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Políticas públicas, ativismo judicial e proteção à saúde: breves considerações

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12/10/2018 às 15:20
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Em breves linhas, o artigo traça parâmetros e indica justificativas para o ativismo judicial como meio de democrático para concretização de políticas públicas, principalmente ao direito à saúde.

1 – POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO ADMINISTRATIVO. 

Tema relevante no Direito Administrativo é a possibilidade de determinação do cumprimento de políticas públicas por decisão judicial. Com efeito, a política aplicada está intimamente relacionada com o posicionamento político primário adotado pelo grupo que foi legitimamente eleito.

A democracia e o sistema representativo fazem com que a soberania popular seja exercida principalmente através de representes eleitos. A eleição, no entanto, expõe a escolha, pela maioria, de políticas que serão aplicadas no próximo mandato. A atuação da Administração Pública, apesar de ser legalmente impessoal, leva o posicionamento de grupos de poder. Tais grupos estão divididos nas mais diversas áreas, podendo ser econômicos, políticos, religiosos e sociais. 

Essa pressão é legítima e até mesmo essencial, pois não se vive em comunidade sem política. Mas é preciso ter em mente que a democracia em seu sentido contemporâneo não se limita a ser um governo da maioria para a maioria, exigindo o respeito aos direitos fundamentais das minorias. Pensar-se ao contrário significa querer instaurar uma ditadura da maioria, o que, por certo, não pode ser levado adiante de acordo com o neoconstitucionalismo. Este movimento tem dominado nos últimos anos o cenário jurídico ocidental.

Como o Executivo e o Legislativo não possuem a imparcialidade necessária, principalmente por conta dos grupos políticos que exercem os mandatos eletivos, ganha importância o Poder Judiciário, no exercício do chamado ativismo judicial. 


2 – SOCIEDADE E LINGUAGEM.

O homem é um animal social. A sua principal ferramenta é a linguagem. No entanto, o ser humano desenvolveu uma capacidade sem igual no reino animal. A da imaginação. Assim, ao longo do tempo, diversos institutos foram simplesmente criados através da imaginação humana, formando crenças que permitiram a manutenção de um grupo cada vez maior. Isso fez surgir a sociedade e o Estado, ambos institutos próprios da criação da espécie humana.

A linguagem desenvolve papel social essencial ao permitir a comunicação e o aprendizado em diversas áreas, formando sempre uma construção em desenvolvimento. As ideias que surgem aparecem de outras já traçadas e assim sucessivamente de forma a que o conhecimento humano adquirido ao longo do tempo esteja sempre preservado. 

Da necessidade da união dos seres humanos em sociedades, surge o próprio Direito e, com ele, uma série de normas jurídicas necessárias para a uniformização de comportamentos e harmonização das condutas, tornando possível a vida em comum. É lógico que essas regras inicialmente foram postas e aplicadas de forma descentralizada, em que cada pequeno grupamento ou tribo se utilizava de suas próprias regras, com as sanções tradicionalmente postas. Em grupamentos primitivos, isso surge com o animismo e, portanto, com a atribuição de personalidades a todos os seres vivos. 

Com o tempo surgem as religiões e também as normas postas mudam. Mas a lógica da descentralização de normas é mantida. Para a pessoa dessa época, a ideia que os demais membros da comunidade mantinham sobre ela era essencial. A penalidade mais grave, muitas vezes, era a expulsão daquele bando, o que significa muitas vezes a morte, pela dificuldade da possoa sozinha, manter-se viva em diversas regiões, seja pelos perigos naturais ou trazidos por outros grupamentos humanos. Daí a ideia de banimento, ainda mantido viva em diversas sociedades atualmente. 

Com o tempo, surge a figura do Estado e com esse a transferência das decisões sobre os comportamentos que seriam aceitáveis. Assim, passa a existir uma centralização da aplicação do Direito. Ocorre que as sociedades passaram a crescer de forma muito rápida e com esse crescimento, em virtude também de outros fatores, como as políticas migratórias, houve uma cada vez maior heterogeneidade. Assim, diversos grupos surgem e passam a lutar por seus direitos, cada vez mais diversificados.

