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Notas sobre hardship nos princípios Unidroit e nos contratos de comércio internacional

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29/04/2005 às 00:00
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A alteração (superveniente) das circunstâncias, que afetam a execução de contratos internacionais de longa duração, ganhou importância devido às questões de flutuações econômicas, políticas, sociais e tecnológicas oriundas da estruturação e desenvolvimento existentes entre as nações.

            "A transformação contínua da produção, o abalo incessante de todo o sistema social, a insegurança e o movimento permanentes distinguem a época burguesa de todas as demais (...) Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado (...)

            Ao invés das necessidades antigas, satisfeitas por produtos do próprio país, temos novas demandas supridas por produtos dos países mais distantes, de climas os mais diversos.

            No lugar da tradicional auto-suficiência e do isolamento das nações surge uma circulação universal, uma interdependência geral entre os países."

            Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848. (1)


Sumário: Considerações iniciais; 1. Do hardship nos princípios Unidroit, 1.1.Dos princípios Unidroit especificamente relevantes ao estudo do hardship, 1.2.Da definição de hardship nos princípios Unidroit, 1.2.1.Das circunstâncias que alteram fundamentalmente o equilíbrio do contrato( ou prestações), 1.2.2. Da cognoscibilidade e do momento da verificação dos eventos danosos, 1.2.3.Da imprevisibilidade dos eventos danosos, 1.2.4.Da incontrolabilidade e da inevitabilidade dos eventos danosos, 1.2.5.Do risco não assumido pelas partes, 1.2.6.Dos efeitos do hardship no seio dos princípios Unidroit; 2. Das Cláusulas de hardship; Considerações finais; Referências bibliográficas.


Considerações iniciais

            Não é de hoje que se percebe a interdependência das nações no que diz respeito à internacionalização do mercado. Hoje em dia é comum – e indispensável – a existência de relações internacionais entre entidades públicas e/ou particulares, especialmente no que diz respeito àquelas resultantes de contratos de comércio internacional de longa duração de compra e venda de mercadorias. Como resultado dessas relações, foram necessárias revisões e atualizações de conceitos contratuais a fim de dar uma justa regulação do vínculo existente entre as partes desses contratos.

            Esse atual quadro da lex mercatoria tem criado uma nova geração de regras básicas para garantir e até incentivar o comércio internacional. Com efeito, nota-se uma nova onda de (re)discussão sobre os valores e princípios que, outrora, eram tidos como absolutos, cuja aplicação era indiscutível, sem admitir qualquer contestação. Houve, por assim dizer, uma mudança de paradigmas, criando, por um lado, uma noção "clássica" de direito contratual e, de outro, uma noção "moderna". (2)

            Alexei G. Doudko, explica que "The principles of freedom of contract and pacta sunt servanda, which have always been regarded as essential, ´mathematically´ correct axioms in the Roman law tradition and as less sensitive to change, have undergone substantial revision". (3) Isso por que tais princípios foram articulados para contratos cuja execução era feita por uma única transação ("one shot" transaction), sem a ocorrência de outras transações sucessivas. Da mesma forma, o Professor Dr. Júlio Gomes (4), explica que a "perspectiva clássica do contrato realça o aspecto de isolamento relativo de cada transação", descartando as condições em que se encontram as partes, bem como as circunstâncias sociais e econômicas durante a relação contratual.

            Diferente é o que ocorre nos contratos de comércio internacional de longa duração. Especialmente naqueles cuja execução é diferida ou contínua. A regulamentação legal e a aplicação de princípios utilizados como suporte da noção "clássica" passa a ser aqui inapropriado aos contratos de comércio internacional e até mesmo prejudicial às partes.

            Ao invés de um contrato "estático", cujas disposições tendem a ser mais completos e exaustivos quanto possíveis, excluindo qualquer elemento exterior, passamos a ter um contrato cujo vínculo e participação entre as partes tem um cunho "dinâmico", onde a sua revisão passa a ser feita de forma contínua. As partes ficam obrigadas a manter uma relação de mútua cooperação, provendo trocas de informações a respeito da atividade contratual, bem como das condições exteriores que influenciam o contrato. Conforme explica John Bell "The notion of a ´long-term contract´ is a sociological, not a legal, category, but one which none the less creates specific legal problems". (5)

            A questão da alteração (superveniente) das circunstâncias, que afetam a execução de contratos internacionais de longa duração, acabou ganhando importância devido às questões de flutuações econômicas, políticas, sociais e tecnológicas oriundas da estruturação e desenvolvimento existentes entre as nações. Por isso que os contratos procedentes de uma relação internacional ganham novas ordens jurídicas, mais flexíveis, capazes de se adaptarem às exigências internacionais. Como resultado, esses contratos tendem a serem incompletos por natureza, com suas disposições abertas para possibilitarem as revisões e renegociações futuras e constantes.

            O princípio do pacta sunt servanda (6) perde força e passa a ter uma dominância relativa. Com muita propriedade, o Prof. Dr. Júlio Gomes explica que: "Nos contratos de longa duração o risco contratual a que as partes se expõem é mais intenso, como também mais intensa é a interação e a interdependência entre as partes enquanto nos contratos de execução instantânea o principio pacta sunt servanda apenas conhece limitações nos casos excepcionais em que a modificação das circunstâncias, de acordo com o princípio da boa-fé, torna inexigível o cumprimento, nos contratos de longa duração a própria autonomia privada colocaria um outro limite ao pacta sunt servanda, a saber, a possibilidade de uma qualquer das partes denunciar o contrato: ´a autodeterminação contratual significa não apenas a liberdade de celebrar contratos, mas também a liberdade de lhes pôr fim`". (7)(8)

            Por outro lado, o princípio da boa-fé – objetiva – ganha margens mais extensas. Passa a ser fonte para uma interpretação integradora das cláusulas contratuais impondo uma conduta e um dever de lealdade às partes do contrato, obrigando estas a agirem em justa (re)negociação. Constitui uma regra fundamental do direito do comércio internacional.

