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Os tribunais de contas e as políticas públicas

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26/10/2018 às 12:30
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Assenta-se que o controle externo desempenhado pelos tribunais de contas não pode se fazer substituir ao poder constitucionalmente legitimado a promover as políticas públicas.

Neste artigo, será analisado o papel dos Tribunais de Contas em relação às políticas públicas educacionais, notadamente as inseridas no Plano Estadual de Educação do Estado de Goiás (PEE/GO), com destaque para a Corte de Contas do Estado de Goiás, cuja legislação interna servirá de base jurídica para o desenvolvimento deste estudo.

Antes de se adentrar no estudo dos Tribunais de Contas propriamente dito, fez-se uma digressão a respeito da forma e do regime de Governo que regem a Administração Pública, bem como do consequente sistema de controle desta atribuição de acordo com o ordenamento jurídico pátrio.

Após, perscrutou-se acerca do sistema de controle externo desempenhado pelas Cortes de Contas, assim como sobre a estrutura organizacional do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, com a descrição dos seus órgãos internos e de suas respectivas atribuições relacionadas às políticas públicas.

Ademais, fez-se uma análise das espécies de processos no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, com destaque para as auditorias operacionais, assim como dos critérios de fiscalização erigidos pelo ordenamento jurídico.

Por fim, desfechou-se com o estudo da interferência da atuação dos Tribunais de Contas no ciclo das políticas públicas.


1. O dever constitucional de prestar contas

De início, insta destacar que o Brasil adotou a forma de governo republicana, de acordo com o art. 1°, caput, e parágrafo único, da CRFB/1988:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (BRASIL, 1988).

A respeito do princípio basilar da República, tem se as seguintes considerações:

Diz-se república a forma de governo em que os exercentes das funções Executiva e Legislativa representam o povo, decidindo em seu nome, à luz dos princípios da reponsabilidade, eletividade e temporariedade. A responsabilidade é o penhor da idoneidade da representação popular. A eletividade é o meio em que se delineia tal representação. A temporariedade, também chamada de periodicidade, garante a fidelidade do mandato, permitindo a alternância no poder num lapso temporal rigorosamente estabelecido (BULOS, 2015, p. 51).

A legitimidade da representação do mandatário, decorrente da característica da eletividade, serve de subsídio para justificar as diretrizes políticas erigidas pelo chefe do poder Executivo, bem como dos representantes do Poder Legislativo, eleitos pelo voto popular.

Por sua vez, a temporariedade impõe uma delimitação no tempo do mandato do representante eleito com vistas a estabelecer uma alternância no poder, de modo a desestimular ou evitar o apego ao cargo, alinhando-se à impessoalidade - art. 37, caput, da CRFB (BRASIL, 1988), bem como estabelecer o dever de o administrador público gerir a coisa pública de maneira responsável e organizada a partir da confecção de um planejamento formalizado por meio do PPA, da LDO e da LOA, cujos bojos deverão ser fixadas as diretrizes, os objetivos, as metas e as prioridades escolhidas pelo governante, bem como autorizadas legislativamente as despesas e receitas públicas que darão concretude àqueles, nos termos do art. 165 da CRFB (BRASIL, 1988).

Verifica-se que o surgimento do Estado democrático de direito, em oposição ao Estado de polícia, veio reforçar a instituição da forma republicana de governo, a teor do que prescreve o art. 1°, caput e parágrafo único da CRFB (BRASIL, 1988), atribuindo-lhes de forma exponencial valores caros a sua manutenção e otimização, tais como a responsabilidade dos governantes, a sua representatividade, a independência e a imparcialidade dos juízes e tribunais etc (BULOS, 2015).

Apresenta-se como propósito central da democracia “[...] que nenhum poder do Estado deve assumir atribuições que não possam ser, de algum modo, controladas, limitadas e fiscalizadas por outro poder” (IOCKEN, 2014, p. 108), exigindo a estruturação de uma pluralidade de modalidades e de centros constitucionais de poder incumbidos do mister da fiscalização.

 Imperioso destacar que, tendo em vista que o destinatário de toda atuação estatal, é o povo, a quem pertence o patrimônio público, a administração da coisa pública (res publica) é realizada por um cidadão (representante/autoridade e/ou servidor público), motivo pelo qual a prestação de contas desta atribuição se mostra imprescindível, a qual, por sua vez, pressupõe a publicidade dos atos praticados pela Administração Pública.

No caso das políticas públicas, somente com a enunciação dos seus elementos determinantes, suas ações de implementação e seus indicadores de avaliação é que se têm condições de aferição da eficiência da gestão pública no âmbito do exercício do controle (IOCKEN, 2014).