Com o advento da lógica dos direitos humanos, tais situações precisam ser protegidas. Os direitos humanos dominam os ordenamentos constitucionais modernos, principalmente no ocidente.


3 - DIREITOS HUMANOS E SUA EFETIVAÇÃO.

Esses direitos fundamentais possuem algumas características. Dentre elas, a centralidade. Ora, isso faz com que os Poderes Públicos estejam vinculados ao conteúdo desses direitos. Como forma ensina André Ramos Carvalho (p. 99):

Com base na interpretação conforme aos direitos humanos, estes influem em todo o Direito e nos atos dos agentes públicos e privados, concretizando seu efeito irradiante que os transformam no centro dos valores de um ordenamento.

Essa centralidade é percebida no preâmbulo da Constituição Federal brasileira, em que se afirma:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

É evidente que o preâmbulo da Constituição não possui natureza normativa, mas isso não significa que ele não tenha função alguma. Ele serve como norte hermenêutico e deôntico, orientando os Poderes constituídos em relação aos valores fundamentais postos na lógica constitucional. Nesse sentido, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que "O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico" (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.

[ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5-2008, P, DJE de 17-10-2008.]

Fica evidente que não basta a instituição de direitos fundamentais, mas é essencial que haja efetividade.


4 - SISTEMAS POLÍTICO E JURÍDICO

Como já afirmado, a sociedade depende da política. E a política traz um jogo estruturado de poder em que há dois códigos básicos: o governo e a oposição. Por outro lado, o sistema jurídico é traduzido pelos códigos legal e ilegal. Essa é a teoria luhminana, para a qual cada sistema é identificado por códigos que os diferencia de outros sistemas. É lógico que em muitas situações, esses sistemas se entrelaçam criando uma espécie de acoplamento estrutural. Para que não haja qualquer desnaturação dos sistemas em acoplamento, é necessário que se tenha a conservação de seus códigos básicos. Como ensina Celso Campilongo (p. 60):

Na relação entre os sistemas político e jurídico a Constituição e os Tribunais exercem peculiar função de permitir o “acoplamento estrutural” entre esses sistemas. Cada sistema mantém sua integridade, sua clausura operacional, e continua a operar com base em seus mecanismos específicos ou auto referenciais. Entretanto, os sistemas estruturalmente acoplados estão abertos a influências recíprocas, que permitem uma multiplicação das chances de aprendizagem na comunicação intersistêmica. 

Nesse acoplamento estrutural entre os sistemas político e jurídico, surge a problemática das políticas públicas. Isso porque, se é verdade que os grupos sociais que dominam o governo e o legislativo eleito têm suas preferências no desenvolvimento das políticas públicas, também é verdade que os valores trazidos pela Constituição Federal devem ser respeitados. 

Nos últimos tempos tem-se percebido no direito brasileiro uma amplitude na atuação tanto do Executivo quanto do legislativo. São inúmeros os atos do Executivo, inclusive através de medidas provisórias, na maioria das vezes sem a urgência necessária para a sua edição. Também, é crescente o número de normas aprovadas pelo Poder Legislativo. Ora, a tripartição de poderes pressupõe que a importância entre os órgãos de poder seja repartida. Com o crescimento dos órgãos vinculados às funções legislativa e de governo, é necessário também apresentar um Judiciário que seja superlativo um big judiciary.

Se é verdade que o tanto o Executivo como o Legislativo não atuam com imparcialidade, porque influenciados diretamente pelo grupo social vencedor do processo eleitoral, só se admite um Judiciário imparcial. É o que Mauro Cappelletti denomina de virtudes passivas ou limites processuais do Judiciário. Essas são características fundamentais da atividade jurisdicional. Assim, para o citado mestre italiano (p. 74):

O bom juiz pode ser criativo, dinâmico e ativista e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz rui agiria com as formas e modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz.

A atividade do juiz na interpretação das normas e de sua subsunção ao caso concreto também é uma atividade criadora. Mas é evidente que ela não é livre, pois se encontra adstrita ao Ordenamento Constitucional. O fato de o juiz ter uma posição mais ativa na aplicação das normas pertinentes não significa que se possa afastar a imparcialidade própria da atividade jurisdicional e que também forma essas virtudes passivas do magistrado.

