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O fiscal de contratos e o TCE-MT: a insuficiência da mera designação formal

11/10/2019 às 16:44
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Examina-se a interpretação constitucional a ser dada ao dispositivo da Lei de Licitações e Contratos que exige a nomeação de fiscal de contrato, garantindo-se sua efetividade.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 exige, no art. 37, XXI, que as obras, serviços, compras e alienações promovidas pelo Estado sejam precedidas de procedimento licitatório, assegurando os princípios da isonomia, seleção da proposta mais vantajosa da administração e outros.

O referido procedimento, bem como os contratos, encontram-se regulamentados pela Lei nº 8.666/93, que determina que a execução dos contratos seja acompanhada e fiscalizada por representante da Administração Pública formalmente designado, permitindo a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo nas informações necessárias, conforme consta no art. 67 da referida lei.

Contudo, o que se tem percebido na prática é que os gestores têm-se limitado a designar fiscais de contratos apenas para eximirem-se da responsabilidade pelo descumprimento da lei de licitações e contratos, sem, contudo, preocuparem-se com o efetivo exercício das atribuições por esses fiscais, que, não raro, mantêm-se distantes das obras, serviços e/ou compras contratadas.

O presente artigo visa conferir uma interpretação atualizada e constitucional do art. 67 da Lei nº 8.666/93 à luz do entendimento das instituições de controle externo, indispensáveis à fiscalização da Administração Direta e Indireta, como prevê o art. 71, da Constituição Federal de 1988.


2. DOS OBJETIVOS DA LEI Nº 8.666/93 E DA IMPRESCINDIBILIDADE DOS FISCAIS DE CONTRATOS PARA A CONSECUÇÃO DESSES

Por expressa previsão constitucional, art. 37, a Administração Pública Direta e Indireta de quaisquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem obedecer os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Importante regra para a consecução dessas diretrizes é a exigência de que a Administração Pública somente realize contratações mediante prévia licitação.

Assim, nos termos do art. 3º da Lei nº 8.666/93, o procedimento licitatório objetiva “garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável”, sendo processada e julgada em “conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”.

Afim de alcançar tais metas e seguir o devido procedimento, a Lei nº 8.666/93 prevê uma série de aparatos, como: a exigência de elaboração de projetos básico e executivo, art. 7º, I e II; as estritas hipóteses de dispensa da licitação, arts. 17 e 24; os requisitos para habilitação dos participantes, art. 27; e a fiscalização dos contatos por representantes da Administração Pública, art. 67, assunto que interessa ao presente artigo.

Ocorre que o referido dispositivo apenas estabelece que “a execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição”, sem detalhar como deverá ser desenvolvida essa atribuição.

Em uma interpretação superficial, atenta unicamente ao texto legal, poder-se-ia entender que a designação de fiscal é suficiente ao cumprimento do artigo.

Contudo, atualmente, o princípio da legalidade foi substituído pelo princípio da juridicidade, que rompe a ideia convencional de estrito cumprimento da lei e impõe uma interpretação ampla, considerando todo o Direito.

Nesse sentido, dispõe brilhantemente o doutrinador Rony Charles:

A mudança no paradigma estatal, a evolução do valor da Constituição e a complexidade das relações sociais atuais e dos serviços públicos prestados, não admitem que a legalidade continue a ser imposta em seu sentido estrito, como uma amarra do agente público à letra da Lei, um trilho limitador da atuação estatal.

(...)

Neste contexto, a doutrina indica o avanço da legalidade para um novo sentido, o da juridicidade, apresentada como um conceito maior, que extrapola a compreensão tradicional da legalidade estrita, vinculando a Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo e não apenas à Lei, o que permite uma margem maior de autonomia, dentro dos limites apresentados pelo ordenamento constitucional para a satisfação das diretrizes apresentadas por ele. (TORRES, 2015, fl. 66).

Nesse sentido, reivindica-se dos gestores públicos que não apenas designem os fiscais de contratos, mas que reclamem um acompanhamento e fiscalização real, posto que o devido cumprimento dos contratos é essencial ao atingimento dos objetivos perseguidos pelo procedimento licitatório.

Assim, a mera promoção de licitação conforme os trâmites legais restaria inócua se o contratado não executasse o objeto dessa de acordo com as exigências previstas no edital e no contrato, comprometendo a qualidade de proposta mais vantajosa, a eficiência e muitos outros princípios regentes.

Isso posto, passa-se à análise do art. 67, da Lei nº 8.666/93 pelas instituições de controle do estado de Mato Grosso.


3. DO ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS E DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MATO GROSSO ACERCA DA ATUAÇÃO DOS FISCAIS DOS CONTRATOS

As licitações e contratos são temas muito caros aos Tribunais de Contas, sendo frequente a imputação de irregularidades aos gestores pelo descumprimento de dispositivos da Lei nº 8.666/93.

No específico caso do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, a Resolução Normativa nº 02/2015 – TP, que atualiza a Cartilha de Classificação de Irregularidades no âmbito do TCE-MT, tipifica, em seu anexo único, a “inexistência de acompanhamento e fiscalização da execução contratual por um representante da Administração especialmente designado” como a irregularidade HB04, de natureza grave, prevista desde a primeira cartilha de irregularidades, trazida pela Resolução Normativa nº 17/2010.

