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A nova lei penal e os crimes de furto e roubo

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14/10/2018 às 14:30
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Comentam-se as diversas alterações no regramento do furto e do roubo, levando-se em consideração o que a jurisprudência traçava a respeito de execução, qualificadoras e dos próprios tipos penais

OS CRIME DE FURTO E DE ROUBO 

O crime de furto cujo objeto de tutela jurídica é a propriedade e a posse, tem ação típica que consiste em subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel (artigo 155).  

Em dispositivo censurável e heterotópico, o artigo 24, parágrafo único, do Anteprojeto de Código Penal prevê, contrariando jurisprudência do STJ, que a inversão da posse do bem não caracteriza, por si só, a consumação do delito. Discute‐se o momento consumativo do crime.  

Sabe‐se que a consumação dos delitos de furto e de roubo é permeada por quatro diferentes teorias: a) teoria da contrectatio, pelo qual a consumação se dá pelo simples contato entre o agente e a coisa alheia; b) teoria da apprehensio ou amotio, segundo a qual se consuma esse crime quando a coisa passa para o poder do agente; c) a teoria da ablatio, onde a consumação ocorre quando a coisa além de apreendida é transportada, mediante posse pacífica e segura de um lugar para outro; d) a teoria da illatio exige, para ocorrer a consumação, que a coisa seja levada ao local desejado pelo ladrão para tê‐la a salvo.   A doutrina clássica da amotio, segundo o qual o furto se consuma com o deslocamento da coisa, do lugar em que estava situada, foi defendida por Carrara.   

O Supremo Tribunal Federal(RTJ 155/194) já entendeu que se a coisa subtraída saiu da esfera de vigilância da vítima, está consumado o roubo próprio, pois este fato e a posse tranquila do objeto roubado, ainda que por breve tempo, dão a tônica entre o roubo consumado e o roubo tentado.

Para tanto, dizia Nelson Hungria(Comentários ao Còdigo Penal, volume VIII, n. 23) que a doutrina clássica considerava que se após o emprego da violência pessoal não puder o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, executar a subtração, mesmo o ato de apreensão da coisa é simples tentativa. A consumação se dava com o deslocamento da coisa, mas de modo que esta se transfira para a posse exclusiva do ladrão.   

Já se entendeu que há tentativa de furto no fato de o agente esconder em suas roupas a coisa que quer subtrair e é detido ao tentar passar pelo caixa de supermercado(RJDTACRIM 2/179, 6/78). Há tentativa se o agente não obtém a subtração uma vez que houve instalação de dispositivo antifurto no automóvel(RJDTACRIM 5/98).  

Até meados de 1987, o Supremo Tribunal Federal adotava a teoria da ablatio, segundo a qual os requisitos para a consumação seriam: apreensão da coisa; afastamento da disponibilidade da vítima e posse tranquila do objeto.  

Consoante o site meusitejurídico.com, entrou em vigor a Lei 13.654/18, que, em síntese, acrescenta no art. 155 do Código Penal duas qualificadoras relativas ao emprego e à subtração de explosivos e modifica dispositivos do art. 157 para estabelecer causas de aumento de pena para as situações que envolvam a subtração e o emprego de substâncias explosivas. Além disso, restringe a majorante relativa ao emprego de arma às situações nas quais seja utilizada uma arma de fogo e modifica a pena do crime de roubo qualificado pela lesão corporal grave.

 A Lei 13.654/18  trouxe algumas alterações nos crimes contra o patrimônio previstos nos arts. 155 e 157 do Código Penal, entrando em vigor imediatamente.

Em relação ao furto (art. 155), foram acrescentados os parágrafos 4º-A e 7º:

§ 4º-A A pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se houver emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum.

[…]

§ 7º A pena é de reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos e multa, se a subtração for de substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego.

Portanto, criou-se uma nova hipótese de furto qualificado (§ 4º-A) com uma pena altíssima de 4 a 10 anos. Nesse caso, essa pena mais elevada decorre da forma de execução (emprego de explosivo ou de artefato análogo) e do perigo criado. Essa evidentemente cria uma verdadeira desproporcionalidade na dosimetria da pena. 