            "A boa fé objetiva", conforme explica o Prof. Dr. Júlio Gomes, "implica uma qualificação social da conduta do contratante, de acordo com padrões éticos e sociais tidos por exigíveis, representa, segundo a doutrina que subscrevemos, uma cláusula geral que explícita um princípio mais amplo e o especifica no âmbito do contrato". (9) Garante "que eventuais imperfeições ou lacunas não sejam instrumentalizadas de tal forma que se defraude a economia do contrato". (10) Transforma o conflito de interesses em cooperação. Incentiva as partes à renegociação e à manutenção da relação contratual, uma vez que a prática tem demonstrado serem estas as opções mais em conta, sendo que a rescisão pode se revelar perdidoso às partes.

            Igualmente com a boa-fé objetiva, a razoabilidade e a proporcionalidade, ganham força passando a serem princípios gerais de direito, governantes de todos os contratos de comércio internacional. Não só proíbem toda e qualquer conduta lesiva, mas impõe deveres éticos de transparência de informações e de cooperação, como também de proporção entre as prestações e obrigações entre as partes.

            Corolário de todos esses fenômenos surge o hardship (11), como princípio da renegociação ou adaptação contratual oriundo de alterações (supervenientes ou não) das circunstâncias que alteram fundamentalmente equilíbrio econômico do contrato. Sua previsão jurídica pode ser encontrada nos Princípios dos Contratos do Comércio Internacional (doravante Princípios Unidroit) (12) elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT). (13)

            O termo hardship vem explicado no Segundo Comentário do Artigo 6.2.2 dos Princípios. Consta que este foi escolhido por uma questão formal, pois os Princípios Unidroit evitam utilizar terminologias específicas de determinados ordenamentos jurídicos. Para realçar a sua finalidade, ou seja, a internacionalização de seus princípios, fez-se uso de uma expressão largamente aceita na comunidade internacional. O presente termo se refere aos casos de onerosidade excessiva – dificuldade econômico-financeira de uma das partes para adimplir sua prestação – ou aos casos conhecidos como eccessiva onerosità sopravenuta, Wegfall der Geschäftsgrundlage, imprevisión, frustration of purpose, impracticability, sushestvennoe izmenenie obstoyatelstv etc. (14)

            A questão do hardship será o objeto de estudo deste trabalho. Será analisada a sua regulamentação jurídica no seio dos Princípios Unidroit, bem como uma análise das cláusulas de hardship propriamente.


1. Do hardship nos Princípios Unidroit (15)

            Os contratos de comércio internacional, conforme o Prof. Dr. Júlio Gomes, repassando os ensinamentos de Nicklisch (16), freqüentemente, têm quatro características próprias. A primeira consiste em ter por objetivo a investigação tecnológica o que faz contribuir para a sua complexidade organizatória. A segunda consiste na sua planificação e execução, que se prolongam por um longo período de tempo e que por isso incorporam uma grande margem de incerteza o que impossibilita uma determinação exata dos direitos e deveres das partes. A terceira consiste no surgimento da importância da cooperação e da comunicação entre as partes na realização do escopo comum. A quarta, e última, consiste em que tais contratos são particularmente sensíveis à evolução das circunstâncias e, assim, reúnem uma complexa distribuição de riscos.

            Os Princípios Unidroit tem demonstrado ser um ordenamento de regras cuja regulamentação é profundamente adaptadas aos elementos estruturais dos contratos de comércio internacional supra citados. Por isso que vem sendo amplamente utilizado na prática internacional e que por isso surge como um conjunto de regras modelo para o estudo do hardship. Este vem regulamentado nos Princípios Unidroit na Seção 2 do Capítulo 6, mais precisamente nos arts. 6.2.1 e seguintes. Como nos demais artigos, ou "black letters rules", dispostos nos Princípios Unidroit, as disposições sobre hardship vêm acompanhadas de vários comentários, nos quais igualmente devem ser observados.

            Como observa H. Van Houte (17): "The different Articles contain the basic rules. Each Article, however, should be read together with the "Comments" with that Article, which explain and illustrate the proposed rule in a more detailed fashion. The Comments are an integral part of the Principles. The text of the Articles without the Comment, as reproduced hereafter, is thus insufficient. A proper understanding of the Articles requires also consultation of the Comments". (18) Dessa forma, para se compreender inteiramente as disposições dos Princípios Unidroit, especialmente no que diz respeito sobre hardship, fica indispensável ter em consideração seus respectivos Comentários.

            Porém, antes de analisar a Seção 2 do Capítulo 6 é indispensável apreciar o Preâmbulo (Preamble) que reza sobre as Finalidades dos Princípios (Purpose of the Principles), nomeadamente a suas três primeiras black letters, os Artigos 1.3 e 1.7 das Disposições Gerais (General Provisions), dispostos no Capítulo 1 e, ainda, os Artigos 2.14 e 2.15 combinados com os Artigos 4.8 e 5.2 dos Princípios Unidroit, uma vez que todas essas disposições são esseciais para a aplicação do hardship.

            1.1. Dos Princípios Unidroit especificamente relevantes ao estudo do hardship

            Inicialmente, está disposto na primeira black letter do Preâmbulo o campo de abrangência dos Princípios Unidroit. Consta que "These Principles set forth general rules for international commercial contracts".

            Maurício C. A. Prado (19), seguindo os respectivos Comentários, explica que a presente disposição estabelece um domínio muito vasto de aplicação para os Princípios Unidroit. A respeito do conceito de internacionalidade, o Comentário indica que seja o mais vasto possível. Os Princípios visam abraçar todas as situações pelas quais, por qualquer critério, o contrato possa ser considerado como internacional. Os Comentários chegam a propor, também, a aplicação dos Princípios Unidroit aos contratos domésticos, desde que tenham sido escolhidos expressamente pelas partes contratantes e sob reserva de aplicação das normas nacionais imperativas.

