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Multiparentalidade

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24/09/2018 às 15:00
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A partir de um estudo de caso, entenda como se desenvolveu a trajetória da família brasileira e por que a família multiparental – já existente nos anos 80 e 90 – clama por reconhecimento total.

Introdução

Maria e Alberto ficaram casados por 15 anos, tendo nascido um filho chamado Lucas. Quando ele tinha três anos, os pais se divorciaram e Maria acabou por se casar com Jorge, com quem ficou por mais 7 anos. Jorge cuidava de Lucas como se seu filho fosse, muito embora Alberto pagasse a pensão normalmente e também dedicasse grande parte de seu tempo a seu filho. Após o término de seu casamento com Maria, Jorge pretendeu continuar a visitar Lucas e a definir seu futuro, manifestando-se acerca de suas atividades escolares.

Insatisfeita com a ingerência de seu ex-marido na vida de seu filho, Maria quer saber se Jorge tem algum direito com relação a Lucas.

A família sofreu inúmeras mudanças na função, natureza e composição, especialmente com o advento do Estado Social, no século XX, conforme ressalta Paulo Lôbo. O Estado progressivamente passou a tutelar, de forma constitucional, a família, definindo modelos e ampliando o âmbito dos interesses protegidos. A família passou a ter proteção do Estado, constituindo esta proteção um direito público subjetivo, conforme consta na Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, ao assegurar o art. 16.3 que “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”[1].

O direito de família tem sofrido grandes modificações, especialmente no final do século que se encerrou. Já no início deste século e milênio,  continuou tentando acompanhar a evolução social; entretanto, a legislação raramente consegue acompanhar as rápidas modificações sociais. O Código Civil de 1916, obra memorável no seu tempo, não acompanhou a rápida evolução e modificação dos costumes, especialmente na estrutura da família patriarcal do século passado, na qual prevalecia a autoridade do homem, enquanto provedor, marido e pai. A vontade do pai e marido era fundamental e determinante, sendo imposta aos dependentes como lei.

Carlos Roberto Gonçalves ensina que a família brasileira sofreu influência da família romana, na qual predominaram as preocupações de ordem moral; da família canônica, que considera o casamento um sacramento, não podendo os homens dissolverem a união realizada por Deus – quod Deus conjunxit homo non separet - , materializada no direito especialmente pelas Ordenações Filipinas, de forte predominância do Direito Canônico; e da família germânica, que originou de forma crescente diversas regras do direito pátrio[2].

A família brasileira, então predominantemente rural e patriarcal, passou, a partir de meados do século XX, a povoar as cidades, abrindo oportunidades para o trabalho externo e, em consequência, mais liberdade e independência da mulher, enfraquecendo a estrutura patriarcal.

O Desembargador Francisco Figueiredo destacava, em suas aulas e palestras, que dois fatos foram fundamentais no século passado para a igualdade posterior dos cônjuges no casamento: o surgimento da pílula anticoncepcional, permitindo à mulher controlar a natalidade, e o advento da Lei nº 4.121/62, denominada Estatuto da Mulher Casada, que lhe conferiu - o que parece absurdo nos dias atuais - um grande avanço na época: o direito a exercer profissão lucrativa distinta do marido, exercer a função de colaboradora na sociedade conjugal, administrar livremente o produto de seu trabalho e os bens com ele adquiridos e ingressar em juízo, sem autorização do cônjuge.

Até a Lei nº 4.121/62, a mulher casada era considerada relativamente incapaz para os atos da vida civil, exigindo consentimento do marido (art. 242 do CC/1916).

A Constituição de 1988 acolheu as transformações sociais da família brasileira, incluindo, em seu texto, três eixos modificativos de extrema relevância: a) igualdade em direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal (art. 226, § 5º), reproduzindo o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I); b) igualdade absoluta dos filhos (art. 227, § 6º), sem importar a origem e vedando-se qualquer forma de discriminação; c) pluralidade dos modelos de família (art. 226, §§ 1º, 3º e 4º).

Não foram recepcionadas as normas do Código Civil de 1916, que importavam em distinção entre homem e mulher, filhos ou modelos de família para proteção do Estado, o que exigiu sua atualização e das leis especiais, inclusive com edição de novas normas, resultando finalmente na aprovação do Código Civil de 2002. O Código Civil em vigor também já reclama revisão em diversos textos, alguns já atualizados, para se adequar ao atual momento e concepções modernas de família.