Por sua vez, o § 7º prevê uma figura qualificada que depende do objeto subtraído (e não da forma de execução), isto é, será aplicada a pena mais elevada se a subtração for de “substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego”.

Por sua vez dita o artigo 155, § 2º e § 3º: 

 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.

A expressão literal do parágrafo segundo já era objeto do Anteprojeto do Còdigo Penal. Mas o que é pequeno valor da coisa furtada? É mais uma alternativa para diminuir a multidão de apenados que lota as Penitenciárias. 

O parágrafo terceiro trata do chamado "gato" tão comum nas cidades. 

Dita ainda o parágrafo terceiro do artigo 155 do CP: 

§ 6o A pena é de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos se a subtração for de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração (Incluído pela Lei nº 13.330, de 2016). 

Tal é o caso do abigeato. 

Trata-se de um tipo de crime de furto que envolve a subtração de animais de carga e animais para abate, no campo e fazendas.

Frequente nas regiões de fronteira, o abigeato gerou um prejuízo de um bilhão de reais só no Rio Grande do Sul, em 2014. No Mato Grosso do Sul, apenas em 2015, foram registradas cinquenta e uma ocorrências com mais de 1,5 mil animais furtados.

A matéria precisa de regulamentação em face do princípio da legalidade estrita.

O Código Penal de 1969, em seu artigo 164, § 6º, previa entre as qualificadoras do furto o abigeato, o furto de reses(cabeças de gado)deixadas em currais, campos ou retiros. O Código Penal de 1890 já previa, como espécie de furto agravado, a apropriação de animais de quaisquer espécies pertencentes à outrem, tirados dos pastos de fazenda de criação ou lavoura(artigo 331, 4º, § 1º), dispositivo alterado pela Lei 1221, de 11 de novembro de 1892, que alterou disposições daquele Código.  Tal crime era severamente punido, observando-se que o Código Penal francês de 1971(artigo 270 previu a pena privativa de liberdade(de 4 a 6 anos de prisão). A palavra abigeato vem de ab e agere(mandar adiante), porque os ladrões em geral não carregam os animais, mas os tangem na direção que pretendem.

Quanto ao roubo o Código Penal de 1940 anota no artigo 157:

¨Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzindo a possibilidade de resistência.¨

Temos no roubo um crime complexo, sendo o objeto da tutela jurídica não só o patrimônio como ainda a liberdade individual e a integridade corporal, pois tais bens são atingidos pela ação delituosa.

Diversa a objetividade jurídica do crime de roubo com relação ao crime de furto(artigo 155 do código penal), onde a ação típica consiste em subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel, que é tudo que pode ser transportado de um lugar para outro.

O roubo se distingue da extorsão. Existe no roubo a subtração,  uma atividade do agente, enquanto que na extorsão há uma conduta da vítima em entregar a coisa; praticar um ato. Na extorsão deve haver para a vítima alguma possibilidade de opção; no roubo, tal não ocorre, pois a vítima é dominada pelos agentes e obrigada a entregar-lhes as coisas exigidas(RT 604/384). No roubo, o mal é a violência física iminente e o proveito é contemporâneo: na extorsão, que é um crime formal, Súmula 96 do STJ, o mal é de ordem moral, futuro e incerto, como futura é a vantagem a que se visa.

Fácil ver que não estamos diante da hipótese de aplicação do princípio da insignificância. No roubo, mais do que o valor apropriado, prevalece a extrema vilania da ação praticada pelo agente, a merecer a devida reprimenda. Nesse sentido, Recurso Especial 74.302, DJU de 20 de outubro de 1997, pág. 53.140.

Bem resumiu Júlio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, parte especial, volume II, 25ª edição, São Paulo, Atlas, pág. 222.) que tratando-se de usos de meios que podem lesar seriamente bens jurídicos importantes, envolvendo a integridade física e a tranquilidade  psíquica, não se pode considerar irrelevante tal fato para efeitos penais.

Questão controvertida surgia a partir do momento em que o agente usa uma arma de brinquedo para a consumação do crime de roubo.

Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, 7ª edição, 1983, pág. 267)  critica jurisprudência, a seu ver incompreensível, segundo o qual o emprego de arma de um revólver de brinquedo é o bastante para configurar o crime de roubo qualificado(RT 411/282; 434/422; 455/434). Disse ele, em suas lições, que um revólver de plástico ou de papelão não é arma na realidade dos fatos, mas tão-somente uma errônea interpretação da vítima.

De toda sorte, é ônus processual da acusação trazer prova pericial que demonstre que arma usada no crime tinha potencial para causar lesão a integridade física.

Ademais, exigir-se-ia o efetivo emprego da arma, para poder intimidar, não caracterizando a qualificadora o simples porte(RT 685/336). Data vênia, basta, porém, que seja portada ostensivamente, como verdadeira ameaça implícita à vítima, configurando o crime de roubo qualificado(496:309).

A teoria objetiva defende que para o agravamento da pena é necessário que a arma utilizada tenha uma potencialidade objetiva de lesionar a integridade física da vítima, sendo mister demonstrar o perigo real proporcionado pela utilização da arma, que é um instrumento hábil a vulnerar a integridade física de alguém. Seria a arma de emprego tal instrumento?

Para os adeptos da teoria subjetiva, a qualificadora, como muitos penalistas a chamam, deveria ser aplicada em função do aumento do temor da vítima em relação ao objeto utilizado e que em virtude do desconhecimento por parte da vítima de sua natureza falsa, seria apta a ensejar a aplicação da causa de aumento da sanção. Ora, são conhecidos casos de diversas pessoas que sofrem essa agressão e passam a necessitar de cuidados psicológicos, após o crime, e, pela mera presença da arma, não importando se de brinquedo ou não, entregam seus pertences para salvar suas vidas. Assim o entendimento que se viu(JSTJ 36/407; 56/323, dentre outros).

Com esse entendimento foi editada a Súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça, que veio a ser cancelada em 2001, após o julgamento do Recurso Especial 213.954 – SP.

Para os adeptos da teoria objetiva tal entendimento contrário contraria o princípio da proporcionalidade por tratar, de forma igual, o autor do roubo que utiliza arma de fogo e outro que se utiliza de um simulacro. Assim haverá apenas o crime de roubo sem haver o acréscimo da pena.

A isso se soma que com a vigência da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre o registro e porte de arma de fogo e define novos crimes não é mais incriminada a conduta de utilização de arma de brinquedo ou simulacro, que era antes prevista no artigo 10, § 1º, II, da Lei 9.437, já revogada.

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Veja-se a lição aqui trazida de Luiz Flávio Gomes(  STJ cancela Súmula 17 – arma de brinquedo não agrava o roubo)  :

“Em primeira instância o réu foi condenado por roubo agravado (CP, art. 157, § 2º, inc. I) em razão do emprego de arma de brinquedo. O TACRIM-SP, com sabedoria, afastou a causa de aumento de pena entendendo que arma de brinquedo não é arma. O Ministério Público do Estado de São Paulo, com fundamento na Súmula 174 do STJ ("No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena"), interpôs Recurso Especial (213.054) visando à reforma do acórdão, com restabelecimento da decisão de primeira instância.

O relator do REsp, Min. José Arnaldo da Fonseca, negou provimento ao recurso. Na ocasião, por deliberação unânime da 5ª Turma do STJ, decidiu-se levar o caso para a 3ª Seção, para se discutir concomitantemente não só o caso concreto senão também a própria (in) subsistência da Súmula citada.

Em 26.09.01 o assunto entrou na pauta da 3ª Seção do STJ.

Votou nesse dia em primeiro lugar o Min. Edson Vidigal que, aliás, acabou ficando vencido e isolado. Inclinando-se pelo questionadíssimo Direito penal subjetivo que, historicamente, em detrimento da objetiva e concreta afensa ao bem jurídico, faz preponderar o que o sujeito queria ou mesmo sua pura intenção (Willenstrafrechet) ou a simples impressão da vítima ou ainda o Direito que o juiz gostaria que fosse vigente, dava provimento ao recurso para restaurar a eficácia da sentença do magistrado "a quo".

