2008. 9h23min.

[6] Na mitologia grega, Páris era um dos mais novos filhos do rei Príamo de Tróia. Ele ainda estava saindo da adolescência quando foi escolhido pelas deusas Hera, Atena e Afrodite para eleger qual delas seria a mais bela. Cada deusa, buscando suborná-lo para ser eleita, prometeu-lhe riquezas e vitórias, mas somente Afrodite lhe garantiu que se casaria com a mulher mais bela do mundo se ele a escolhesse: a princesa Helena de Esparta. Então, Páris não hesitou e elegeu Afrodite como a mais bela das três despertando a ira de Atena e de Hera que enviaram seus exércitos gregos para destruí-lo e a Tróia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1ris. Acesso em 14 out 2008. 9h43min.

[7] Voto de Minerva é o voto de desempate proferido por Atena quando do julgamento de Orestes. Este, vingando a morte do pai, Agamemnon, resolve matar a sua mãe, Clitemnestra, e o seu amante, Egisto. Todavia, aquele que cometesse um crime contra o próprio guénos era punido (com a morte) pelas Erínias. Sabendo de seu futuro nada promissor, Orestes apela para o deus Apolo, e este decide advogar em favor daquele, levando o julgamento para o Areópago. As Erínias são as acusadoras e Palas Atená presidente do julgamento. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Voto_de_minerva. Acesso em: 14 out 2008. 9h55min.

 

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Sobre a autora
Tamara Rossweiler Marques Cardoso

Atuando nas áreas: Família, Sucessões, Cível, Consumidor, Criminal, Diversidades. Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2009) e graduação em Química, habilitação Licenciatura, pela Universidade Federal de Santa Catarina (2014). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos com enfoque na sexualidade e questões de gênero. Possui Pós-graduação Lato Sensu em Direito de Família e Sucessório pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC 2012), em Direito Processual Civil e Direito Penal/Processual Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (DAMÁSIO 2015), em Gênero e Diversidade na Escola, pela Universidade Federal de Santa Catarina (2016, IEG/UFSC), em Direito Constitucional pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus (DAMÁSIO, 2019) e em Direito das Mulheres - Teoria, Prática e Ação Transformadora (MEU CURSO UNIDBSCO, 2021). Possui Pós-graduação Lato Sensu em Metodologia do Ensino de Biologia e Química pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER 2015) e Pós-graduação Lato Sensu em Educação a Distância: Gestão e Tutoria (UNIASSELVI 2019). Pós-graduação Stricto Sensu (Mestrado), no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina, (PPGECT/UFSC, 2016-2019). Cursando Pós-graduação Lato Sensu em Direito Público com ênfase em Gestão Pública (DAMÁSIO).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Tamara Rossweiler Marques. Oréstia (de Ésquilo) e o tribunal do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5458, 11 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66280. Acesso em: 26 abr. 2024.

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