Capa da publicação Embriaguez alcoólica: conseqüências jurídico-penais
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A embriaguez alcoólica e as suas conseqüências jurídico-penais

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3. CULPABILIDADE

A evolução do conceito de culpabilidade encontra-se intrinsecamente ligada à própria evolução do conceito de crime, de tal forma que se torna impossível, nos dias atuais, conceituar culpabilidade sem remontar à história da humanidade, ao surgimento do direito e do entendimento do próprio crime.

Resta, contudo, advertir, conforme já demonstrado, que partiremos da premissa que o nosso Ordenamento Penal adotou a teoria finalista da ação, dessa forma, a culpabilidade não integra o conceito de infração penal, sendo mero pressuposto de aplicação da pena, muito embora os dois conceitos terem uma evolução doutrinária que muitas vezes se confunde.

Inobstante não ser requisito para a existência de uma infração penal, inolvidável é a importância da culpabilidade, principalmente no momento da aplicação da pena, de tal sorte que resta indispensável o seu estudo.

3.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

A história da culpabilidade é caracterizada por uma constante e intensa metamorfose, na qual dois pólos bastante diferenciados se destacam, ora se alternando, ora evoluindo em seus conceitos:

a)primeiramente, para a configuração de um delito qualquer, bastava o simples nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado produzido (responsabilidade objetiva);

b)atualmente, com a evolução do direito, a subjetividade ganhou terreno, culminando numa culpabilidade que apresenta como elementos a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa (responsabilidade subjetiva).

Vale tomar como partida para o início da evolução histórica a época em que os homens ainda viviam reunidos em tribos, o chamado período primitivo do Direito Penal.

Nessa época, não se podia falar em um sistema organizado de princípios penais, sendo assim, as regras de comportamento eram desconexas e não escritas, calcadas apenas na moral, nos costumes, nas crenças, nas magias e nos temores.

O seio dessa sociedade primitiva era envolto por um ambiente no qual a magia e a religiosidade se confundiam, sendo que todos os fenômenos naturais prejudiciais ao homem, entre eles, a peste, a seca e as doenças, eram considerados resultantes das forças divinas.

Assim, a solução encontrada na época para amenizar a "ira dos deuses" foi a criação de proibições, as quais receberam o nome de tabus 23 . Caso tais tabus não fossem observados, a conseqüência humana era o respectivo castigo ao infrator, com a finalidade de aplacar a provável e futura fúria divina. 24

3.1.1. Fase da Vingança

O período da vingança é comumente dividido pela doutrina em três fases:

  1. Fase da vingança privada;

  2. Fase da vingança divina;

  3. Fase da vingança pública.

Inobstante tal construção doutrinária ser bastante útil para fins didáticos, urge destacar que essas fases não se sucedem umas às outras com exatidão. Uma fase não se substitui por completo a outra em determinado espaço de tempo. Assim, a divisão cronológica é meramente secundária, já que a separação se constitui de idéias.

Inicialmente, vale destacar que a responsabilidade era puramente objetiva, ao ponto até de ser confundida com a vingança, daí a denominação de período da vingança. Dessa forma, para a existência da punição bastava o nexo causal entre a conduta praticada pelo agente e o respectivo resultado produzido por essa conduta.

3.1.1.1. Vingança privada

Durante a fase da vingança privada, cometido um crime, ocorria a reação da vítima, dos parentes e até do grupo social - tribo - sem observância da proporção perante a ofensa, de modo que não só o infrator era atingido, mas todo o seu grupo 25.

Ressalta-se que a punição era realizada sem quaisquer limites, na maioria das vezes gerando a morte do infrator e até a dizimação do seu grupo social, o que acabava por repercutir na eliminação de grande número de homens aptos para o trabalho e, principalmente, fortes para a guerra. Dessa forma, a própria sociedade se auto-enfraquecia.

A inexistência de um limite (falta de proporcionalidade) no revide à agressão, bem como a vingança de sangue foi um dos períodos em que a vingança constituiu-se a mais freqüente forma de punição, adotada pelos povos primitivos.

Com a evolução social, tendo como objetivo primordial evitar a dizimação das tribos, surgiu o talião, adotado pelo famoso Código de Hamurabi 26, no qual a ofensa foi limitada a um mal idêntico ao praticado (fractura pro fractura, oculum per oculo, detem pro dente restituat). Assim, foi dada à pena a característica da pessoalidade, sendo a mesma, também, previamente fixada. 27

Noronha 28 traça com maestria o funcionamento do Código de Hamurabi:

"Por ele, se alguém tira um olho a outrem, perderá também um olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc. A preocupação com a justa retribuição era tal que, se um construtor construísse uma casa e esta desabasse sobre o proprietário, matando-o, aquele morreria, mas, se ruísse sobre o filho do dono do prédio, o filho do construtor perderia a vida. São prescrições que se encontram nos §§ 196, 197, 229 e 230."

Apesar de se dizer comumente pena de talião, não se tratava propriamente de uma pena, mas de um instrumento moderador da pena. Consistia em aplicar ao delinqüente ou ofensor o mal que ele causou ao ofendido, na mesma proporção 29.

Note que, inobstante a responsabilidade ter recebido a característica da pessoalidade, a mesma continuava a ser objetiva, logo, bastando para a punição o simples nexo causal entre a conduta e o resultado produzido.

Mais adiante, com o objetivo de abrandar o rigorismo da pena ainda existente, surge a denominada composição. Por tal sistema, aquele que causara um mal poderia se livrar da pena que lhe seria imposta com a compra de sua liberdade, por intermédio de uma retribuição econômica. 30

3.1.1.2. Vingança divina

Durante tal período, poder-se-ia afiançar que o direito passou a ser confundido com a própria religião, dessa forma, os preceitos de cunho meramente religioso ou moral, tornavam-se leis vigentes.

Os povos primitivos viam no crime uma desobediência à prática do culto. Por isso, o período da vingança divina baseava-se no princípio de que todo crime correspondia a uma ofensa à divindade e a sanção tinha por preocupação punir quem ofendesse os Deuses. O Direito era a religião. Cada preceito religioso aparecia acompanhado de uma sanção jurídica e cada ditado jurídico era um mandato da religião, sendo que a justiça penal se exercitava em nome daquela.