Certamente, aqueles não compreendidos no grupo social que forma a maioria eleitoral têm no Judiciário a mais lídima expressão da democracia e do respeito aos direitos fundamentais. Como a interpretação realizada pelos órgãos judiciais também é ato criativo, parece evidente que as próprias decisões judiciais devem ser tidas como normas jurídicas individuais. 

Essas normas jurídicas individuais prolatadas pelo Poder Judiciário e que se tornam imutáveis com o trânsito em julgado são essenciais para o cumprimento da Constituição, pois se apresentam como estágio de concretização de suas normas. Esse evento foi muito bem captado por Hans Kelsen ao lecionar (P. 263):

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Do ponto de vista de uma consideração centrada sobre a dinâmica do Direito, o estabelecimento da norma individual pelo tribunal representa um estádio intermediário do processo que começa com a elaboração da Constituição e segue, através da legislação e do costume, até a decisão judicial e desta até a execução da sanção. Este processo, no qual o Direito como que se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto). É um processo de individualização ou concretização sempre crescente. 


5 - INTERPRETAÇÃO COMO CRIAÇÃO DO DIREITO.

Nem sempre a interpretação foi entendida como meio de criação de normas. Henry Black, famoso estudioso americano do século XIX, diferenciava interpretação de construção. Aquela se limitava a estabelecer o alcance da norma, enquanto essa supria lacunas e resolvia antinomias. No entanto, essa diferença, com o desenvolvimento da própria ciência jurídica deixou de existir. 

A norma jurídica para ser de fato aplicada ao caso concreto precisa passar por interpretação. Todos são intérpretes das normas, mas compete aos órgãos descritos na Constituição dar-lhes o alcance necessário, a partir dos atos estatais emanados dos órgãos e agentes públicos. Essa interpretação pode ser denominada de legítima. Quando emanada do judiciário, ela recebe a proteção da coisa julga e, portanto, é tornada imutável na forma da Lei. Ricardo Marcondes Martins ensina que (p.319):

Apesar disso, o Poder Judiciário, em relação à interpretação, possui, de fato, uma particularidade. Os juízes os são agentes públicos encarregados de dar a ultima palavra sobre a interpretação jurídica. Com efeito, a jurisdição, como a própria etimologia da palavra revela, “diz o direito”. Quando não couber mais recurso, a questão torna-se, par ao caso concreto, definitiva, faz coisa julgada.

Essa decisão assim forma uma norma jurídica que traz o direito a ser aplicado emoldurado pelo caso concreto e é de obediência compulsória pelas partes. Por isso é que ao criar o direito, na forma da interpretação dada, o judiciário se torna ator e protetor do Ordenamento Jurídico, fazendo com que as normas previstas na Constituição, principalmente as que tragam direitos fundamentais sejam respeitadas.

O respeito às normas fundamentais tem uma característica ativa. Ou seja, esse respeito significa fazer prevalecer a eficácia de tais normas permitindo que de fato o Ordenamento Constitucional seja respeitado. Aliás, Rudolf Von Jhering já asseverava (p. 40) que a essência do direito é a sua realização prática. Ou seja, sem que de fato ocorra a sua realização, em nada se terá respeitado os direitos humanos. 

Isso deve ser observado principalmente em relação à Administração Pública. O fato de existir uma discricionariedade, ou seja, uma certa margem de liberdade para a atuação do Estado não significa dar-lhe liberdade absoluta. Recentemente, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro foi modificada pela Lei 13.655/2018. Essa norma passou a trazer importante balizamento para a concretização e eficácia dos direitos previstos. Nesse sentido, o art. 20, segundo o qual:

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. 

Por isso, o julgador e a autoridade competente devem se ater não apenas às teses jurídicas lançadas, mas principalmente aos efeitos práticos do ato. Isso também deve ser levado ao âmbito das políticas públicas.

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Sobre o autor
João Paulo Oliveira

Especialista em Direito Público. Advogado fundador da banca Colossi Oliveira Advogados Associados. Professor do Complexo de Ensino Renato Saraiva e de diversos cursos de pós gradução no país. Autor de obras jurídicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, João Paulo. Políticas públicas, ativismo judicial e proteção à saúde: breves considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5581, 12 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68123. Acesso em: 7 mai. 2024.

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