            O autor também esclarece que o termo "comércio" é igualmente importante para definir o campo de aplicação. De fato, o Segundo Comentário desta primeira black letter não é destinado a fazer a distinção entre contratos civis e comerciais, mas sim, servem para excluir do campo de aplicação os contratos no domínio do direito do consumidor.

            Já a segunda e terceira black letters dispõem, respectivamente, que "They shall be applied when the parties have agreed that their contract be governed by them" e "They may be applied when the parties have agreed that their contract be governed by ´general principles of law´, the ´lex mercatoria´ or the like."

            Conforme o Comentário 4 alínea a do Preâmbulo, fica aconselhado às partes estipularem expressamente que o contrato será regido pelos Princípios Unidroit bem como a fazer uma referência a um Tribunal Arbitral para a resolução de futuros conflitos. (20)

            Por outro lado, na lição de Leonardo Gomes de Aquino (21), "se o órgão decisório for um tribunal estatal, os Princípios do UNIDROIT não poderão actuar como regra conflitual e sim como uma regra material, isto é, a liberdade das partes na designação da lei aplicável ao contrato é tradicionalmente limitada pelas leis nacionais, bem como pelas convenções existentes". Para o Autor, a distinção entre norma conflitual e norma material é meramente doutrinal. Este entende que as normas conflituais são aquelas que o juiz, no arbítrio de suas convicções irá utilizar para resolver o litígio. Estas, normalmente, são as leis do ordenamento jurídico estatal, no qual o julgador está adstrito à sua aplicação. Também pode utilizar outras normas no qual entender mais adequadas e mais razoáveis ao caso. Diferente é o entendimento sobre normais materiais. Estas, por sua vez, são as que regulam o contrato desde da sua formação até à execução das obrigações, podendo serem, também, as normas que o julgador utiliza para a resolução do litígio.

            Contudo é importante frisar que a lei estatal não pode ser derrogada pelas partes em troca dos Princípios Unidroit, pois a aplicação da lei que rege o contrato não é de livre opção das partes, mas sim da ordem jurídica estatal aplicável ao fórum. Caso contrário, haveria uma contrariedade à autoridade imperativa da lei estatal.

            É o que resulta do Artigo 1.4 dos Princípios Unidroit relativo às normas de ordem pública (Mandatory rules), ou seja, dada a particular natureza desses princípios, estes não podem restringir a aplicação de normas de ordem pública, quer de origem nacional, internacional ou supranacional que são aplicáveis de acordo com as normas pertinentes de direito internacional privado.

            Esta situação já é diferente quando as partes concordam em submeter suas disputas a um tribunal arbitral. Pois estes não estão necessariamente vinculados a uma particular lei estatal. Nesses casos é recomendado às partes escolherem qual lei ou convenção será aplicável, nas quais os tribunais arbitrais irão basear suas decisões.

            Conforme o Artigo 1.3 dos Princípios Unidroit (22) a alteração das circunstâncias só será relevante em casos excepcionais. Este enuncia a força vinculativa do contrato (Binding character of contract) por meio do princípio do pacta sunt servanda. Estatui que os contratos só podem ser modificados ou resolvidos conforme os termos disposto nas respectivas cláusulas, por acordo entre as partes ou pelas disposições enunciadas nos Princípios Unidroit, incluindo aqui o hardship.

            Por sua vez, o Artigo 1.7 dos Princípios Unidroit (23) relativo ao princípio geral da boa-fé (Good faith and fair dealing) estabelece no inciso 1 que as partes devem proceder conforme as regras da boa-fé no comércio internacional e, no inciso 2, que as mesmas não podem excluir nem limitar o alcance desse dever.

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            O segundo Comentário – da versão de 1994 – do inciso (1) do Artigo 1.7 explica a natureza da boa-fé para efeitos do comércio internacional da seguinte forma: "A referência à boa fé no ´comércio internacional` torna claro que, no contexto dos Princípios, este conceito não deve ser aplicado de harmonia com os padrões normalmente adoptados pelas diversas ordens jurídicas nacionais. Por outras palavras, esses padrões internos só podem ser tomados em conta na medida em que se revelem geralmente aceites pelas várias ordens jurídicas. Outra implicação decorrente da fórmula utilizada é que o conceito de boa fé deve ser interpretado à luz das condições particulares do comércio internacional. Os padrões da prática comercial podem, com efeito, variar consideravelmente de um setor comercial para outro e até no mesmo sector podem ser mais ou menos rígidos em função do meio sócio-econômico em que as empresas operam, da sua dimensão e capacidade técnica, etc" (24)

            Igualmente, os Artigos 2.14 (25) e 2.15 dispostos no Capítulo 2 dos Princípios Unidroit também possuem relevância ao estudo do hardship, mesmo em se tratando de artigos que regulam a formação (Formation) dos contratos de comércio internacional.

            O primeiro estabelece a regulamentação de contratos concluídos com cláusulas deliberadamente deixadas em aberto (Contract with terms deliberately left open), dispondo que caso as partes tenham a intenção de concluir o contrato, estas têm o direito de deixar suas cláusulas em aberto para futuras (re)negociações. E que, dessa forma, a existência dessas cláusulas não afeta a existência e a validade do contrato.

            Pois é muito comum que nos contratos internacionais de longa duração as partes intencionalmente deixam algumas cláusulas inacabadas havendo por isso disposições omissas, no qual podem dar-se por várias razões, ou porque as partes não acharam interessante ou porque não pensaram nelas no momento da conclusão. E estipulam que elas serão revistas por eles ou por um terceiro qualificado numa futura reunião. Essa situação pode ocorrer, por exemplo, com as cláusulas de hardship.