A administração da sanção penal ficava a cargo dos sacerdotes que, como mandatários dos deuses, encarregavam-se da justiça.

Assim, este período ficou assinalado pela crueldade, principalmente no Egito (Cinco Livros), China (Livro das Cinco Penas), Assíria, Fenícia, Babilônia, Pérsia (Avesta), Israel (Pentateuco), Índia e Grécia. 31

3.1.1.3. Vingança pública

Mais adiante, o Estado começa a ganhar força, de tal sorte que chama para si a aplicação da pena, que perde seu cunho religioso, assumindo uma finalidade política.

Assim, não era mais o ofendido ou mesmo os sacerdotes os responsáveis pela punição, mas o soberano (rei, príncipe, regente). Este exercia sua autoridade em nome de Deus e cometia inúmeras arbitrariedades.

O objetivo era a segurança do príncipe ou soberano, por meio da pena, igualmente cruel e severa 32. Sobressai o ideal de Aristóteles e de Platão, no qual a pena passava a ser vista como meio de defesa social, de intimidação, sob a advertência de não delinqüir.

Vale destacar que, nesse período, predominaram a desigualdade quanto à punição das classes, a desumanidade das penas, o sigilo do processo, os meios inquisitórios, tudo aliado a leis imprecisas, lacunosas e imperfeitas, a favorecer o absolutismo monárquico e seus protegidos, postergando os direitos dos indivíduos 33.

3.1.2. Direito Romano

Já em Roma, o crime deixou de ser encarado apenas como uma violação ao interesse privado e passou a ser considerado também como um atentado contra a ordem pública, fazendo com que a pena, em regra, também se tornasse publica.

Inobstante o império romano não ter atingido no direito penal o grau de evolução a que se elevaram no direito civil, sem dúvida nenhuma se sobressaíram em relação aos demais povos da época. Foi em Roma que teve gênese alguns postulados penais sobre o propósito, o ímpeto, o acaso, o erro, a culpa leve, a lata, o simples dolo e o dolus malus, a imputabilidade e outros, o que contribuiu decisivamente para a evolução do Direito Penal 34.

Dessa forma, o império romano distinguiu os delitos em crimina publica (segurança da cidade, parricidium), ou crimes majestatis; delicta privata (infrações consideradas menos graves, reprimidas por particulares); crimina extraordinária (entre as duas outras categorias). 35

Surgiu a Lei das Doze Tábuas, consagrando o princípio da responsabilidade individual, o que assegurou a proteção do grupo do agressor contra a vítima.

Nesse período, pode-se afiançar o primeiro grande desenvolvimento da teoria da culpabilidade, garantindo e aplicando a idéia de uma responsabilidade subjetiva, ou seja, exigindo dolo e culpa 36.

Malgrado todo o avanço do direito romano, ainda subsistia, na época, o Direito Penal germânico primitivo, o qual, marcado pela ausência de leis escritas, mantinha inúmeros costumes dos povos bárbaros, que eram a base de sua organização.

Com a queda do Império Romano, mormente após as invasões bárbaras, o Direito Penal predominante volta a ser marcado por características da responsabilidade puramente objetiva, face a dominação imposta pelos "bárbaros".

3.1.3.Direito Medieval

Na Idade Média, seguramente a religião, principalmente o cristianismo, ditou o rumo do Direito Penal. Tal período ainda é marcado pelo nítido entrelaçamento entre os direitos canônico, romano e bárbaro.

Nesse período, o crime passa a ser visto como pecado humano. O homem é detentor do livre arbítrio, sendo assim, livre para decidir entre o bem e o mal.

A intimidação marca profundamente o direito medieval, notadamente pelo sistema inquisitivo 37, dentre outras penas severas, como o confisco, a mutilação, os açoites, a tortura, o afogamento, o soterramento e o enforcamento.

O mestre Cezar R. Bitencourt 38 traça com magistral propriedade os contornos jurídicos da sociedade medieval:

"As leis em vigor inspiravam-se em idéias e procedimentos de excessiva crueldade, prodigalizando os castigos corporais e a pena capital. O Direito era um instrumento gerador de privilégios, o que permitia aos juízes, dentro do mais desmedito arbítrio, julgar os homens de acordo com a sua condição social. Inclusive os criminalistas mais famosos da época defendiam em suas obras procedimentos e instituições que respondiam à dureza de um rigoroso sistema repressivo."

Vale destacar, no entanto, que, graças ao livre arbítrio preconizado pela Igreja Católica, voltam a ser observados os princípios da responsabilidade subjetiva, uma vez que a punição só era aplicada aos que "pecavam", movidos pelo dolo ou pela culpa, observando-se a proporcionalidade 39 da pena em relação ao fato praticado. Assim, mesmo existindo penas severas e desumanas, pairava uma certa correlação entre a conduta criminosa e a conseqüente pena imposta.

Insta ressaltar também que a pena objetivava a regeneração do infrator, ou seja, o castigo imposto tinha a finalidade de causar no delinqüente arrependimento ou purgação da culpa, sendo que penas mais severas, como, por exemplo, a fogueira da inquisição, tinha por fim a salvação da alma do condenado. 40

3.1.4. Período Humanitário

Com o fim da Idade Média, surge uma nova classe social: a burguesia, comandando o desenvolvimento do mercantilismo, o qual deu gênese ao futuro sistema capitalista.

Como forma de justificar os interesses burgueses frente ao até então sistema comandado pela nobreza e pelo clero, a burguesia financia um novo sistema de idéias, dando origem ao liberalismo burguês. Essas idéias ganharam destaque através do movimento cultural, conhecido como Iluminismo ou Filosofia das Luzes.

Com o advento do Iluminismo, o moderno Direito Penal, também conhecido como época humanitária do Direito, ganha terreno, influenciando sobremaneira a reforma das leis e da administração da justiça penal.

A principal mudança defendida pelos pensadores desse período 41 era a libertação do indivíduo frente à onipotência do Estado.