Como ensina Rolf Madaleno, o Código Civil vigente não se apresenta como uma ferramenta completa, atualizada e moderna para regular todas as mudanças ocorridas na sociedade em relação à família. Ocorreram modificações significativas nas relações familiares, exigindo um tratamento mais humanizado diante da busca incessante do ser humano pela felicidade pessoal e familiar, sem discriminações e preconceitos.

A constante ebulição em que vive o direito de família, que atrai e atinge todos nós, direta e indiretamente, eleva a importância da doutrina e da jurisprudência para adequar as alterações sociais ao texto da lei, abrindo caminhos para conciliar o texto escrito e a verdade axiológica.

Exige-se, assim, para a compreensão e interpretação dos textos legais interação com a doutrina e a jurisprudência[3]. Não raras vezes, a dinâmica das evoluções sociais na família não encontra regulamentação no Código Civil e legislações extravagantes, exigindo um judiciário ativo para acolher as construções doutrinárias sobre o tema e conferir juridicidade ao caso concreto.

É o que ocorreu no histórico julgamento do Superior Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.227 em 5 de maio de 2011, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, reconhecendo a união homoafetiva como entidade familiar e conferindo todos os direitos da união estável, suprindo a omissão da legislação que não regula as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Conceitua-se o direito de família como as normas que regulam o casamento, a união estável e as relações reciprocas de natureza pessoal e patrimonial entre cônjuges, companheiros, pais, filhos e parentes. Constitui o complexo de normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, a união estável e os outros modelos de família, as relações entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e os institutos da tutela e curatela[4].

Para alguns autores, a tutela e a curatela não são objeto de família, sustentando que são institutos complementares[5] desse ramo do direito civil, posto que, embora não resultem de relações familiares, possuem conexão com o direito de família.

Deve ser observado, todavia, que também a união estável, assim como o casamento, gera relações pessoais, patrimoniais e assistenciais. Conclui-se pois que as normas do direito de família, de conformidade com sua finalidade, ora regem as relações pessoais entre cônjuges ou conviventes, entre pais e filhos, entre parentes, como as que tratam dos efeitos pessoais do matrimonio, da filiação, ou as que autorizam o filho a promover a investigação de sua paternidade; ora regulam as relações patrimoniais que surgem, por exemplo, entre marido e mulher ou companheiros, entre ascendentes e descendentes, entre tutor e pupilo; ora disciplinam as relações assistenciais que existem entre os cônjuges ou conviventes, os filhos perante os pais, o tutelado ante o tutor e o interdito em face do curador[6].

O moderno direito de família agasalha, ainda, as diversas formas de família constituídas pela convivência e afeto entre seus membros, sem importar o vínculo biológico e o sexo. A afetividade é atualmente o elemento agregador da entidade familiar, na busca sempre de uma família eudemonista que se realiza na felicidade e na proteção de cada um de seus membros que a integra.

As relações que envolvem as pessoas unidas pelo matrimonio, união estável, parentesco, bem como os institutos complementares de direito protetivo, estão reguladas pelo Código Civil nos arts.1.511 a 1.783, no Livro IV, dividido em quatro títulos.

Alguns doutrinadores, observando o vínculo gerado, dividem suas obras de direito de família em direito matrimonial (casamento), convencional (união estável e uniões homoafetivas), parental (regras de parentesco, filiação, adoção e poder familiar), alimentar e assistencial (guarda, tutela, curatela e medidas específicas de proteção ao menor), cujo critério adotaremos.


Desenvolvimento

A família multiparental ocorre quando o filho possui dois pais ou duas mães, um biológico e outro socioafetivo, sem que um exclua o outro.

A dinâmica com que se reconstituem as famílias, especialmente em razão da facilidade do divórcio e o vínculo formal do casamento não ter mais a importância de antes na união das pessoas, quebrou o modelo tradicional de família, em que o casal vivia junto, mesmo não mais se suportando, para manter o casamento. A família hoje é eudemonista, privilegiando a proteção de cada um dos membros que a integra e que busca a realização pessoal e a felicidade, fazendo com que muitos casais se separem se a união não estiver satisfatória, mesmo possuindo filhos, da onde advém a família monoparental, que também ocorre com a morte de um dos parceiros.

