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Um exemplo de direito-livre

25/06/2018 às 13:25
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Você sabe o que é direito-livre? Entenda o que há em comum entre as ideias de Gény e a recente decisão do STJ, admitindo título executivo extrajudicial fora dos limites estritamente legais.

A escola jusfilosófica do “direito-livre” originou-se da prática do direito, ou seja, de sua exegese e aplicação nos casos concretos.

Gény (1861-1944) lecionou sobre a libre recherche scientifique, que consistiria numa “pesquisa livre, porque subtraída da ação própria de uma autoridade positiva; pesquisa científica, ao mesmo tempo, porque busca as suas bases sólidas nos elementos objetivos que só a ciência lhe pode revelar” (Méthode d’interprétation et sources em droit privé positif, Paris, 1954, 2ª edição, tomo II, pág. 78). Entretanto, não reconhecia, moderadamente, que dita pesquisa “pudesse criar regras de direito com a mesma latitude que pertence ou ao costume” – que estabelecia o critério científico de sua escola, que era o da indagação praeter legem – ao longo da lei – nunca, porém, contra legem, frontalmente à lei, o que importaria insurreição contra a ordem jurídica vigente, não admitida pela escola moderada de Gény.

Contudo, desde o momento em que a lei – por deficiência ou ineficiência – viesse a colidir com o direito, ou, ainda, este com os fatos, era legítimo sustentar o direito atuante contra a lei superada (inefetividade da lei), verdadeiro direito à insurreição, legitimando uma resistência passiva, dos súditos pessoalmente afetados, às leis escritas, que violassem, de maneira intolerável, as faculdades essenciais do homem, consagradas pelo direito natural, a fim de que assegurasse “o triunfo da justiça irredutível sobre os caprichos de uma autoridade ultrajantemente opressiva”(Science et technique em droit privé positif, Paris, 1927, 2ª edição, tomo IV, pág. 153, n. XXI).

E. Ehrlich (1862 - 1922) procurou equacionar os grandes problemas jurídicos à luz da ciência social, proclamando que "o centro de gravidade do desenvolvimento jurídico não se encontra na legislação, nem na ciência jurídica, nem na decisão judicial, mas na sociedade humana(Fundamental Principles of the Sociology of Law, tradução de Moll, 1936). Daí a livre pesquisa do direito porque fundada na própria estrutura social, que exigia a distinção entre "normas de decisão", estabelecida para dirimir contendas judiciais, e "normas de organização", oriundas da vivência da sociedade e destinadas a disciplinar, de modo especial, a conduta humana. O pesquisador, assim, ficava à vontade em suas indagações, que deviam partir das realidades sociais e não de princípios preestabelecidos, a fim de que pudesse fixar normas que realmente consultassem aos superiores interesses dos diferentes grupos humanos. Era a indagação contra legem - que não foi admitida por Gény - porém, necessária, segundo o pensamento de E.Ehrlich, que polarizou a subescola exaltada, para realizar o direito em toda a plenitude existencial. 

Kantorowicz (1877 – 1940) dizia que "o juiz pode e deve prescindir da lei; em primeiro lugar, se lhe parece a lei não oferece uma decisão carente de dúvida; em segundo lugar, se não lhe parece verossímil, de conformidade com a sua livre e conscienciosa convicção, que o poder estatal existente, no momento da sentença, teria ditado a resolução que a lei reclama. Em ambos os casos, disse, o juiz ditará a sentença que, segundo a sua convicção, o atual poder do Estado teria decretado, se houvesse pensado no caso dos autos” (La lucha por la ciência del derecho, tradução W. Goldschmidt, apud La ciencia del derecho, Editorial Losada, Buenos Aires, 1949, pág. 363). Mas advertia que “não se objete que a convicção judicial ficaria incontrolável e que, por essa razão, nossas proposições dão ao arbítrio judicial carta aberta. Se não podemos confiar no juramento do juiz, que, com efeito, requer uma convicção séria, não existe garantia alguma. Também depende, hoje em dia, da convicção livre e incontrolável do juiz, aquilo que ele entende, mediante a sua intepretação, direito vigente, e o que reputa, por meio das provas, verdade. Contra os excessos da subjetividade, protege-nos suficientemente a multiplicidade niveladora dos magistrados nos tribunais e os recursos contra as decisões judiciais”.

Ensinou Paulino Ignacio Jacques (Introdução à ciência do direito, 2ª edição, pág. 244) que a ultraexaltação de Kantorowicz não era, pois, tão extrapolada, como tem sido apregoado; apenas desejava que os magistrados rompessem a camisa de força da dogmática jurídica, para que lograssem cumprir o seu dever, plenamente, ministrando boa justiça.

O Código Civil da Suíça, de 1907, em seu artigo 1º, primeira parte, estatuía que “se a lei não contiver nenhuma disposição aplicável, deverá o juiz decidir de acordo com o direito costumeiro, e onde também este faltar, como havia ele de estabelecer se fosse legislador”.