Vale destacar nesse período a célebre obra de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, denominada Dei delitti e delle pene, na qual era proposta uma transformação em todo o sistema punitivo, mormente no que concerne ao repúdio às penas injustas e à responsabilização sem culpa. 42

A Escola Clássica 43, no século XIX, com resquícios das idéias do iluminismo, surge com os ideais do jusnaturalismo e do direito canônico.

Tal escola, estribando-se nas orientações de Becarria e Francesco Carrara, bem como de outros autores da época, trazia a vontade humana como base de todo o Direito Penal. Assim, o nexo causal entre a ação e o dano era visto como insuficiente para a configuração da infração, pois a pena deveria ser aplicável somente às condutas subjetivamente proibidas.

3.1.5. Período criminológico ou científico

Tem início no século XIX, fundamentando-se nas idéias científicas sobre o estudo do delinqüente e a explicação causal do delito, cuja preocupação maior era dar uma explicação rigorosa para a origem do crime.

O Direito nesse período foi impulsionado pelo desenvolvimento das ciências sociais, entre elas, a antropologia, a psiquiatria, a sociologia, a estatística entre outras. 44

A Antropologia Criminal, relacionada com a Criminologia, defendia a teoria da evolução humana, na qual o homem ainda trazia características da sua animalidade passada, uma vez que era descendente de ancestrais selvagens.

Nessa época, com a escola positiva italiana, Lombroso, Ferri e Garofalo defendiam que a criminalidade derivava de fatores biológicos, pelos quais era inútil ao homem enfrentar.

Lombroso preconizava primordialmente a prática de um crime como sendo um fenômeno biológico, sendo o mesmo estudado pelo empirismo. Deu gênese à antropologia criminal. Ferri, por sua vez, foi o criador da sociologia criminal. Já Garofalo influenciou sobremaneira os estudos jurídicos da época com a sua obra Criminologia. Esses três grandes mestres são considerados os fundadores da Escola Positivista. 45

Assim, o livre arbítrio, tão preconizado na Escola Clássica, foi desconsiderado, sendo o crime caracterizado como um fenômeno biológico.

Os criminosos, pelos estudos da época, foram divididos em cinco categorias 46:

  1. o nato;

  2. o louco;

  3. o habitual;

  4. o ocasional;

  5. o passional.

Por curiosidade, vale destacar que Lombroso chegou ao exagero de traçar as características do "criminoso nato", reduzindo este a uma espécie à parte do gênero humano 47, vejamos:

  • assimetria craniana, fronte fugida, zigomas salientes, face ampla e larga, cabelos abundantes e barba escassa;

  • insensível fisicamente, resistente ao traumatismo, canhoto ou ambidestro, moralmente impulsivo, insensível, vaidoso e preguiçoso.

Neste diapasão, a pena não foi relacionada com a idéia de castigo, mas como um remédio aplicável a um ser doente.

3.2. TEORIAS DA CULPABILIDADE

Para o perfeito entendimento das teorias da culpabilidade, resta necessária a compreensão das teorias do crime, uma vez que podemos afiançar uma espécie de integração entre elas.

Conforme assinalado, são três as principais teorias que fundamentam a conduta (pressuposto do fato típico) e, por sua vez, que servem para orientar o conceito de crime, quais sejam, as teorias clássica, finalista e social.

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Ressaltamos como pontos que traçam as diferenças entre tais teorias, dentre outros, a localização do dolo e da culpa 48 , bem como a definição da culpabilidade 49.

Como já explicado, o nosso ordenamento jurídico abraçou a teoria finalista, dessa forma, para a existência de uma infração penal, resta necessária a observância de seus dois requisitos genéricos, quais sejam, o fato precisa ser típico , i.e., que não ocorra nenhuma causa de exclusão da antijuridicidade.

No entanto, para que o agente seja apenado, mister que ainda seja observada a culpabilidade de sua ação, a qual, para a teoria finalista, é um pressuposto da imposição da pena.

A culpabilidade, por sua vez, possui três teorias:

  • Teoria psicológica;

  • Teoria psicológico-normativa;

  • Teoria normativa pura.

3.2.1. Teoria psicológica

Para essa teoria, estribada na teoria clássica da ação, o dolo e a culpa são de imprescindível relevância para o entendimento da culpabilidade.

Assim, a culpabilidade do agente se encontraria na relação psíquica, daí o seu nome, teoria psicológica, entre o sujeito ativo e o resultado produzido.

Ou, nos dizeres do mestre Mirabete 50, "a culpabilidade reside numa ligação de natureza psíquica (psicológica, anímica) entre o sujeito e o fato criminoso. Dolo e culpa, assim, seriam as formas da culpabilidade."

Essa relação psíquica, por sua vez, teria como elementos o dolo e a culpa, os quais seriam antagônicos entre si, ou seja, se o agente tivesse na sua relação a intenção de produzir o fato, ele estaria crivado de dolo, caso contrário, se a sua relação estivesse eivada de um não querer, a culpa floresceria.

Dessa forma, como a culpabilidade seria um dos requisitos do crime, ao lado da antijuridicidade e do fato típico, para a existência de uma infração criminal, restaria de fundamental importância a verificação do dolo ou da culpa na relação psíquica entre o agente e o fato.

Neste diapasão, a culpabilidade é a relação anímica do agente com o fato, na forma de dolo ou de culpa. A culpabilidade, portanto, confunde-se com o dolo ou a culpa, sendo pressupostos destes a imputabilidade.