Contudo, por muito tempo, o TCE-MT limitava-se a analisar se o gestor havia designado o fiscal de contrato, sem se esmiuçar no trabalho executado por esse fiscal.

A virada paradigmática ocorreu em 2014, quando, ao analisar as Contas Anuais de Gestão da Prefeitura Municipal de Nova Lacerda, Processo nº 7.615-5/2013, o Ministério Público de Contas contrariou os argumentos da defesa e considerou insuficiente a mera designação de servidor para acompanhar os contratos sem a comprovação dessa fiscalização.

É trecho do Parecer nº 2.200/2014 do MPC-MT que interessa ao tema:

O gestor defende-se alegando que a irregularidade não ocorreu, pois o servidor Domingos Bertiote Silva, foi nomeado como responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos contratos.

Em análise conclusiva a equipe técnica menciona que a designação do servidor para fiscalizar e acompanhar os contratos é ampla e genérica, não havendo ciência do servidor quanto a responsabilidade da fiscalização, não se comprovando por nenhum relatório, ou qualquer outro documento, quanto a atuação do fiscal dos contratos. Dessa forma, entende a SECEX pela permanência da irregularidade.

Nas alegações finais, o gestor aduz que mesmo não havendo relatórios que comprovem sua execução, o servidor acompanhou e fiscalizou os contratos, tanto é que não houve qualquer prejuízo ao erário.

Concordando com os argumentos expostos pela equipe técnica, verifica-se claramente a violação ao disposto no artigo 67 da Lei de Licitações, tendo em vista que, no caso em apreço, o Sr. Domingos Bertiote Silva foi designado para fiscalizar e acompanhar todos os contratos realizados pela Prefeitura Municipal de Nova Lacerda.

Cumpre informar, que houve no presente caso a designação de servidores em número insuficiente para acompanhar e fiscalizar a execução dos contratos no exercício de 2013, isso porque, cada contrato possui suas particularidades e especificações, sendo necessário que os servidores designados possuam domínio básico sobre o objeto fiscalizado.

Não é concebível que apenas um fiscal consiga exercer de forma eficiente o acompanhamento da execução de todos contratos. Dessa forma, a designação genérica para acompanhar e fiscalizar os contratos celebrados não representa a melhor fiscalização, visto que o fiscal deve ser designado conforme sua área de conhecimento e proximidade em relação ao objeto contratado.

Portanto, a irregularidade em questão merece ser mantida por violar o contido no art. 67 da Lei nº 8.666/93, configurando ato de gestão praticado com grave infração de norma legal, a ensejar a aplicação de multa ao gestor, com fundamento no art. 75, III, da Lei Orgânica do TCE/MT c/c art. 6º da Resolução Normativa TCE/MT nº 17/10, bem como a determinação ao gestor para que se atente ao cumprimento do artigo 67 da Lei 8.666/93, mediante a designação especial de representante da Administração para acompanhamento e fiscalização dos contratos firmados.

Na ocasião, foi proferido o Acórdão nº 1.291/2014 – TP, cujo entendimento sobre o acompanhamento e fiscalização da execução do objeto contratual foi publicado no Boletim de Jurisprudência do TCE-MT com o seguinte teor:

Contrato. Acompanhamento e fiscalização da execução de objeto contratual. Designação formal de fiscal de contrato. Comprovação de atuação. A designação formal em portaria para que servidor atue como fiscal de contratos não é suficiente para atender ao acompanhamento e fiscalização da execução contratual exigidos no artigo 67 da Lei nº 8.666/93, sendo necessária, ainda, a comprovação de atuação do fiscal por meio de relatórios ou livro de ocorrências, em que indique o cumprimento do objeto e dos prazos contratuais e os incidentes relacionados com a execução contratual, determinando ou recomendando soluções para a regularização de faltas ou defeitos observados. (Contas Anuais de Gestão. Relator: Conselheiro Sérgio Ricardo. Acórdão nº 1.291/2014-TP. Processo nº 7.615- 5/2013).

Após, foram proferidas outras decisões, todas uníssonas na exigência de que os fiscais de contrato atuam de maneira efetiva, desdobrando-se nos requisitos de que demonstrem sua atuação por meio de relatórios de acompanhamento e de que o gestor garanta um quantitativo suficiente de servidores para bem exercer a fiscalização:

Contrato. Execução contratual. Fiscal de contrato. Acompanhamento e fiscalização da execução de objeto contratual. Comprovação de atuação. 1. O fiscal de contrato administrativo deve acompanhar e fiscalizar a execução do objeto contratado, não podendo se limitar à análise formal da execução da despesa. 2. A efetiva atuação dos fiscais de contrato deve ser comprovada por meio de relatórios de acompanhamento da execução contratual, sendo insuficiente, para a comprovação, a mera designação formal. (Contas Anuais de Gestão. Relator: Conselheiro Substituto Moisés Maciel. Acórdão nº 1.199/2014-TP. Processo nº 7.732-1/2013).