Em 1963, o STF instituiu as chamadas Súmulas, seleção de seus mais importantes arestos. Hoje há a chamada súmula vinculante.

O Supremo Tribunal Federal, não é de hoje, já reconheceu a ele “um certo poder normativo mitigado”, como se viu na elaboração de seu Regimento, além de outras decisões como a validação da Lei Maria da Penha, a interrupção da gravidez em casos de fetos anencefálicos, o direito ao aborto no primeiro trimestre da gravidez, o reconhecimento da união homoafetiva e as cotas para negros e deficientes em universidades.

Escrevendo sobre o tema, J.J.Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, Almedina, pág. 981, aduz que as decisões do Tribunal Constitucional que declararem, de forma abstrata, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade, têm força geral. Vinculação geral porque as sentenças do Tribunal Constitucional declarativas de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, em Portugal, vinculam todos os órgãos constitucionais todos os Tribunais e todas as autoridades administrativas. Aduz que força de lei há porque as sentenças têm valor normativo para todas as pessoas físicas ou jurídicas. Ao final, conclui o mestre:

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¨Note-se que a força de lei neste sentido não significa que as sentenças declarativas da inconstitucionalidade ou da ilegalidade tenham exatamente a mesma natureza das leis; elas são semelhantes às leis quanto a alguns efeitos, mas não são formalmente actos legislativos nem criam normas jurídicas. Precisamente por isso, não há possibilidade de requerer a declaração de inconstitucionalidade das próprias sentenças nem mesmo o TC pode elimina-las...¨.

Kelsen, por certo, via nas decisões dos Tribunais norma jurídica(Teoria Geral do Direito e do Estado, Martins Fontes,São Paulo,  2000, p. 389). Aqui se exerce função de anular leis inconstitucionais, criando norma geral que se encontra no mesmo nível das normas criadas pelo Poder Legislativo, sob absoluta licença da Constituição.

Para Kelsen, os Tribunais cumprem uma função legislativa quando são autorizados a anular leis inconstitucionais, exercendo-na ainda quando sua decisão, em caso concreto, se torna precedente para a decisão de outros similares. Na voz do mestre da Escola de Viena, com essa competência, o Tribunal cria, por meio de uma decisão, uma norma geral que se encontra no mesmo nível das normas criadas pelo Poder Legislativo. Na lição do mestre da escola de Viena, os Tribunais exercem uma função legislativa quando a sua decisão, em um caso concreto, se torna um precedente para a decisão de outros casos similares. O Tribunal com essa competência cria, por meio de sua decisão, uma norma geral que se encontra no mesmo nível dos estatutos criados pelo chamado órgão legislativo. À luz dos ensinamentos de Kelsen, percebe-se que a função judiciária consiste na criação de normas individuais com base em normas gerais e na execução de normas individuais assim como a função da Administração.

Ensinou Paulino Jacques (Da norma jurídica, pág. 26 a 39) que o STF não tem um papel de um simples tribunal de justiça, mas o de uma Constituinte permanente, “porque os seus deveres são políticos, no mais alto sentido da palavra, tanto quanto judiciais.

Veja-se, ainda, essa função por parte do guardião da lei federal: o Superior Tribunal de Justiça.

 O site do STJ, datado de 28 de maio do corrente ano, noticiou que um  contrato de mútuo eletrônico celebrado sem a assinatura de testemunhas pode, excepcionalmente, ter a condição de título executivo extrajudicial e, dessa forma, permitir a execução em caso de inadimplência.

Baseada nesse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a recurso da Fundação dos Economiários Federais (Funcef) para determinar o prosseguimento de uma execução, por entender que o contrato firmado eletronicamente e com assinatura digital prescinde da assinatura das testemunhas previstas no artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973.

Segundo o relator do caso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nem o Código Civil nem o Código de Processo Civil (inclusive o de 2015) foram totalmente permeáveis à realidade vigente, em virtude da evolução tecnológica vivenciada nas últimas décadas.

O caso foi objeto de análise no REsp 1.495.920.

No voto, acompanhado pela maioria da turma, Sanseverino justificou que a exigência formal das testemunhas poderia ser inviável no ambiente virtual. O sistema, segundo o ministro, foi concebido para não necessitar de demais encaminhamentos, e as assinaturas eletrônicas são utilizadas amplamente em outros meios, como no processo eletrônico judicial.

“A assinatura digital do contrato eletrônico, funcionalidade que, não se deslembre, é amplamente adotada em sede de processo eletrônico, faz evidenciada a autenticidade do signo pessoal daquele que a apôs e, inclusive, a confiabilidade de que o instrumento eletrônico assinado contém os dados existentes no momento da assinatura”, observou o relator.

O ministro Sanseverino ressaltou que o executado nem sequer foi citado para responder à execução, oportunidade em que poderá suscitar defesa que entenda pertinente, inclusive questionando o método de celebração do contrato.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um exemplo de direito-livre. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5472, 25 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66528. Acesso em: 17 abr. 2024.

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