Nessa esteira de raciocínio, as únicas formas capazes de excluir a culpabilidade e, por conseguinte, afastar o crime, seriam o erro (suprimiria o elemento intelectual) e a coação (excluiria a vontade, o dolo), uma vez que eliminariam o vínculo psicológico. 51

O Prof. Damásio de Jesus 52, contudo, em sua magnífica obra, traçou severas críticas a essa teoria, vejamos:

"O erro dessa doutrina consiste em reunir como espécies fenômenos completamente diferentes: dolo e culpa. Se o dolo é caracterizado pelo querer e a culpa pelo não querer, conceitos positivo e negativo, não podem ser espécies de um denominador comum, qual seja, a culpabilidade. Não se pode dizer que entre ambos o ponto de identidade seja a relação psíquica entre o autor e o resultado, uma vez que na culpa não há esse liame, salvo a culpa consciente. A culpa é exclusivamente normativa, baseada no juízo que o magistrado faz a respeito da possibilidade de antevisão do resultado. Ora, como é que um conceito normativo (culpa) e um conceito psíquico (dolo) podem ser espécies de um denominador comum? Diante disso, essa doutrina encontrou total fracasso."

Nesse mesmo sentido, a doutrina em geral destaca a dificuldade que essa teoria teve em conceituar os graus de culpabilidade, ou seja, como o aplicador do direito se portaria diante daquelas situações em que ocorressem causas que excluiriam ou diminuiriam a responsabilidade penal, como, por exemplo, a embriaguez, objeto deste trabalho de conclusão de curso, na qual o dolo é patente. Cristalino, nessas hipóteses de exculpantes, a presença do nexo psíquico entre o autor e o fato, em sua condição de dolo, no entanto, inexistente é a culpabilidade. Ora, como então conciliá-las à teoria psicológica? Essa hipótese só poderia ser considerada, caso fosse renunciada a identificação da culpabilidade com o vínculo anímico entre o agente e o seu ato. 53

Assim, como tal teoria não conceituou a culpabilidade, trazendo tão-somente um dos seus elementos 54, surgiram outras teorias que se propuseram a apresentar uma definição in totum de culpabilidade.

3.2.2. Teoria psicológico-normativa

A teoria psicológico-normativa surge neste contexto, com a verificação de que o dolo seria psicológico e a culpa normativa, e, por conseguinte, não poderiam os dois ser ao mesmo tempo espécies de culpabilidade.

Assim, o dolo e a culpa seriam insuficientes para caracterizar a culpabilidade, sendo que, tanto o dolo, quanto a culpa, deixaram de ser modalidades da culpabilidade, para se tornarem elementos desta. 55

Com muita propriedade são os ensinamentos do mestre Damásio 56, que apresenta com maestria a origem da teoria psicológico-normativa, através dos estudos de Reinhard Frank:

"Frank, em 1907, com fundamento no disposto no antigo art. 54 do CP alemão, que tratava do estado de necessidade inculpável, analisando o fato da tábua de salvação, percebeu que existem condutas dolosas não culpáveis. O sujeito que mata em estado de necessidade age dolosamente. Sua conduta, porém, não é culpável, uma vez que, diante da inexigibilidade de outro comportamento, não se torna reprovável. Então, não somente em casos de dolo, como também em fatos culposos, o elemento caracterizador da culpabilidade é a reprovabilidade. Quando é inexigível outra conduta, embora tenha o sujeito agido com dolo ou culpa, o fato não é reprovável, i.e., não se torna culpável. Assim, a culpabilidade não é só um liame psicológico entre o autor e o fato, ou entre o agente e o resultado, mas sim um juízo de valoração a respeito de um fato doloso (psicológico) ou culposo (normativo). Diante disso, dolo e culpa não podem ser considerados espécies da culpabilidade, mas sim elementos."

A culpabilidade, a partir de então, passa a ter um conceito mais complexo, apresentando, não somente o dolo e a culpa como elementos constitutivos, mas também uma nova característica, a reprovabilidade.

Nesta esteira de entendimento, resta evidente que a culpabilidade, para a teoria psicológico-normativa, além do elemento psíquico-normativo, o dolo e a culpa, exige a reprovabilidade da conduta, que seria o juízo de valor realizado pelo agente, que possui a consciência da ilicitude da sua conduta, ou, ao menos, possibilidade desse conhecimento, perante o fato, ou seja, que o sujeito ativo tenha a censurabilidade pessoal de sua própria conduta antijurídica. 57

Muito ilustrativos são os ensinamentos de Fragoso 58 ao discorrer sobre a culpabilidade, para a teoria psicológico-normativa:

"A essência da culpabilidade está na reprovação que se faz ao agente por sua motivação contrária ao dever. O juízo de reprovabilidade já não teria por fulcro apenas a vontade, em seu sentido puramente naturalístico, como a teoria psicológica acreditava, mas sim a vontade reprovável, ou seja, a vontade que não deveria ser".

Assim, seriam elementos da culpabilidade: elemento psicológico-normativo (dolo ou culpa); imputabilidade; e exigibilidade de conduta diversa.

Inobstante o grande desenvolvimento desta teoria em relação a sua antecessora, a mesma foi severamente criticada, principalmente após o advento da teoria finalista da ação, de Welzel.

O principal foco de críticas, como já era de se esperar, seria no tocante ao posicionamento do dolo e da culpa, como elementos da culpabilidade.

A teoria finalista ganhava terreno. Após os estudos de Welzel, restara comprovado que a finalidade do agente não poderia ser subtraída de sua conduta, sendo uma subordinada à outra, ou seja, a intenção do agente, no momento de sua ação, seria inseparável da sua própria ação.

Assim, não seria possível manter a afirmação de que o dolo, e a culpa, seriam elementos da culpabilidade e esta, por sua vez, seria um dos requisitos para a existência do crime.

Com extrema propriedade, Bitencourt 59 expõe a principal dificuldade que a teoria psicológico-normativa teve de enfrentar:

"Com a adoção de um dolo híbrido – ao mesmo tempo psicológico e normativo – cria-se um problema para o Direito Penal, prontamente detectado por Mezger, a respeito da punibilidade do criminoso habitual ou por tendência. Esse criminoso, em virtude do seu meio social, não tinha essa consciência da ilicitude, necessária à configuração do dolo, porque, de regra, se criava e se desenvolvia em um meio em que determinadas condutas ilícitas eram normais, corretas, eram esperadas pelo grupo social. Ora, se essa pessoa não tinha a consciência da ilicitude, porque nasceu e se criou em determinado grupo social, em que a visão sobre a realidade é diversa, e sendo a consciência da ilicitude indispensável à existência do dolo, a que conclusão se chegava? Somente se podia concluir que tal indivíduo agia sem dolo, pois não tinha consciência da ilicitude. Se agia sem dolo e sendo esse elemento ou requisito da culpabilidade, chegava-se a uma segunda conclusão: essa pessoa era inculpável, isto é, agia sem culpabilidade! Não se pode reprovar a conduta de alguém sem que na sua ação reúnam-se todos os elementos da culpabilidade. Chega-se, assim, a uma situação paradoxal, qual seja, a de excluir a culpabilidade exatamente daquele indivíduo que apresenta o comportamento mais censurável."