            Em havendo a presente situação, o Artigo 2.14 pode ser combinado com o Artigo 4.8 (26) dos Princípios Unidroit, relativo às omissões (Supplying an omitted term), disposto no Capítulo 4 que trata da interpretação dos contratos (Interpretation). Nesse caso, quando as partes contratantes não tenham chegado a um acordo a respeito de uma disposição contratual importante para a determinação dos seus respectivos direitos e obrigações, uma cláusula apropriada será constituída para remediar a lacuna do contrato. Conforme o Artigo 4.8, determinação da constituição de uma cláusula apropriada deverá ater-se, entre outros fatores, aos seguintes pressupostos: intenção das partes, natureza e objetivo do contrato, boa-fé e, razoabilidade.

            Ou, dependendo da questão, o Artigo 2.14 também pode ser combinado com o Artigo 5.2 (27) dos Princípios Unidroit relativo a obrigações tácitas (Implied obligations), disposto no Capítulo 5 que trata do conteúdo dos contratos (Content). A combinação desses dois Artigos tem ligação com a questão do risco não assumido pela parte caso se verifique uma situação de hardship, como se verá mais adiante. (28)

            O Artigo 2.15 (29), por sua vez, regula as negociações de má-fé (Negotiations in bad faith). Este vem a fornecer a definição de má-fé no seio dos Princípios Unidroit com o seguinte conteúdo: "It is bad faith, in particular, for a party to enter into or continue negotiations when intending not to reach an agreement with the other party".

            Ou seja, esse artigo prevê que as partes são livres para negociar não sendo responsáveis por não terem alcançado um acordo. A má-fé (a causa), portanto, se manifesta caso uma das partes inicia ou continua uma negociação sem a intenção de alcançar um acordo com a outra parte, e caso a parte que age de má-fé conduzir ou interromper as negociações, será, conforme o caso, responsável pelas perdas e danos causados à outra parte (o efeito).

            Uma vez que a negociação de má-fé afronta diretamente o princípio geral da boa-fé e que por isso rege todo o ordenamento jurídico dos Princípios Unidroit (Artigo 1.7), incluindo as disposições do Artigo 6.2.2, então por uma questão de lógica o Artigo 2.15 aplica-se por maioria de razão à renegociação do contrato quando se verificar uma situação de hardship. De fato, é imperativo às partes praticarem todas as suas condutas em boa-fé, desde a fase pré-contratual até à sua extinção, passando inclusive por todas as renegociações. Por isso o Artigo 2.15 não é aplicado somente nos casos de formação e negociação do contrato, mas sim para toda e qualquer (re)negociação do contrato. O campo de abrangência desse artigo é muito vasto.

            Finalizando, cabe fazer uma análise do Artigo 5.3 (30) dos Princípios Unidroit, relativo ao dever de cooperação (Co-operation between the parties). Esse dever tem especial relevância nos contratos de comércio internacional, já que, nessas relações o contrato não se limita a ser, simplesmente, um conflito de interesses, mas sim um projeto em comum no qual cada parte deve cooperar.

            Os limites do dever de cooperação não estão presentes no Artigo 5.3, uma vez que esse dever é enquadrado em "expectativas razoáveis" pela outra parte. Contudo, esses limites podem ser encontrados, por analogia, no Artigo 5.2 relativo às obrigações tácitas. (31)

            O dever de cooperação também se estende por toda a relação contratual por ser decorrente do princípio geral da boa-fé. Conseqüentemente o presente caso se traduz num dever de cooperação nas renegociações entre as partes quando verificado uma situação de hardship.

            Sendo apreciados o campo de abrangência (conforme a análise do Preâmbulo) e os princípios gerais básicos no qual se assenta a relação entre as partes para uma situação de hardship (Artigos 1.3, 1.7, 2.14 combinado com os Artigos 4.8 ou 5.2, Artigo 2.15 e o Artigo 5.3 com o auxílio do Artigo 5.2 por analogia) já fica possível abordar as disposições específicas a seu respeito, que estão reunidas na Seção 2 do Capítulo 6, a ponto de se chegar à sua definição e completa compreensão.

            1.2. Da definição de hardship nos Princípios Unidroit

            Em primeira linha, o Artigo 6.2.1 (32) faz um reforço ao princípio do pacta sunt servanda. Os Princípios Unidroit deixam claro que as cláusulas do contrato devem ser cumpridas "enquanto tal for possível e independentemente do encargo que representa" (33), "mesmo que uma parte sofra pesadas perdas em vez dos lucros esperados ou que o cumprimento se tenha tornado inútil". (34)

            No entanto, como dito anteriormente, o princípio do pacta sunt servanda ganhou relatividade. Nessa ordem, quando a alteração das circunstâncias altera substancialmente o equilíbrio das prestações do contrato, criando uma situação de hardship nos moldes dos Princípios Unidroit, fica possibilitada a aplicação excepcional do princípio da renegociação e alteração contratual.

            Por outro lado, conforme explica Jorge Barrientos-Parra, "a flexibilidade desta via é atenuada pelo princípio consagrado pela U.S. Court of Appeals no caso Allied Bank v. Banco Agrícola Cartago, de que os contratos originais permanecem válidos e executáveis durante a renegociação. A Corte pronunciou-se nestes termos: ´Guided by the IMF this on established approach encourages the cooperative adjustment of international debt problem. The entire strategy is grounded in the understanding that, while parties may agree to renegotiate conditions of payment, the underlying obligation to pay nevertheless remain valid and enforceable`". (35)

            Conforme o Comentário 4 do Artigo 6.2.2, o hardship, pela sua própria natureza, só é relevante em relação às prestações futuras, ou seja, aquelas que ainda não foram realizadas. Se a parte lesada cumpre a sua prestação deixa de poder invocar o hardship em relação a esta. E caso as prestações forem parciais, o hardship poderá curtir efeitos somente em relação à parte da prestação que falta realizar.