Contrato. Fiscal de contrato. Designação de apenas um servidor para fiscalização de todos os contratos da Administração. 1. A designação de apenas um servidor para acompanhar e fiscalizar todos os contratos administrativos celebrados pelo Poder Executivo Municipal não atende ao disposto no art. 67 da Lei nº 8.666/93, quando verificado que os relatórios de fiscalização foram elaborados sem o cuidado, empenho e cautela necessários. 2. O gestor público deve designar quantitativo suficiente de servidores para o acompanhamento dos contratos celebrados pela administração, a fim de que eles tenham condições efetivas de exercer a fiscalização dos contratos, dando cumprimento ao disposto no art. 67 da Lei nº 8.666/93. (Contas Anuais de Gestão. Relator: Conselheiro Antonio Joaquim. Acórdão nº 2.953/2015-TP. Processo nº 1.681-0/2014).

Contrato. Fiscal de contrato. Falta de efetividade na fiscalização dos contratos. Proporcionalidade do número de fiscais. Comprovação da atuação dos fiscais por meio de relatório detalhado. 1. Existindo relatórios de fiscalização para todos os contratos firmados pela administração, a designação de somente um servidor para acompanhar e fiscalizar todos os instrumentos não é suficiente para se concluir que houve falta de efetividade no controle dos contratos, sendo necessária a evidenciação do real prejuízo decorrente dessa situação para configuração da irregularidade. 2. O número de servidores designados como fiscal de contratos deve ser proporcional à quantidade dos instrumentos firmados pela administração. 3. A efetiva atuação dos fiscais de contratos deve ser comprovada por meio de relatórios de acompanhamento da execução contratual que contemplem informações detalhadas sobre a execução do objeto de cada instrumento. (Contas de Gestão. Relator: Conselheiro Valter Albano. Acórdão nº 1.716/2015-TP. Processo nº 1.597-0/2014).

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Do exposto, evidencia-se que o entendimento do MPC-MT e do TCE-MT estão de acordo com o princípio da juridicidade, ultrapassando o mero texto legal para protestar que os gestores e fiscais de contratos concretizem o intuito do legislador constituinte ao requerer que as contratações públicas sejam precedidas de licitação. Ou seja, que seja efetivamente resguardado o interesse público com a execução do contrato em respeito à eficiência, seleção da proposta mais vantajosa, moralidade e outros.


4. CONCLUSÃO

A Lei de Licitações e Contratos, Lei nº 8.666/93, foi editada no século passado, já tendo transcorrido mais de vinte anos da sua publicação.

Em que pese, desde os primórdios, ter o legislador ocupado-se em seguir o espírito constitucional da preservação da coisa pública, ainda havia por parte da sociedade e dos próprios poderes uma certa insegurança quanto a uma interpretação mais efetiva da lei.

Importante exemplo dessa situação era a análise superficial do art. 67 dessa, em que, não raro, era suficiente a mera designação de fiscal de contrato pelo gestor para considerar cumprido o dispositivo.

Contudo, atualmente, dever ser atribuído ao princípio da legalidade contornos de juridicidade, exigindo-se um exame conforme todo o ordenamento jurídico.

Assim, tendo a Constituição Federal e a Lei nº 8.666/93 objetivado proteger o interesse público com a exigência de realização de procedimento licitatório quando da realização de contratações pela Administração Pública, indispensável que essa garanta que os contratos sejam bem executados. Do contrário, restaria inócuo todo o aparato legal.

Nesse sentido, louvável o entendimento do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso que, acompanhando parecer do Ministério Público de Contas, passou a exigir que os fiscais de contratos demonstrem a atuação por meio de relatórios e que os gestores nomeiem servidores suficientes para bem executar a atividade de acompanhamento e fiscalização.


5. REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal, 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>, acessado em 14/12/17.

BRASIL. Lei nº 8.666/93, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>, acessado em 14/12/17.

TORRES, Rony Charles Lopes de. Leis de licitações públicas comentadas. 7ª edição. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MATO GROSSO. Boletim de Jurisprudência. Edição Consolidada: fevereiro de 2014 a junho de 2016.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MATO GROSSO. Resolução nº 17/2010, 07 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.tce.mt.gov.br/arquivos/downloads/00021191/Resolu%C3%A7%C3%A3o%20Normativa%20n%C2%BA%20017-2010.pdf>, acessado em 14/12/17.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MATO GROSSO. Resolução nº 02/2015, 24 de fevereiro de 2015. Disponível em: <http://www.tce.mt.gov.br/arquivos/downloads/00050772/002-2015.pdf>, acessado em 14/12/17.

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Sobre a autora
Camila Parente Almeida

graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí em 2013. Atuou como Assistente do Controle Externo em gabinete de Conselheiro Substituto no TCE-PI no período de setembro de 2013 a outubro de 2014. Desde 2014, trabalha como Analista de Contas em gabinete de Procurador de Contas do MPC-MT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Camila Parente. O fiscal de contratos e o TCE-MT: a insuficiência da mera designação formal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5945, 11 out. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66695. Acesso em: 18 abr. 2024.

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