3.2.3. Teoria normativa pura da culpabilidade

A teoria normativa pura da culpabilidade tem gênese com o desenvolvimento da teoria finalista 60 de Welzel.

Seguindo os ditames da teoria finalista, a teoria normativa pura da culpabilidade partiu do ideal de que a finalidade da conduta, elemento intencional da ação, seria inseparável da própria ação.

Ao se pegar o dolo como exemplo, visualizamos que este é a consciência do que se quer, é a vontade de realizar o tipo; sem esse elemento, sem dúvida nenhuma, não se terá um fato típico doloso. Ora, a ausência do dolo, não implica somente a eliminação da culpabilidade pelo que o sujeito praticou, mas elimina o fato típico propriamente dito, pois o fim da conduta (vontade de praticá-la) está tão ligado a esta, de forma que, face a inobservância de uma, a outra, sequer, existirá. 61

A culpabilidade, por sua vez, não se reveste, como pretende a doutrina tradicional, da característica psicológica. É um puro juízo de valor, puramente normativa, daí o nome da teoria, não tendo nenhum elemento psicológico, sendo, por isso mesmo, insuscetível de ter o dolo como um de seus elementos.

Foi baseado nesses preceitos que a teoria em estudo veio a combater a corrente psicológico-normativa, que, equivocadamente, colocava o dolo e a culpa como elementos da culpabilidade.

Dessa forma, segundo Mirabete 62, "chegou-se à teoria da culpabilidade, ou teoria normativa pura: o dolo e a culpa pertencem à conduta; os elementos normativos formam todos a culpabilidade, ou seja, a reprovabilidade da conduta."

Assim, foram retirados os elementos subjetivos (dolo e culpa) dos elementos do juízo de reprovação, passando aqueles a pertencerem à conduta.

Nos dizeres do Min. Assis Toledo 63:

"A culpabilidade ganha um elemento – "a consciência da ilicitude" (consciência do injusto) – mas perde os anteriores elementos "anímicos-subjetivos" – o dolo e a culpa stricto sensu – reduzindo-se, essencialmente, a um juízo de censura."

Nesta esteira de raciocínio, a culpabilidade se torna um puro juízo de valor do aplicador do direito, meramente normativa, com os seguintes elementos:

a) exigibilidade de conduta diversa;

b) potencial consciência da ilicitude;

c) imputabilidade.

No tocante aos elementos da culpabilidade, vale trazer à colação os ensinamentos do mestre Mirabete 64:

"só há culpabilidade se o sujeito, de acordo com suas condições psíquicas podia estruturar sua consciência e vontade de acordo com o direito (imputabilidade); se estava em condições de poder compreender a ilicitude de sua conduta (possibilidade de conhecimento da ilicitude); se era possível exigir, nas circunstâncias, conduta diferente daquela do agente (exigibilidade de conduta diversa). São esses, portanto, os elementos da culpabilidade."

Assim, a falta de qualquer desses elementos, em maior ou menor grau, atenua e, em alguns casos, pode excluir a aplicação da pena.

Atualmente, no entanto, cresce a idéia de que do conceito de culpabilidade não pode ser excluído o dolo e a culpa. Para os que pensam dessa forma, o dolo ocupa dupla posição: em primeiro lugar, como realização consciente e volitiva das circunstâncias objetivas (no fato típico), e, em segundo, como portador do desvalor da atitude interna que o fato expressa (culpabilidade). 65

3.2.3.1. Exigibilidade de conduta diversa

Um dos elementos da culpabilidade, conforme já assinalado, é a exigibilidade de conduta diversa.

De acordo com Fernando Capez 66, tal elemento da culpabilidade consiste:

"na expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. Somente haverá exigibilidade de conduta diversa quando a coletividade podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma" .

Vale destacar que a exigibilidade de conduta diversa, como elemento da culpabilidade, foi inicialmente apontada por Frank, em 1907, em sua obra Estrutura do Conceito de Culpabilidade, ao analisar, em face de exemplo, dois casos nos quais as relações psicológicas entre os sujeitos e o resultado eram idênticas, no entanto, as circunstâncias que envolviam a ocasião eram completamente distintas, conforme explica o Prof. Damásio 67:

"as circunstâncias que concorrem no cometimento de um fato têm grande importância, posto que não só podem atenuar a pena, como também excluir a culpabilidade. Apresenta dois exemplos: um viajante apropriar-se de dinheiro sob sua custódia a fim de levar uma vida de luxo; um carteiro mal remunerado, angustiado pelos problemas econômicos, apropria-se do dinheiro da correspondência para adquirir alimentos para sua família. Nos dois casos, é a mesma a relação psicológica entre os sujeitos e o resultado; não existe, porém, a mesma culpabilidade. Assim, o primeiro é mais culpado."

Por tal elemento da culpabilidade, só se devem ser punidas as condutas que poderiam ser evitadas. Assim, se no caso concreto, era inexigível conduta diversa por parte do agente, fica excluída a sua culpabilidade, que pode o isentar de pena.

Neste diapasão, visualizamos que são duas as causas nas quais ocorrem a exclusão da culpabilidade, face a inexigibilidade de conduta diversa, quais sejam, a coação irresistível e a obediência hierárquica.

Na primeira hipótese, cabe advertir, que a coação deve ser irresistível. Sendo que coação é a utilização de força física ou grave ameaça contra alguém, a fim de que este faça ou deixe de fazer alguma coisa 68.