            A definição de hardship nos Princípios Unidroit é encontrada no caput do Artigo 6.2.2 e nas suas alíneas a, b, c e d. O caput vem a definir o que é uma alteração fundamental das circunstâncias para efeitos de hardship e as alíneas, respectivamente, fornecem os demais requisitos suplementares sobre o momento da verificação dos eventos danosos, da imprevisibilidade, da inevitabilidade e dos riscos não assumidos pelas partes.

            Resta agora estudar cada um desses casos.

            1.2.1. Das circunstâncias que alteram fundamentalmente o equilíbrio do contrato (ou das prestações)

            O caput do Artigo 6.2.2 fornece a definição de alteração fundamental das circunstâncias para efeitos de hardship, dispondo da seguinte forma "Há hardship quando surgem acontecimentos que alteram fundamentalmente o equilíbrio das prestações quer por aumento custo do cumprimento das obrigações que por diminuição do valor da contraprestação". (36)

            Este Artigo, juntamente com o Artigo da versão da língua francesa (37), faz menção a acontecimentos que alteram o equilíbrio das prestações. Diferente é o que ocorre com a versão da língua inglesa que dispõe com o seguinte conteúdo: "There is hardship where the occurrence of events fundamentally alters the equilibrium of the contract either because the cost of a party’s performance has increased or because the value of the performance a party receives has diminished".

            À primeira vista é possível pensar que existe um disparate nos Princípios Unidroit. De fato, a idéia de equilíbrio das prestações é muito diferente daquela do equilíbrio contratual. Pois, ao contrário daquela, o equilíbrio contratual abrange um campo muito mais vasto, incluindo todas as noções de desigualdades contratuais. Para isso, bastaria pensar num contrato de adesão, onde a parte que adere ao contrato sofre uma limitação na sua autonomia contratual, sem poder discutir as condições que já se encontram expostas no contrato.

            Dessa divergência poderia resultar conseqüências jurídicas distintas, gerando também diferentes conceitos e campos de abrangência de hardship. A exemplo disso temos a seguinte observação de M. Fontaine, que parece ter levado em consideração somente o texto na sua versão da língua francesa: "Du point de vue négatif, une premierè critique est que la définition de la notion de hardship se trouve trop exée sur le déséquilibre des prestations, que n´est que l´une des deux hypothèses du phenomène. L´autre hypothèse, celle où le contrat perd toute son utilité économique pour l´une des parties, sans être nécessairement déséquilibre, n´est pas visée par le texte risque de provoquer des contestations quant à l´application en pareil cas des dispositions en cause". (38)(39)

            Mas na verdade, não é isso que ocorre. Como explicado anteriormente, os Comentários fazem uma parte integral das normas black letters, nas quais explicam e fornecem exemplos de forma a conceber uma opinião mais exata.

            Por conseguinte, para se averiguar o que vem a ser o "equilíbrio das prestações" ou o "equilibrium of the contract" é preciso interpretar os termos utilizados no artigo 6.2.2 com o necessário auxílio dos seus Comentários.

            Nesse contexto, surge a necessidade de fazer um estudo do que vem a ser acontecimentos que alteram fundamentalmente o equilíbrio das prestações ou o equilíbrio do contrato. O termo fundamentalmente tem uma basilar importância, pois o hardship só poderá ser invocado caso a alteração do equilíbrio for fundamental. Para essa apuração, estudam-se as circunstâncias de cada caso.

            Os Princípios Unidroit de 1994 estipulavam no Comentário (2) do Artigo 6.2.2 um critério matemático para a averiguação da existência ou não de hardship. Tratava-se de uma alteração que correspondesse a um montante de 50% ou mais do custo do valor da prestação que equivaleria provavelmente a uma alteração "fundamental", caso as prestações fossem susceptíveis de serem quantificadas de modo preciso em termos monetários. A edição de 2004, muito acertadamente, deletou esse preceito. Pois, o critério dos 50% é relativamente escusado para a averiguação de hardship. Para alguns contratos essa porcentagem pode ser irrisória, não chegando a caracterizar uma alteração fundamental para nenhuma das partes. Por outro lado, 50% para alguns tipos contratuais pode ser catastrófico, devendo ser tido em conta uma porcentagem muito menor para a constatação de hardship.

            Alexei G. Doudko (40), já considerava que o montante de 50% não era absolutamente preciso para a aplicação geral do hardship, mas por outro lado, poderia valer como uma importante regra mínima para a sua averiguação.

            O autor também esclarece que "it is very difficult to speculate on the desirability of one set of mathematical guidelines or another as a proper function of the level of range of burden that could definitely excuse the obligor from performing in compliance with the agreed contractual terms. A 50% alteration as provided by the UNIDROIT Principles is perhaps reasonable in international commercial contracts, where large sums are habitually at stake and where even a small currency fluctuation could lead to huge losses, provided the obligor succeeds in persuading the court that no cheaper, practicable alternative means of performance is available". (41)

            E conclui que "In domestic practice, on the other hand, a 50% rate of distortion of equilibrium seems fairly low, especially for countries with an unstable political and economic situation, and it would seem to contradict the principle of the exceptional nature of changed circumstances". (42)

            Igualmente vale a opinião de Maurício Prado, pois o autor entende que: "L´adoption d´um critère objectif par lê commentaire constitue une précision importante qui vise à mettre fin à la discussion du seuil minimum. Nonobstant, le chiffre de 50% ne semble pas avoir une base très solide pour se justifier. Il faut se demander s´il constitue un seuil approprié pour couvir l´ensemble des situations possibles (contrat de fourniture, joint-ventures, contrat d´entreprise, de communication de savoir-faire, etc.) dans des domaines très variés comme les secteurs pétrolier, alimentaire, automobile, du prêt-à-porter, entre autres". (43)

            A alteração fundamental do equilíbrio das prestações pode manifestar-se ou por um aumento do valor da prestação ou por diminuição do valor da contraprestação.