Após a separação ou viuvez, muitos pais ou mães casam-se ou constituem união estável, reconstituindo a família com um novo parceiro, com ou sem filhos, que passam a viver em comunhão de afetos nesse novo arranjo familiar, cada vez mais comum, denominado de família pluriparental ou mosaico.

Por mais vezes, o novo parceiro passa a exercer a autoridade parental dos filhos que seu cônjuge/companheiro trouxe das relações anteriores, surgindo um vínculo de socioafetividade, sem, contudo, o filho perder os vínculos afetivos com o genitor, que mantém o poder familiar.

O vínculo de afeto entre o parceiro do pai ou da mãe já foi reconhecido na Lei nº 11.924/2009, que acrescentou o § 8º ao art. 57 da Lei nº 6.015/73, para autorizar ao enteado e à enteada acrescentar no seu registro de nascimento os sobrenomes de família de seu padrasto ou madrasta, desde que com a concordância destes.

O padrasto/madrasta pode muitas vezes passar a exercer funções de pai/mãe, fazendo surgir uma paternidade/maternidade socioafetiva, uma paternidade cultural que se solidifica na convivência familiar, sem que o filho afetivo perca os vínculos com os pais biológicos, possuindo mais de um pai ou mais de uma mãe, surgindo a família multiparental.


Fundamento 1

Parte da doutrina tem defendido o reconhecimento concomitante da filiação biológica e socioafetiva, com todos os efeitos jurídicos, incluindo os vínculos de parentesco com os dois pais ou duas mães, alimentos e herança[7]. Assim, o registro de nascimento deve espelhar a realidade e abrir espaço para constar o nome de mais de uma mãe ou um pai e os avós[8].

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Em se tratando de alimentos, a obrigação alimentar gerada pelo reconhecimento da multiparentalidade é a mesma já aceita e reconhecida no caso da biparentalidade – ou seja, é aplicada tanto ao pai biológico quanto ao pai afetivo, observando o disposto no art. 1.696 do Código Civil:

“Art. 1.696: O direito à prestação de alimentos é reciproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”. 

Ou seja, os pais/mães biológicos e afetivos seriam credores e devedores de alimentos em relação ao filho, respeitando, obrigatoriamente, o binômio possibilidade/necessidade (disposto no art. 1.694, § 1º do Código Civil).

A construção doutrinária, defendida especialmente por Ana Carolina Brochado Teixeira, Renata de Lima Rodrigues e Belmiro Pedro Welter, tem encontrado algumas resistências na jurisprudência, especialmente em razão do entendimento cada vez mais acolhido de que a paternidade socioafetiva, configura a posse de estado de filho, sobrepõe e exclui a biológica. Ressalta-se, ainda, predominar o entendimento jurisprudencial de que ninguém pode ter dois pais ou duas mães, pois uma maternidade ou paternidade exclui a outra, não se confundindo o afeto do padrasto/madrasta em razão do vínculo da afinidade com o vínculo de filiação da paternidade/maternidade.

Apesar das resistências, entretanto, parte da jurisprudência começa a acolher a multiparentalidade na filiação. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já reconheceu a possibilidade da família multiparental, ao manter o pai registral no assento de nascimento e incluir a paternidade biológica, em ação de investigação de paternidade para obter a paternidade biológica. Constou na ementa que, em face da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica, não há prevalência na paternidade socioafetiva nem da biológica, o que possibilitou a manutenção do registro com o pai registral e a declaração da paternidade biológica[9].

2.2 Fundamento 2

Também foi autorizado pela juíza da 3ª Vara Cível de Santana do Livramento/RS, Carine Labres, a inclusão do nome do pai biológico no registro de nascimento do filho já registrado em nome do companheiro da mãe, mantendo-se a paternidade afetiva e biológica, atentando-se para a multiparentalidade e o afeto como valor jurídico[10].

2.3 Fundamento 3

O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a possibilidade de incluir na certidão de nascimento do filho a maternidade socioafetiva da madrasta que o criou, mantendo-se a mãe biológica já falecida, conforme a seguinte ementa:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA – Preservação da maternidade biológica – Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade – Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido[11].