O art. 22 do Código Penal cuida da coação moral, pois não existe, na coação física, ação voluntária do coacto e não se pode, portanto, falar em conduta, inexistindo o próprio fato típico 69.

Vale destacar que a ameaça geradora da coação moral irresistível pode ter por objeto não a pessoa do coacto, mas outras que estejam sentimentalmente ligadas a este, como a sua esposa, os seus filhos, os seus amigos íntimos e etc.

Dessa forma, a coação pressupõe sempre três pessoas: o agente (coagido), a vítima e o coator.

Já, na segunda hipótese, a obediência da ordem emanada do superior hierárquico deve ser não manifestamente ilegal 70 para que a culpabilidade seja excluída, por inexigibilidade de conduta diversa.

Assim, se o fato é cometido em estrita obediência a tal ordem, sendo a mesma proveniente de um superior hierárquico, e ocorrendo a hipótese do cometimento de um crime como resultado da ordem não manifestamente ilegal, somente deverá ser punido o autor da ordem, não aquele que a praticou.

Vale ressaltar que tal ordem deve ser proveniente de um superior hierárquico. Caso a mesma seja proveniente de uma outorga legal, inexistirá o crime por ausência de antijuridicidade, uma vez que aquele que obedeceu a mencionada ordem, agiu em estrito cumprimento de um dever legal.

3.2.3.2. Potencial consciência da ilicitude

O segundo elemento da culpabilidade é a potencial consciência da antijuridicidade. O conceito deste elemento encontra-se previsto no artigo. 21 do Código Penal, para o qual o desconhecimento da lei é inescusável, no entanto, o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta o agente de pena, caso contrário, se evitável, poderá diminuir a futura pena de 1/6 a 1/3.

O erro evitável sobre a ilicitude do fato (ou erro de proibição evitável) é aquele que, diante das circunstâncias que envolvem o fato, concede ao agente uma certa margem de possibilidade para alcançar o conhecimento da ilicitude da sua conduta, de tal sorte que essa situação é considerada apenas como causa obrigatória de diminuição de pena.

Já o erro inevitável sobre a ilicitude do fato é também conhecido por erro de proibição, ocorrendo nas hipóteses em que o agente não tem a possibilidade de consciência sobre a ilicitude da ação, quer por deficiência intelectual, quer por impossibilidade física, quer por circunstâncias de tempo ou de lugar.

Assim, de acordo com os ensinamentos do Prof. Mirabete 71, veremos que:

"para existir culpabilidade, necessário se torna que haja no sujeito ao menos a possibilidade de conhecimento da antijuridicidade do fato. Quando o agente não tem ou não lhe é possível esse conhecimento, ocorre o denominado erro de proibição. Há, portanto, erro de proibição quando o autor supõe, por erro, que seu comportamento é lícito. Nessa hipótese, o agente atua voluntariamente e, portanto, dolosamente, porque seu erro não incide sobre elementos do tipo; mas não há culpabilidade, já que pratica o fato por erro quanto à ilicitude de sua conduta. Não é possível censurar-se de culpabilidade o autor de um fato típico penal quando ele próprio, por não ter tido sequer a possibilidade de conhecer o injusto de sua ação, cometeu o fato sem se dar conta de estar infringindo alguma proibição."

Bitencourt 72, ao explicar a relação entre o erro de proibição e a culpabilidade, tece os seguintes comentários:

"Segundo a orientação finalista, a ausência de conhecimento da proibição não afasta o dolo natural, mas exclui, isto sim, a culpabilidade – caso do erro de proibição invencível. Porém, se se tratar de um erro de proibição vencível, a culpabilidade atenua-se, sempre e quando não se tratar de um erro grosseiro, ou, melhor dito, de um simulacro de erro."

Vale destacar que o erro de proibição ou erro inevitável sobre a ilicitude do fato possui as seguintes características:

  • retira do agente a consciência da ilicitude, logo, exclui a culpabilidade, isentando o agente de pena;

  • não possui relação com o desconhecimento da lei. Trata-se de erro sobre a ilicitude do fato e não sobre a lei;

  • não há erro sobre o fato (erro de tipo), mas sobre a ilicitude do fato;

  • há uma errônea compreensão acerca do significado da norma. Assim, o agente tem perfeita compreensão do fato, mas entende que este é lícito, quando na realidade não o é.

Um exemplo clássico de erro de proibição pode ocorrer a partir de uma hipótese de eutanásia 73. Vejamos a situação no intuito de que a matéria em questão seja melhor compreendida:

Ezequiel tem a mãe bastante doente, a Dona Tícia. Dona Tícia encontra-se em estado de coma há 3 anos, sobrevivendo por todos esses anos graças a ajuda de equipamentos.

Ezequiel, desesperançoso na recuperação de sua mãe, a qual já foi considerada, inclusive pelos médicos, como de impossível recuperação, sofre a cada dia com a situação em que se encontra Dona Tícia.

Como forma de acabar com tamanho sofrimento, Ezequiel vai ao hospital e desliga os equipamentos de Dona Tícia, causando a sua morte clínica.

Nessa situação, Ezequiel não tinha consciência da ilicitude de sua conduta, mesmo tendo certeza do que estava fazendo.

Para ele, era plenamente justificável, a luz do direito, desligar os equipamentos de Dona Tícia, que já estava em coma há 3 anos e era considerada como de impossível recuperação pelos médicos, como forma de acabar com tamanho sofrimento.

Note, na situação em tela, jamais passou pela cabeça de Ezequiel qualquer dúvida no tocante a legalidade de sua conduta, a qual sempre fora tida como agasalhada em sua legalidade pelo direito.

Assim, como nessa situação, Ezequiel não possuía consciência da ilicitude de sua conduta, bem como a mesma pode ser considerada inevitável para pessoas normais, há a exclusão da potencial consciência da ilicitude para Ezequiel, de tal sorte que a culpabilidade é excluída e, por sua, vez, Ezequiel não pode ser apenado.

Vale destacar que o erro de proibição não deve ser confundido com o erro de tipo, que é uma causa excludente da conduta e, conseqüentemente, do fato típico, um dos elementos indispensáveis para o conceito de crime.