Desse sistema, infere-se, de forma inafastável, que a legitimidade do governante condiciona-se à prestação de contas da Administração Pública (BULOS, 2015). Tamanha a sua importância que o art. 34, VII, da CRFB (BRASIL, 1988) erigiu como princípios básicos a serem perseguidos pelas entidades federativas a prestação de contas da Administração Pública. Sob pena de se ensejar a decretação do contundente remédio saneador da intervenção da União sobre os Estado, revelando-se como instrumento de exceção com vistas a promover o reequilíbrio político que caracteriza a forma de Estado federativa, alinhando-se ao disposto nos arts. 2° e 18 da CRFB, que impõem a indissolubilidade da federação, inclusive por meio de alteração normativa da constituição, de acordo com o art. 60, § 4°, I, da CRFB, que versa sobre as cláusulas pétreas, que consistem no conjunto de normas que não podem ser alteradas, nem mesmo por reforma constitucional (revisão ou emenda à constituição).

Nos países de língua inglesa, o dever de prestar contas do administrador público vem cristalizado na expressão accountability, cujo alcance é delineado pela doutrina pátria, como se segue:

O referido dever de prestar contas pode ser verificado como uma das traduções da expressão accountability, muito relacionada com o controle e a fiscalização orçamentária nos países de língua inglesa. Tem pertinência com as garantias de transparência referidas por Amartya Sem, as quais possuem função inibidora da corrupção e são uma das formas que podem assumir as liberdades instrumentais abordadas pelo mencionado autor (SANTOS, 2016, p. 173).

A partir da participação cívica, enquanto, instrumento de operacionalização da solidariedade integeracional, que se desenvolverá o dever-responsabilidade do cidadão pela realização da boa administração (CUNDA, 2011), cujo “[...] controle social está correlacionado à “accountabillity”, ou seja, à necessidade de resposta aos cidadãos sobre a boa gestão da coisa pública” (CUNDA, 2016, p. 268).


2. O sistema de controle externo da Administração Pública atribuído aos Tribunais de Contas

Em decorrência dessa base principiológica, insta ressaltar que a CRFB de 1988, instituiu dois sistemas de controle da Administração Pública, quais seja o sistema de controle interno e o sistema de controle externo.

Inaugurando a Seção IX da CRFB (Da fiscalização contábil, financeira e orçamentária), prescreve o seu art. 70 que a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da Administração Pública direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo congresso nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Por sua vez, especificando essa prescrição genérica, o art. 74 da CRFB (BRASIL, 1988) estabelece os escopos do sistema de controle interno da Administração Pública a ser desempenhado por todos os Poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário), bem como por todos os órgãos públicos autônomos.

Entretanto, em razão da estruturação escalonada do poder hierárquico típico do Estado brasileiro, por meio do Decreto Lei (DL) n. 200, de 25 de fevereiro de 1967 (BRASIL, 1967), levando-se em consideração que os órgãos incumbidos da atribuição de controlar internamente a Administração Pública, não detêm as necessárias independência funcional e autonomia financeira, a CRFB, em seu art. 71, instituiu paralelamente um sistema de controle externo da Administração Pública de modo a propiciar a realização de uma atividade fiscalizatória isenta.

Importa destacar que o dever de controle externo da Administração Pública é incumbido ao Poder Legislativo, bem como aos TC´s, a teor do que prescreve o art. 70 da CRFB (BRASIL, 1988), os quais “[...] devem ser compreendidos como instrumentos de proteção dos direitos fundamentais e, por conseguinte, como força realizadora da democracia substantiva” (IOCKEN, 2014, p. 109). Cumpre fazer o esclarecimento de que o poder constituinte originário estabeleceu um sistema híbrido de controle externo, na medida em que outorgou a dois atores a tarefa de desempenhá-lo de forma independente e particular, a depender do objeto.

Assim, ao Poder Legislativo conferiu-se o poder-dever de apreciar as contas de governo a serem prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo (contas unificadas de todos os poderes e órgãos autônomos financeiramente) e aos Tribunais de Contas outorgou-se o poder-dever de emitir parecer prévio opinativo para lastrear essa decisão - art. 70 e 71, caput, da CRFB (BRASIL, 1988). Atribuiu se, com exclusividade de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta e de fiscalizar atos e processos administrativos - art. 71, III a XI, da CRFB (BRASIL, 1988).

Traz-se à baila o entendimento esposado de forma elucidativa pelo, então, Ministro do STF, Carlos Ayres Britto:

Tudo fica mais claro quando se faz a distinção entre competências e função. A função de que nos ocupamos é a mesma, pois outra não é senão o controle externo. As competências, no entanto, descoincidem. As do Congresso Nacional estão arroladas nos incisos IX e X do art. 49 da Constituição, enquanto as do TCU são as que desfilam pela comprida passarela do art. 71 da mesma Carta Magna. Valendo anotar que parte dessas competências a Corte Federal de Contas desempenha como forma de auxílio ao Congresso Nacional, enquanto a outra parte sequer é exercida sob esse regime de obrigatória atuação conjugada (LIMA, 2015, p. 36).