2.4. Fundamento 4

Em Minas Gerais, na Comarca de Nova Lima, o juiz Juarez Morais de Azevedo autorizou, em pedido de adoção formulado pelo tio de uma criança e sua esposa, a manutenção do nome da mão biológica no registro. O casal cuidou do menor desde o seu nascimento, pois a mãe faleceu no parto e o pai é desconhecido. Fundamentou o magistrado que o conceito de família tem se alargado, podendo abranger várias formas de núcleos familiares mesmo que não previstos expressamente, como a multiparentalidade, que privilegia o melhor interesse da criança. No caso concreto, o menor vai possuir no registro os pais afetivos e a manutenção do nome da mãe biológica, preservando sua memória e o conhecimento do passado[12].

2.5 Fundamento 5

A justiça catarinense autorizou o registro de um recém-nascido com os nomes de um casal homoafetivo como pais, em caso de gestação por substituição. No caso concreto, a irmã de um dos companheiros cedeu o óvulo para reprodução assistida e o útero para gestação, abrindo-se mão da maternidade. A gestação por substituição, mediante a cessão temporária do útero sem fins lucrativos, é prevista na Resolução nº 2.013/2013, do Conselho Federal de Medicina, desde que a cedente seja parente consanguínea até o 4º grau de um dos parceiros e a existência de termo de consentimento entre os envolvidos. Fundamentou o juiz Luiz Cláudio Boering que a parentalidade socioafetiva deve ser respeitada, provindo de um projeto parental amplo, idealizado pelo casal homoafetivo e concluído por meio de técnicas de reprodução assistida heteróloga, ocorrendo doação de ovulo e gestação por substituição[13].

2.6 Fundamento 6

Aqui iremos abordar outros assuntos referentes a multiparentalidade e que englobam tópicos importantes que não podem deixar de serem discutidos.

2.6.1. Guarda de filho menor

Juridicamente, não há dificuldades em resolver o problema da guarda de filhos, ainda que seja aceita e reconhecida a multiparentalidade.

O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente está previsto no art. 227, caput, da Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente em seus arts. 4º, caput, e 5º.

É imprescindível analisar, caso a caso, o princípio do melhor interesse da criança. No caso em que a criança é considerada suficientemente madura, os Tribunais tendem a considerar sua preferência, desde que consoante com o princípio supramencionado.

Atente-se para o fato de que a ordem de prioridade de interesse foi invertida, posto que, antigamente, se houvesse algum atrito decorrente da posse de estado de filho, entre filiação biológica e filiação socioafetiva, os interesses dos pais biológicos se sobrepunham aos interesses dos filhos, porque se primava os vínculos consanguíneos e biológicos, ou seja, a hegemonia da consanguinidade.

Desta forma, é nítido que o critério mais adequado a esses casos é o da afinidade e afetividade, sendo, portanto, que os pais afetivos levam sensível vantagem na obtenção da guarda dos menores.

O Tribunal de Santa Catarina proferiu sentença acerca de caso de disputa de guarda de menor entre pai afetivo e pai biológico, no qual prevaleceu a guarda para o primeiro, conforme segue ementa a seguir:

“Ementa: PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE – MANTENÇA DA GUARDA COM O CASAL QUE VEM CRIANDO A MENOR – ARTIGOS 6º E 33 DO ECA – PEDIDO INICIAL PARCIALMENTE PROCEDENTE – ÔNUS SUCUMBENCIAIS MODIFICADOS – RECURSO PROVIDO. Tendo como foco a paternidade socioafetiva, bem como os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do melhor interesse do menor, cabe inquirir qual bem jurídico merece ser protegido em detrimento do outro: o direito do pai biológico que pugna pela guarda da filha, cuja conduta, durante mais de três anos, foi de inércia, ou a integridade psicológica da menor, para quem a retirada do seio de seu lar, dos cuidados de quem ela considera pais, equivaleria à morte dos mesmos. Não se busca legitimar a reprovável conduta daqueles que, mesmo justificados por sentimentos nobres como o amor, perpetram inverdades, nem se quer menosprezar a vontade do pai biológico em ver sob sua guarda criança cujo sangue é composto também do seu. Mas, tendo como prisma a integridade psicológica da menor, não se pode entender como justa e razoável sua retirada de lugar que considera seu lar e com pessoas que considera seus pais, lá criada desde os primeiros dias de vida, como medida protetiva ao direito daquele que, nada obstante tenha emprestado à criança seus dados genéticos, contribuiu decisivamente para a consolidação dos laços afetivos supra-referidos (destaque no original)”[14].