O erro de tipo faz com que o agente, no caso concreto, imagine não estar presente uma elementar ou uma circunstância componente da figura típica.

Assim, como conseqüência do erro de tipo, temos a exclusão do dolo. Excluindo o dolo, também estará excluída a conduta e, dessa forma, o fato típico.

Como exemplos de erro de tipo, podemos citar:

  • uma pessoa se casa com pessoa já casada, sem conhecer a existência do casamento anterior;

  • um caçador mata o próprio filho pensando estar atirando numa caça.

Vale destacar que a culpabilidade também pode ser excluída se o agente, por erro plenamente justificável pelas circunstâncias, supõe estar agindo de acordo com uma das excludentes de antijuridicidade. Essa situação também é comumente denominada de descriminantes putativas 74.

3.2.3.3. Imputabilidade

Conforme já explicitado, a culpabilidade não faz parte do conceito de crime, sendo um pressuposto para a aplicação da pena.

Como juízo de reprovabilidade que é, a culpabilidade pressupõe que a pessoa, para ser punida, precisa entender o caráter de sua conduta, dessa forma, apenas entendendo a ilicitude de sua ação, o agente poderá agir de acordo com esse discernimento.

Assim, surge o terceiro elemento da culpabilidade: a imputabilidade.

Vale ressaltar que não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma definição desse elemento do juízo de reprovação, ficando essa tarefa a cargo da doutrina 75.

Um dos melhores conceitos de imputabilidade vem do mestre Carrara 76, para o qual:

"A imputabilidade é o juízo que fazemos de um fato futuro, previsto como meramente possível; a imputação é um juízo de um fato ocorrido. A primeira é a contemplação de uma idéia; a segunda é o exame de um fato concreto. Lá estamos diante de um conceito puro; aqui estamos na presença de uma realidade."

Segundo Fragoso 77, a "imputabilidade é a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de se determinar segundo esse entendimento".

De acordo com Damásio 78, a "imputabilidade penal é o conjunto de condições pessoais que dão ao agente capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática de um fato punível" .

Dessa forma, imputabilidade é a possibilidade de se atribuir a alguém a responsabilidade por algum fato, ou seja, o conjunto de condições pessoais que dá ao agente a capacidade para lhe ser imputada a prática de uma infração penal.

Segundo os ensinamentos do mestre Mirabete 79:

"Há imputabilidade quando o sujeito é capaz de compreender a ilicitude de sua conduta e agir de acordo com esse entendimento. Só é reprovável a conduta se o sujeito tem certo grau de capacidade psíquica que lhe permita compreender a antijuridicidade do fato e também de adequar essa conduta a sua consciência. Quem não tem essa capacidade de entendimento e de determinação é inimputável, eliminando-se a culpabilidade."

A relevância da imputabilidade para a caracterização da culpabilidade é tão grande que Mir Puig 80 chegou a afirmar que a imputabilidade "deixou de ser um pressuposto prévio da culpabilidade e converteu-se em condição central da reprovabilidade".

Cabe advertir que o nosso Código não define a imputabilidade, dando importância apenas às causas de inimputabilidade.

3.2.3.3.1. Causas de exclusão da imputabilidade

Vale assinalar que, em regra, todos são considerados imputáveis, no entanto, o nosso ordenamento jurídico enumera certas hipóteses nas quais devido a falta de capacidade de entender e de querer, a imputabilidade pode estar ausente, seja porque o indivíduo, por questão de idade, não alcançou determinado grau de desenvolvimento físico e psíquico, ou porque existe em concreto uma circunstância que a exclui.

Nessas hipóteses em que o agente não possui a capacidade de compreender a ilicitude de sua conduta e de agir de acordo com esse discernimento, diz-se que o agente é inimputável e, dessa forma, isento de pena pela ausência de culpabilidade.

No intuito de determinar a inimputabilidade, são utilizados vários sistemas, entre eles, o biológico (ou etiológico), o psicológico e o biopsicológico (ou biopsicológico normativo ou misto). 81

Pelo sistema biológico, a simples presença de uma psicopatogenia já é suficiente para comprovar a inimputabilidade. Assim, se presente a enfermidade mental, ou o desenvolvimento psíquico deficiente ou a perturbação transitória da mente, o agente deve ser considerado inimputável. Dessa forma, obviamente, trata-se de um critério falho, uma vez que deixa impune aquele que tem discernimento e capacidade de determinação, apesar de ser portador de uma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto.

No sistema psicológico, verificam-se apenas as condições mentais do agente no momento da ação, sendo que a verificação da presença de doenças mentais ou distúrbio psíquico patológico é afastada. A crítica para esse critério é que ele é pouco científico, de difícil averiguação, ensejando abusos na prática e dilatando desmensuradamente a esfera da imputabilidade. 82

O terceiro sistema é o adotado pelo nosso Código Penal, denominado de biopsicológico. Tal sistema é a junção dos critérios anteriores e leva em consideração dois momentos distintos para atendimento da inimputabilidade. Num primeiro momento, deve-se verificar se o agente apresenta alguma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Em caso negativo, não é inimputável. Caso positivo, será necessário analisar se o indivíduo era capaz de entender o caráter ilícito do fato; será inimputável se não tiver essa capacidade. Assim, a inimputabilidade decorre da conjugação dos critérios anteriores. 83

O Código Penal Brasileiro, em seus artigos 26, caput, 27 e 28, §1º, prevê as causas de exclusão de imputabilidade que, por conseqüência, excluem a culpabilidade. São elas: a) doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado; b) desenvolvimento mental incompleto por presunção legal, do menor de 18 anos; c) embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior.

3.2.3.3.1.1. Doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado

O sistema adotado pelo Código Penal, nesta hipótese, é o biopsicológico, uma vez que para o acolhimento da alegação de inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, o aplicador do direito deve verificar dois momentos distintos e interdependentes.

Num primeiro momento, deve ser verificado se o agente é doente mental ou tem desenvolvimento mental incompleto ou retardado, tendo as seguintes conseqüências esta análise:

  • Em caso negativo, o agente não é inimputável, ou seja, ele é imputável.