Em sua prolongada, percuciente, arguta e, em certos momentos, espetacular (justice spectacle) argumentação, sem atentar, entretanto, para o fato de que o Direito penal de cunho eminentemente subjetivo foi sustentado no Brasil por uma diferente Escola de Direito penal (Hungria, Noronha etc.) e, no estrangeiro, pelo positivismo criminológico italiano, Escola de Kiel (nazismo), finalismo de Welzel, Armin Kaufmann, Zielinsky etc., sublinhou:

(a) que o importante é se a arma é capaz de intimidar não a sua efetiva potencialidade lesiva; (b) que as armas de brinquedo são hoje extremamente sofisticadas (neste momento o Min. Vidigal abaixou-se e retirou de uma mala três armas de brinquedo que trazia consigo, empunhando-as com a mesma veemência da sua argumentação); (c) que a onda de violência no país deve ser contida, controlada; (d) citando Dias Trindade, enfatizou que as  interpretações penais não podem ser favoráveis aos "fascínoras" e "meliantes"; (e) que nas guerras do Oriente Médio podem estar fazendo uso dessas sofisticadas armas de brinquedo; (f) que a violência no país tem mais relevância que os livros e os mercados editoriais etc.

Todos os demais Ministros que votaram em seguida, embora ressaltando o brilhantismo da sustentação do Min. Vidigal, o respeito que nutrem pela sua pessoa e doutrina, seguiram o relator e negaram provimento ao REsp.

A argumentação desenvolvida por essa corrente amplamente majoritária (Ministros Félix Fischer, Gilson Dipp, Hamilton Carvalhido, Jorge Scartezzini e Paulo Gallotti) foi a seguinte: (a) o Direito penal representa um conjunto de princípios garantistas que não podem ser superados por argumentos supralegais; (b) os argumentos supralegais podem abrir uma brecha perigosa para as liberdades fundamentais; (c) o agravamento da pena pelo uso de arma de brinquedo fere o princípio elementar da reserva legal; (d) esse agravamento da pena, ademais, constitui verdadeiro "bis in idem"; (e) a arma de brinquedo deve ser considerada como circunstância judicial no momento da fixação da pena; (f) tratar o réu que usa arma de brinquedo de forma igual ao que usa arma verdadeira significa patente violação ao princípio da proporcionalidade; (g) argumentos supralegais valem de lege ferenda, não de lege lata; (h) os livros e os mercados editoriais são relevantes para a construção de um Direito penal previsível e seguro; (i) que não deve existir Súmula sobre temas não pacificados na jurisprudência; (j) que a arma de brinquedo serve tão-somente para intimidar a vítima e configurar o delito de roubo (não para agravar a pena); (l) que o uso de arma de brinquedo está muito mais próximo da fraude que da violência; (m) que o "caput" do art. 157 fala em "grave ameaça" enquanto o § 2º, inc. I, fala em emprego de arma; (n) que está proibida a analogia in malam partem no Direito penal; (o) que arma, conceitualmente, é sempre objeto de ataque; (p) que o juiz não pode em suas decisões adotar o mesmo simbolismo do legislador, que fabrica leis penais a cada momento par atender aos reclamos midiáticos ou sociais; (q) que o cancelamento da Súmula 174 não significa um "salvo conduto" para a violência; (r) que as súmulas não podem engessar eternamente o Direito; (s) que o relevante é ter presente a incolumidade física não a psíquica da vítima para o efeito do agravamento da pena; (t) que o conceito (histórico) de arma no § 2º, inc. I, já vinha dado pelo antigo art. 19 da LCP (arma verdadeira) etc.”

Depois que a Súmula 174 foi cancelada, varias decisões foram proferidas com o entendimento de que o uso de arma de brinquedo em roubo não justifica o aumento da pena nem o regime prisional mais gravoso.

A lamentar a revogação da Súmula 174, num Brasil cercado de violência e impunidade. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A nova lei penal e os crimes de furto e roubo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5583, 14 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68229. Acesso em: 16 abr. 2024.

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