2.6.2 Direito de visitas

A partir da promulgação da Lei nº 12.398/2011, o direito de visita, que até então era permitido apenas aos genitores, foi estendido aos avós.

Desta feita, fora acrescentado um parágrafo único ao art. 1.589 do Código Civil, o qual passou a ter o seguinte teor:

“Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente”(grifo nosso).

Depois de definida a guarda, desde que não se aplique ao art. 1.616 do Código Civil (“A sentença que julgar procedente a ação de investigação produzirá os mesmos efeitos do reconhecimento; mas poderá ordenar que o filho se crie e eduque fora da companhia dos pais ou daquele que lhe contestou essa qualidade.”), cabe a fixação do direito de visita em relação aos outros pais.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou uma ação na qual, embora determinado que o menor devesse ficar com o pai e sua madrasta, com os quais possuía fortes vínculos afetivos, foi assegurado à mãe biológica o direito de visitas, sob o argumento que havia grande importância no contato entre o infante, seus irmãos e a mãe biológica. Resta o acórdão:

“Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE GUARDA. Revelando o estudo social e psicológico que a menor, hoje com nove anos de idade, prefere a guarda do pai, com quem já se encontra desde o ajuizamento da ação, em 2004, internalizando o pai e a madrasta como casal parental, é de se manter a decisão, impondo-se, entretanto, preservar os vínculos com a mãe e irmãos (filhos desta) através de regulamentação de visitas. Recurso desprovido”[15].

O direito de visitas tem a finalidade de estreitar vínculos afetivos, portanto, deve ser conferida.

2.6.3 Direitos Sucessórios

Os direitos sucessórios, no caso de multiparentalidade, são reconhecidos entre pais e filhos (e seus parentes), observada a ordem de preferência e vocação hereditária, disposta nos artigos 1.829 a 1.847 do Código Civil.

As linhas sucessórias são estabelecidas de acordo com os genitores. Ou seja, aplica-se tanto ao pai/mãe biológico(a) quanto ao pai/mãe afetivo(a). Se morresse o pai/mãe afetivo, o filho seria herdeiro em concorrência com os irmãos, ainda que estes sejam unilaterais. Cabe ressaltar que a doutrina e jurisprudência não mais fazem distinção entre irmãos bilaterais e unilaterais.

Pode-se citar, por exemplo, que, se morresse o (a) pai/mãe biológicos, o filho também seria sucessor. Se morresse o menor, os pais seriam sucessores, dividindo o patrimônio do falecido entre eles.

Um caso exemplar, ocorrido em Santa Catarina, envolveu a filha biológica de uma empregada doméstica que foi criada pelos patrões, tendo sido reconhecido que a moça tinha pai e mãe socioafetivos. A sentença foi proferida pelo desembargador Jorge Luiz da Costa Beber, na 4ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça, que prestou depoimento, transcrito abaixo[16]

“A prova dos autos é exuberante. No baile de debutantes, a filha socioafetiva foi apresentada como filha do casal. Quando ela se casou, eles foram contados como pai e mãe. Ela tinha os irmãos biológicos como irmãos. Quando nasceu o filho da filha afetiva, ele foi tido como neto, recebendo, inclusive, um imóvel dos avôs afetivos. Trata-se de uma relação afetiva superior ao simples cumprimento de uma guarda”, avalia o desembargador.

Com a morte da mãe afetiva e consequente abertura do processo sucessório, a filha socioafetiva foi excluída da respectiva sucessão, que entrou com uma ação de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva para todos os fins hereditários.

Com o óbito da mãe afetiva, abriu a sucessão e a filha afetiva não foi contemplada. Durante a disputa hereditária, abandonou-se esse amor construído por tantos anos”, afirma o desembargador. A decisão foi unânime.

Ou seja, não há distinção ao procedimento utilizado em uma família na qual não há a multiparentalidade – ou seja, o filho é herdeiro de seus pais (sejam biológicos ou afetivos) e eles, herdeiros de seus filhos, além dos vínculos com os demais parentes.

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Sobre a autora
Camila Gonçalves de Macedo

Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Pós-graduada em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas - MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Camila Gonçalves. Multiparentalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5563, 24 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67558. Acesso em: 19 mar. 2024.

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