  • Em caso positivo, passa-se ao segundo momento e se averigua se era ele capaz de entender o caráter ilícito do fato.

Agora, comprovada a doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, o agente será de plano considerado inimputável se não possuir a capacidade de entender o caráter antijurídico de sua conduta.

Caso ele tenha capacidade de discernimento, deve-se apurar também se o agente era capaz de determinar-se de acordo com essa consciência. Assim, se inexistente a capacidade de determinação, o agente também é inimputável.

Vale destacar que as causas, quais sejam, a doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, que geram a conseqüente incapacidade completa de entender a antijuridicidade do fato ou de determinar-se de acordo com essa compreensão, devem existir ao tempo da conduta.

Da mesma forma, cabe destacar que não basta a presença de um só dos requisitos, isolado.

Assim, necessário se faz que, em razão de uma das duas causas (doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado), houvesse uma das duas conseqüências (incapacidade completa de entender a ilicitude da conduta ou de determinar-se de acordo com esse discernimento), sendo que tais causas e conseqüências dever-se-iam estar presentes à época do comportamento do agente.

Para ser acolhida a tese de inimputabilidade, a mesma deve ser comprovada em condições de absoluta certeza.

De forma contrária, será considerado imputável aquele que, embora portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, tenha capacidade de entender a ilicitude de seu comportamento e de se autodeterminar.

Caso inexistente a doença mental ou o desenvolvimento mental incompleto ou retardado, pouco importa se o agente, no momento do crime, encontrava-se privado da sua capacidade de entendimento ou de autodeterminação, devendo ser o mesmo tido por imputável.

Neste diapasão, excluída a imputabilidade em função de uma das razões acima apontadas, ao autor do fato deverá ser aplicada obrigatoriamente a medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado.

Tratando-se, porém, de crime apenado com detenção, o juiz poderá submeter o agente apenas a tratamento ambulatorial.

Caso o agente passe a sofrer de doença mental após o fato, o mesmo responderá obrigatoriamente pelo ilícito praticado, embora, caso condenado, somente começará a executar a pena quando não mais for necessário seu internamento no estabelecimento adequado.

Por fim, vale destacar que a responsabilidade diminuída, prevista no parágrafo único do art. 26 do Código Penal Brasileiro 84, ocorre em hipótese semelhante à do caput deste mesmo dispositivo, no entanto se referente à capacidade ou entendimento apenas reduzidos, em razão do grau de desenvolvimento da capacidade de entendimento e de autodeterminação.

Nesta hipótese de redução de pena, a culpabilidade não é excluída, mas a pena é reduzida, pois a responsabilidade estava diminuída.

A diferença entre a causa de exclusão da imputabilidade e a simples redução de pena consiste no fato de que o agente, na hipótese de exclusão, era inteiramente incapaz, sendo que, na hipótese de redução ele não era inteiramente capaz, razão pela qual se diz que ele tem responsabilidade reduzida ou imputabilidade diminuída pela previsão do parágrafo único.

3.2.3.3.1.2. Menoridade penal

São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sendo que estes estão sujeitos às normas da legislação especial 85.

Na hipótese de menoridade penal, o critério adotado pelo Código é o biológico, segundo o qual há uma presunção absoluta de inimputabilidade para os menores de 18 anos, não interferindo o maior ou o menor grau de discernimento. 86

Ainda que o jovem, com idade inferior a 18 anos, seja casado ou emancipado, ou mesmo que se trate de um superdotado com excepcional inteligência, a presunção legal persiste pelo seu caráter absoluto, não admitindo prova em contrário.

Vale ressaltar que, sendo o agente menor de 21 anos na data da prática do crime, o fato se constitui uma circunstância atenuante genérica, conforme previsão do art. 65, I do Código Penal.

Dessa forma, os prazos de prescrição são reduzidos pela metade (art. 115, CP), de tal sorte que, ainda, há previsão legal de que no interrogatório proceder-se-á na presença de um curador (art. 194, CPP), para os menores de 21 anos 87.

3.2.3.3.1.3. Embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou forca maior.

A embriaguez é o estado de intoxicação aguda e passageira, provocada pelo álcool ou substância de efeitos similares, que reduz ou priva o sujeito da capacidade normal de discernimento.

Nessa esteira de entendimento, Capez 88 conceitua a embriaguez como uma:

"causa capaz de levar à exclusão da capacidade de entendimento e vontade do agente, em virtude de uma intoxicação aguda e transitória causada por álcool ou qualquer substância de efeitos psicotrópicos, sejam eles entorpecentes (morfina, ópio etc.), estimulantes (cocaína) ou alucinógenos (ácido lisérgico)"

Em sua magnífica obra, Mirabete 89 apresenta mais um conceito para embriaguez, segundo o qual:

"A embriaguez pode ser conceituada com a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool ou substância de efeitos análogos que privam o sujeito da capacidade normal de entendimento."

Ressalta-se o entendimento de que o nosso ordenamento jurídico, ao tratar sobre o assunto 90, engloba ao conceito de embriaguez não só a diminuição da capacidade de discernimento provocada pelo álcool, mas toda e qualquer substância que produz efeito semelhante, como os entorpecentes, os estimulantes e os alucinógenos.

Cabe advertir que apenas a embriaguez acidental (não a culposa ou a voluntária) e completa exclui a imputabilidade.

Assim, vale destacar que a embriaguez alcoólica, em todas as suas modalidades, bem como o caso de "responsabilidade penal objetiva", consagrado por nosso ordenamento jurídico, serão objetos de análise de um capítulo a parte, sendo os mesmos o objeto primordial deste trabalho de conclusão de curso.

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Sobre o autor
Luiz Eduardo da Vitória Mattedi

Servidor do Ministério Público Federal do Estado do Espírito Santo e Advogado em Vitória/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTEDI, Luiz Eduardo Vitória. A embriaguez alcoólica e as suas conseqüências jurídico-penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 718, 19 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6914. Acesso em: 18 mai. 2024.

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