            O primeiro consiste num aumento fundamental dos custos do cumprimento das prestações a uma das partes. Este pode dar-se, por exemplo, através do aumento fundamental do preço de matérias-primas necessárias à produção ou à introdução de novas regras governamentais que impõe procedimentos de produção fundamentalmente mais onerosos.

            A segunda consiste numa diminuição fundamental ou até mesmo pela perda total do valor da contraprestação podendo ser devidas a mudanças das condições do mercado ou pela frustração da finalidade (frustration of purpose).

            A introdução da teoria da frustration of purpose nos Princípios Unidroit foge do seu conceito, pois não se trata de alteração do equilíbrio, mas sim de um impedimento exterior que frustra a finalidade de um contrato. (44) Assim, a teoria do hardship nos Princípios Unidroit abrange, também, a teoria da frustração da finalidade.

            Os Comentários dos Princípios Unidroit deixam claro que as prestações não precisam ser necessariamente pecuniárias (monetary obligation). Elas sendo pecuniárias ou não devem obrigatoriamente afetar a economia do contrato.

            O Exemplo do Comentário (2) do artigo 6.2.2 dos Princípios Unidroit ilustra um caso em que uma das partes, comerciante de produtos eletrônicos, estabelecido na ex-República Democrática da Alemanha compra estoques de um outro comerciante estabelecido num outro país socialista. E que com a unificação da República Federal da Alemanha e da República Democrática da Alemanha aquele comerciante informa ao segundo que deixou de haver mercado para os produtos do vendedor. Nisso o comprador fica com a possibilidade de invocar hardship.

            Trata-se de um exemplo que ilustra um acontecimento político que altera o equilíbrio das prestações. Ou seja, não importa se os acontecimentos que alteram fundamentalmente o equilíbrio das prestações (ou do contrato) advenham de flutuações econômicas ou por questões políticas, sociais ou tecnológicas. O que vem a ter importância é que tais acontecimentos afetem a economia do contrato.

            Logo, as expressões utilizadas nas black letters das diferentes versões lingüísticas, nomeadamente, equilíbrio das prestações e equilíbrio do contrato não representam nenhum disparate, nem mesmo uma ameaça à exata compreensão da regulamentação do hardship nos Princípios Unidroit. Ambas as expressões para tais efeitos são equivalentes, pois deixa claro que, conforme resulta dos Comentários do Artigo 6.2.2, o equilíbrio encontra-se necessariamente vinculado com a condição econômica do contrato. Importante notar que em qualquer versão lingüística da black letters desse artigo, seguindo de seu respectivo comentário, é feito o uso da palavra "valor" ("value" na versão inglesa e "valeur" na versão francesa) como o equivalente em dinheiro ou bens, preço ou poder de compra, sendo no presente caso, relativo à execução da obrigação da parte.

            Portanto, para uma das partes poder invocar o hardship, fica indispensável a existência de eventos que alteram fundamentalmente a economia das prestações ou uma situação de frustração da finalidade do contrato (frustration of purpose), como analisado acima. Porém, tanto num caso como noutro, para se poder invocar o hardship, fica também indispensável a existência de outros quatro requisitos regulamentados nas alíneas a, b, c e d do Artigo 6.2.2 conforme explicado.

            1.2.2. Da cognoscibilidade e do momento da verificação dos eventos danosos

            Conforme a alínea a do Artigo 6.2.2 (45), os eventos danosos devem ocorrerem ou chegar ao conhecimento da parte lesada depois da celebração do contrato. Ou seja, impõe à esta parte a necessidade de conhecer e identificar tais eventos.

            O Comentário dessa alínea esclarece que se uma das partes tiver o conhecimento dos eventos danosos que alteram substancialmente o equilíbrio das prestações antes da conclusão do contrato não poderá posteriormente invocar hardship, por atrair sobre si o princípio do venire contra factum proprium. Pois é claro que a parte que possui o conhecimento desses eventos concluir um contrato e depois quiser alegar em seu favor fundamentação para renegociar as condições pactuadas estará agindo com abuso de direito.

            1.2.3. Da imprevisibilidade dos eventos danosos

            Os acontecimentos também não podem ser razoavelmente tomados em consideração pela parte lesada no momento da celebração do contrato (46). O Terceiro Comentário do Artigo 6.2.2 dos Princípios Unidroit fornece dois casos de imprevisibilidade de acontecimentos que caracterizam uma situação de hardship.

            O primeiro caso explica que quando ocorre uma alteração superveniente das circunstâncias estas não poderão ser alegadas pela parte em desvantagem como causa de hardship se podiam, razoavelmente, serem levadas em consideração ao tempo da conclusão do contrato.

            O segundo, por outro lado, explica uma situação em que as alterações das circunstâncias começam gradualmente antes da celebração do contrato e, caso o ritmo da mudança acelera de modo fulgurante durante a sua vigência, poderá valer como causa de invocar o hardship, caso esta mudança altere fundamentalmente o equilíbrio do contrato. Ou seja, os Princípios Unidroit esclarecem que as alterações das circunstâncias não ocorrem necessariamente de modo superveniente (depois da conclusão do contrato). Elas podem começar a ocorrer até mesmo antes da sua celebração, desde que a alteração das circunstâncias, que já ocorriam, passem por uma alteração radical que, por si, seja imprevisível.

            A questão da razoabilidade nos Princípios Unidroit, porém, tem se deparado com uma certa curiosidade na doutrina. De fato, não está esclarecido no Artigo 6.2.2 o critério que identifica o que vem a ser eventos razoavelmente levados em conta ou imprevisíveis para efeitos de aplicação do hardship.

            Visto que o inevitável está pouco de ser levado em conta pela razoabilidade. Ora, o que é razoável é o que vem a ser por si só comedido ou moderado (razoavelmente) pela parte. Logo, o evento inevitável não tem como ser prudentemente ponderado. O inevitável é o que está fora de óptica.

