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Carteirada é crime?

11/06/2005 às 00:00
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A sociedade brasileira, cada vez mais, tem dado importância ao status social que o indivíduo ocupa. Prova disso é a proliferação da chamada carteirada: pessoas, valendo-se de suas "qualidades", exigem tratamento diferenciado, almejam obter vantagens às quais não têm direito. Tais vantagens são das mais diversas: ser tratado por determinados vocativos; ter atendimento diferenciado, não enfrentando filas; poder fumar em locais proibidos; não ser autuado por infringir normas de trânsito; não pagar o valor de ingresso em determinados locais; etc. Essas pessoas, que desejam obter tais benefícios, vantagens ou privilégios, se valem de suas condições pessoais: ser conhecido na mídia, ser filho de político, ter prestígio no meio social, ser agente público, policial, promotor, juiz, etc.

Quando a carteirada é dada por um advogado, interessante trazer à baila o Estatuto da Advocacia – Lei 8.906/94, que, em seu art. 31, ao tratar da Ética do Advogado, adverte que "O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia.". Já o art. 34, XXV estabelece que é infração disciplinar "manter conduta incompatível com a advocacia. Tal conduta é passível de suspensão, de 30 dias a 12 meses, ou até mesmo exclusão, caso seja aplicada, por 3 vezes, a suspensão.

Em relação aos funcionários públicos, a situação é mais grave. A expressão funcionário público, aqui utilizada, é a mesma do art. 327 e seus §§ 1º e 2º, do Código Penal, abarcando servidores, empregados, juízes, detentores de cargos eletivos, etc. No lecionar do doutrinador Fragoso, a lei "...quis deixar claro que basta o simples exercício de uma função pública para caracterizar, para os efeitos penais, o funcionário público".

É decerto que o funcionário público, que se vale ilegitimamente desta condição, para exigir vantagens, sofre sanções administrativas, pois várias normas de Direito Administrativo repudiam e punem tal conduta. V.G.: a Lei Complementar 46/94, que institui o Regime Jurídico Único para os servidores civis da administração direta, das autarquias e das fundações do Estado do Espírito Santo, em seu art. 221, XXV, veda ao servidor público "... valer-se ou permitir dolosamente que terceiros tirem proveito de informações, prestígio ou influência obtidas em função do cargo, para lograr, direta ou indiretamente proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública" (conduta punida com demissão). A Lei 8.112/90, que estabelece regime único para os servidores civis da União versa no mesmo sentido, em seu art. 117, IX: "Valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública". É considerado, ainda, ato de improbidade qualquer ação ou omissão que atente contra os Princípios da Administração Pública, violando os deveres de honestidade e impessoalidade, entre outros.

E sob o aspecto penal: essa forma de conduta também deve ser punida? Entendemos que sim, pois ela configura o crime de concussão. A chamada carteirada se subsume no tipo penal em questão ("Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida"). Em que pese a opinião de doutrinadores, como Damásio de Jesus, Celso Delmanto e outros, que afirmam que a referida vantagem indevida deve ser patrimonial, trazemos à baila o lecionar de Guilherme de Souza Nucci (Cód Penal Comentado – 4ª Ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, pág. 863): "...vantagem indevida: pode ser qualquer lucro, ganho, privilégio ou benefício ilícito, ou seja, contrário ao direito, ainda que ofensivo apenas aos bons costumes. .. há casos concretos em que o funcionário deseja obter somente um elogio, uma vingança ou mesmo um favor sexual, enfim, algo imponderável no campo econômico... Não se tratando de delitos patrimoniais, pode-se acolher essa amplitude".

O insigne Bento de Faria, já ao seu tempo, (Cód. Penal Brasileiro Comentado. Vol. II. 2ª Ed. Record. Editora: Rio de Janeiro, 1959, pág. 99), ao tratar do elemento material do crime vantagem indevida, já afirmava que: "... pode ser expressa por dinheiro ou qualquer outra utilidade, seja ou não de ordem patrimonial, proporcionando um lucro ou proveito". Fernando Capez leciona no mesmo sentido, afirmando que não se cuida, no caso, de crime patrimonial, mas de delito contra a Administração Pública. Tutela-se a "...regularidade da administração, no que tange à probidade dos funcionários, ao legítimo uso da qualidade e da função por eles exercida", no dizer de Mirabete (Manual de Direito Penal, Vol. III, 19ª Ed. Atlas: São Paulo, 2003, pág. 319).

Entender de tal forma o art. 316 do Código Penal não significa realizar interpretação extensiva. Trata-se, na verdade, de interpretar o dispositivo em tela da forma correta. Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9ª Ed. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 1984, pág. 324), ao tratar da interpretação das normas penais incriminadoras, afirma que: "A exegese deve ser criteriosa, discreta e prudente: estrita, porém não restritiva. Deve dar precisamente o que o texto exprime, porém tudo o que no mesmo se compreende; nada de mais, nem de menos".

Além disso, vantagem é um gênero que possui duas espécies: a vantagem patrimonial e a não patrimonial. E, desde o Direito Romano, é sabido que "specialia generalibus insunt". Ou seja, o que é especial acha-se incluído no geral (Digesto, liv. 50, tít. 17, frag. 147). Desta forma, quando o texto menciona o gênero, deve-se incluir as espécies. Desta feita, a expressão vantagem indevida contém as espécies vantagem patrimonial e não-patrimonial. É princípio lógico-filosófico. Ademais, "Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus": onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir. Quando o legislador quis distinguir, assim o fez, expressamente, como no crime de extorsão, em que está expresso a locução "indevida vantagem econômica".

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Não poderia ser de outra forma, pois o Código Penal, em seu Título XI (Dos Crimes Contra a Administração Pública), visa proteger a Administração Pública como um todo, não apenas os aspectos patrimoniais. Tanto é que diversos crimes tipificados no referido Título não possuem conotação patrimonial direta, como a violência arbitrária, o abandono de função, a prevaricação, violação de sigilo profissional e outros.

Restringir, de forma incorreta, a incidência da norma que incrimina a concussão é homenagear a impunidade, escondendo-a sob o manto da Legalidade, do Princípio da Segurança do Tipo. É coroar o atentado aos Princípios da Moralidade e da Impessoalidade, que regem a Administração Pública, por disposição expressa da Constituição Federal (art. 37, caput) e, mais que isso, afrontar o Princípio da Isonomia, trazido expressamente no caput do art. 5º, que impõe que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...".

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Sobre o autor
Thiago Xavier Bento

Analista Processual do Ministério Público Federal, Chefe do Setor Jurídico da Procuradoria da República no Município de Cachoeiro de Itapemirim/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BENTO, Thiago Xavier. Carteirada é crime?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 706, 11 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6885. Acesso em: 22 dez. 2024.

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