            Inicialmente, a posição de Maurício Prado explica que provavelmente "les auteurs «dos Princípios Unidroit» aient voulu induire une interprétation selon laquelle el convient de vérifier si au moment de la conclusion du contrat la partie lésée pouvait prévoir les impact de l´événemen sur leur affaire, plutôt que l´événement lui-même". (47)(48)

            Ou seja, fornece um critério de prudência para a parte em prever se a ocorrência de qualquer tipo de eventos acabam por ser aqueles que supostamente influenciam negativamente o contrato. Esse critério não vem a ser viável, pois não traz nenhuma segurança jurídica. O critério é demasiadamente subjetivo.

            Contudo, Alexei G. Doudko parece ter estudado a questão da imprevisibilidade com certa consideração. Este autor realça a importância de especificar um justo critério de (im)previsibilidade que não seja nem muito otimista nem muito pessimista. E explica que "The foresseability test was validly criticised as shedding very little light on the parties´ intentions or indeed on parties´ ability to control risks and perform. Practically speaking, all events are foreseeable in one way or another, since people usually have access to enough information to enable them to make credible predictions. On the other hand, there are definite cognitive limits on human ability to ´foresee` the future (…) Judges and arbitrators examining a case are perforce aware that circumstances have changed and this knowledge crates a bias, a tendency to treat these events as ´reasonably foreseeable`, and fuels a propensity to learn discourse as to why unforeseen events were really foreseeable". (49)

            E esclarece que "The foreseeability test is confined to cases of negligence, where a party fails to exercise a reasonable degree of care and prudence in situations where a change in circumstances is evident". (50)

            Dessa forma, somente serão considerados eventos imprevisíveis aqueles que estão fora de serem levados em conta aos olhos de um outro terceiro razoável, prudente. Aplicando-se o critério de culpabilidade a partir da parte lesada. Esse terceiro será, portanto, o juiz ou o árbitro que apreciará o caso concreto, levando em consideração as características específicas e históricas de cada ramo do comércio no qual o contrato se baseia.

            1.2.4. Da incontrolabilidade e da inevitabilidade dos eventos danosos

            Dispõe a alínea c (51) que para haver um caso de hardship os eventos danosos devem estar fora de controle da parte em desvantagem. Além disso, conforme entende Leonardo Gomes de Aquino "Os fatos devem estar fora da esfera de domínio causal, sendo, portanto, inevitáveis". (52)

            Trata-se de uma questão de acontecimentos "exteriores" em relação às partes e ao contrato. Por isso entende-se por se tratar de um critério essencialmente objetivo, uma vez que não advêm da vontade das partes, mas sim das circunstâncias alheias à relação contratual. Da mesma forma opina Alexei G. Doudko com o seguinte conteúdo: "The events beyond the parties´ control after the contract was concluded (cause) leading to an alteration of the equilibrium of the contract (effect) might form the ´objective` criteria for the model". (53)

            1.2.5. Do risco não assumido pelas partes

            Finalmente, para se poder invocar o hardship nos Princípios Unidroit, a parte lesada, quando da conclusão do contrato, não assume os riscos da alteração das circunstâncias (54).

            Porém, a assunção do risco nem sempre é ou pode dar-se de maneira expressa. Ou seja, é muito comum que o risco seja assumido de forma implícita (de forma tácita). É o que dispõe o Artigo 5.2 (55) (Implied obligations) dos Princípios Unidroit no qual as obrigações tácitas derivam, cumulativamente, da natureza e dos objetivos do contrato, das práticas estabelecidas entre as partes e dos usos, da boa-fé e, por fim, da razoabilidade.

            Isso implica que o risco vem em decorrência da natureza do contrato. É o que ocorre, por exemplo, nos contratos de natureza especulativa, onde normalmente existe um elevado grau de risco. Pois nesses casos as partes estão cientes das oscilações existentes em tal ramo do comércio, mesmo não importando se a parte tenha ou não levado em conta uma elevada alteração das circunstâncias no momento da celebração do contrato.

            A assunção do risco pode ser verificada também pela inclusão de cláusulas de adaptação automática nos contratos de longa duração. Mas fica a ressalva de que caso a prestação se tornar demasiadamente excessiva a ponto de representar uma séria dificuldade financeira à parte lesada, pode vir a ser um caso excepcional de desconsiderar a cláusula de adaptação automática e adaptar o contrato às novas circunstancias, conforme os princípios da boa-fé e da proporcionalidade. Por isso, nesses casos, pode ser mais vantajoso às partes elaborar contratos de natureza especulativa com a exclusão de responsabilidade em caso de alteração fundamental das circunstâncias devido à razões de flutuação econômica ou por questões políticas, sociais ou tecnológicas, ou elaborar contratos sem a inclusão de cláusulas de adaptação automática. Ambas as formas funcionando como meio de evitar situações de hardship.

            Muito interessante é o posicionamento de Alexei G. Doudko defendendo que a inclusão de cláusulas de adaptação automática não impedem a aplicação da regulamentação do hardship. O autor faz da seguinte forma: "Failure to incorporate an appropriate adaptation clause and the inclusion of a fixed price in long-term contracts, and the interpretation thereof as the party’s implied consent to bear the risk of changed circumstances do not necessarily exclude the application do hardship". (56)

            E explica que a não inclusão de cláusulas de hardship nos contratos de longa duração como uma forma de rejeitar a proteção do instituto do hardship é contrária a uma lógica elementar. Ou seja, se a inclusão dessas cláusulas é considerada como uma prática comum do comércio internacional, fica impossível alegar que pela sua não inclusão significa que uma das partes a queira excluir. E, por conseguinte, um risco no qual não fora previsto não pode de maneira alguma ter sido incluído no contrato. Pois a regulamentação do hardship dos Princípios Unidroit é direcionada primariamente aos contratos de longa duração. A longa duração desses contratos não cria por si só a presunção da assunção implícita de riscos. Defender o ponto de vista oposto levaria à conclusão de que as regras do hardship não podem nunca serem aplicados para o propósito pelo qual foram elaborados. (57)

            1.2.6. Dos efeitos do hardship no seio dos Princípios Unidroit

            Os efeitos jurídicos do hardship nos Princípios Unidroit vem dispostos nos Incisos de 1 a 4 do Artigo 6.2.3. (58)

            Segundo esse Artigo, a parte lesada tem o direito de requerer um Pedido de Renegociação à outra parte do contrato, caso se verifiquem todos os pressupostos do hardship. Alexei G. Doudko esclarece que "a substantial change of circumstances of itself does not automatically lead to adaptation or termination of the contract; it merely gives the disadvantaged party the right to request renegotiation". (59)

            O pedido deve ser feito sem demora injustificada e devem estar indicados os fatos em que o requerente se fundamenta. Conforme o Parágrafo 2 e por questões já analisadas (principalmente a respeito do princípio da boa-fé e do pacta sunt servanda) não é permitido à parte lesada querer suspender a execução do contrato, mesmo que o faça com justificativas, pois nesse caso esta pode incorrer em abuso de direito. Por maioria de razão a parte também não tem direito de adaptar as condições substancialmente alteradas por conta própria. Pois conforme entende Leonardo Gomes de Aquino, "Esta disposição tem em vista evitar a utilização abusiva do mecanismo de hardship, o qual deve manter a sua característica excepcional em função do caráter vinculativo do contrato, proclamado nos arts. 1.3 e 6.2.1". (60)

            Enquanto perdurar a renegociação, a parte lesada fica sujeita às condições originariamente pactuadas. A renegociação deve ser feita com espírito de cooperação, em obediência ao princípio da boa-fé, conforme visto anteriormente. (61)

            Cabe à parte lesada o ônus de provar a incidência de hardship de forma clara, completa e transparente, a fim de permitir à outra parte apreciar o pedido de renegociação sem nenhuma complexidade. Pois através do pedido, esta parte pode verificar a existência efetiva ou não de hardship ou, se for o caso, uma manobra leviana da parte lesada devida a alteração de circunstâncias que não chegam a caracterizar hardship. Por outro lado, caso a parte lesada querer renegociar o contrato em boa-fé não lhe dá base o suficiente para haver, de fato, uma renegociação entre ambas as partes.

            As cláusulas de adaptação automática dispostas no contrato não podem negar à parte lesada o direito de pedir a renegociação, caso estas não contemplam acontecimentos de hardship.

            O pedido deve ser apresentado tempestivamente, ou seja, sem atraso desnecessário. Mas fica a ressalva de que a demora injustificada não impede à parte lesada o direito de pedir a renegociação. A previsão da tempestividade do Pedido de Renegociação é mais por uma questão de beneficiar o andamento do contrato e a cooperação entre as partes, sem implicar, necessariamente, em nenhuma conseqüência prejudicial.

            A falta de enunciação dos fundamentos, bem como a demora injustificada da apresentação do Pedido de Renegociação poderá, no entanto, afetar a verificação de hardship, podendo gerar conseqüências danosas em questão de matéria probatória e à própria efetivação ou bom resultado da renegociação.

            Se a renegociação for infrutífera, as partes devem submeter a questão a um tribunal. A cláusula de hardship não pode deixar de prever um prazo razoável – conforme a natureza do contrato e ao caso concreto – para a renegociação. Essa cláusula também não pode excluir da apreciação de um tribunal a renegociação do contrato sob os efeitos do hardship. Por sua vez, o tribunal, respeitando à autonomia da vontade, só aprecia o caso mediante o pedido devidamente encaminhado de umas das partes do contrato.

            Alexei G. Doudko entende que "The judicial adaptation of contracts in the UNIDROIT Principles is subject to three yardsticks: reasonableness, equitable distribution of unexpected losses and maintenance of contractual equilibrium". (62) Assim, caso a renegociação for encaminhada a um tribunal, este poderá, conforme o Inciso 4, extinguir o contrato na data e nas condições estabelecidas por ele (alínea a), ou adaptar a avença com o propósito de restaurar o equilíbrio primitivo das prestações (alínea b), distribuindo igualmente as perdas entre as partes em relação às futuras prestações. O tribunal também deve procurar manter sempre as primitivas condições eqüitativas do contrato. Se uma das partes assumiu o risco quando da conclusão do contrato, o tribunal poderá analisar até que ponto este fora assumido pela parte lesada.

            Leonardo Gomes de Aquino entende que "O contrato só poderá ser resolvido se a sua adaptação não for razoável". (63) De fato, conforme de costume, a resolução do contrato só é utilizada em última circunstância pelo tribunal. Caso essa for a melhor hipótese, o caso é remetido para a Seção 3 do Capítulo 7 dos Princípios Unidroit, relativa à resolução do contrato (Termination).

            Porém, conforme o Comentário 7 do Artigo 6.2.3, caso a adaptação ou a extinção do contrato não se mostrarem razoáveis, o tribunal poderá ordenar às partes que prossigam as renegociações ou confirmar as condições atuais do contrato, ambas como última hipótese. Nesse caso, conforme entende Leonardo Gomes de Aquino (64), a alternativa de fazer voltar ao domínio das partes a renegociação do contrato representa uma denegação da justiça. Porquanto se a parte lesada que se encontra numa situação de hardship encaminha a questão ao tribunal, este terá a obrigação de resolver o litígio.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHEMIN, Luiz Ramiro Camilotti. Notas sobre hardship nos princípios Unidroit e nos contratos de comércio internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 662, 29 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6648. Acesso em: 24 abr. 2024.

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