As TC´s são órgãos estranhos a qualquer dos poderes constituídos, dotados de autonomia administrativa e financeira - art. 73 c/c o art. 96 da CRFB (BRASIL, 1988), incumbidos de exercer o controle externo da Administração Pública, justamente por ser levado a efeito por “[...] organismo diverso, não pertencente à estrutura do responsável pelo ato controlado” (CASTRO, 2015, p. 31). Neste contexto e para além dessa constatação, a exemplo da estruturação conferida ao Poder Judiciário, no que se refere às garantias outorgadas aos membros da magistratura pelo art. 95 da CRFB (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio). O § 3° do art. 73 da CRFB prescreve que os ministros do TCU, cuja regra se aplica aos conselheiros dos tribunais de contas estaduais e municipais por força do disposto no art. 75 da CRFB (BRASIL, 1988), terão as mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aplicando-lhes, quanto à aposentadoria e pensão, as normas constantes do art. 40.

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Ganha importância o fato de os TC´s são órgãos públicos, cujo quadro de representação é integrado apenas por cargos isolados (ministro ou conselheiro) e, principalmente, por significarem uma instância jurisdicional única, vale dizer, os processos de fiscalização e de prestação de contas se iniciam e se encerram no âmbito dos tribunais de contas, não havendo que se falar em sistema recursal externo, isto é, direcionado para outros órgãos de sobreposição. Em reforço, é sabido que o princípio da inafastabilidade da jurisdição, prescrito no art. 5°, XXXV, da CRFB (BRASIL, 1988), impõe que a lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito, cuja característica é a definitividade ou imutabilidade de suas decisões, denominada tecnicamente de coisa julgada (art. 5°, XXXVI, da CRFB c/c o arts. 502 a 508 do Código de Processo Civil (CPC) por meio da Lei n. 13.105/2015 (BRASIL, 2015a).

Cabe ressaltar, que os processos tramitáveis, no âmbito dos TC’s somente podem ser revisitados e revistos pelo Poder Judiciário, sob o viés da legalidade, cujo espectro se apresenta em menor proporção em relação aos processos de prestação e tomada de contas, os quais se circunscreverem apenas ao âmbito das Cortes de Contas (CC’s), ficando acobertadas pelo manto da imodificabilidade de suas decisões, representando exceção ao sobredito princípio da inafastabilidade da jurisdição.

O constituinte de 1988, ao atribuir funções de judicatura aos TC’s, a teor do que prescreve o art. 73, § 4°, da CRFB, ao tempo em que conferiu atribuições específicas (arts. 70 e 71), as quais exigem uma qualificação especializada de seus membros (art. 70, caput, c/c o art. 73, § 1°, III e IV, ambos da CRFB (BRASIL, 1988), excepcionou parcialmente o princípio da inafastabilidade da jurisdição, permitindo a coexistência harmônica entre as duas esferas de jurisdição.

O controle externo desempenhado pelos TC’s, em relação à ocorrência dos atos/processos administrativos, pode se dar prévia, concomitante ou posteriormente (a posteriori). “Até a Constituição de 1946, os contratos dependiam, para sua eficácia, de assinatura, publicação e exame pelo tribunal de contas. Ao tempo do registro prévio, a eficácia ficava condicionada a ao registro da despesa” (FERNANDES, 2016, p. 470-471).

Desde a promulgação da atual CRFB/1988 (BRASIL, 1988), o sistema de controle externo desempenhado pelos TC’s, se dá posteriormente ao ato/processo administrativo praticado. Não obstante, com base na teoria dos poderes implícitos e no poder geral de cautela extraído do ordenamento jurídico pátrio, a exemplo do disposto no art. 102, I, p, da CRFB, o STF (BRASIL, 2016) tem admitido a utilização de instrumentos processuais cautelares por parte dos TC´s com vistas a evitar e prevenir a ocorrência de irregularidades ou de danos ao erário público, razão pela qual concluiu que as medidas cautelares previstas na Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União (LOTCU) Lei n. 8.443, de 16 de julho de 1992, em seu art. 44, § 2°, são compatíveis com a CRFB (BRASIL, 1992).

Dispõe o art. 113, § 2°, da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993[1] (BRASIL, 1993), que os TC´s e os órgãos integrantes do sistema de controle interno poderão solicitar para exame, até o dia útil imediatamente anterior à data de recebimento das propostas, cópia de edital de licitação já publicado, obrigando-se os órgãos ou entidades da Administração interessada à adoção de medidas corretivas pertinentes que, em função desse exame, lhes forem determinadas.

Por sua vez, várias unidades da federação editaram normas locais impondo a obrigação de envio de todos os editais de licitação aos tribunais de contas, cuja exigência foi considerada inconstitucional pelo STF (BRASIL, 2008), restando possível tão somente a solicitação pontual de editais de licitação específicos, cujo controle apenas temporalmente pode ser considerado como prévio, haja vista que não pode assumir a feição de condição para a prática do ato administrativo fiscalizado.

Outro exemplo, de controle externo desempenhado pelos TC’s desenvolvido em momento diverso do ordinário, qual seja, a posteriori, é o realizado por meio das auditorias de natureza operacional, a qual depende ou não da ocorrência de situações específicas, não previstas no plano anual de fiscalização, nos termos do art. 240, II, do Regimento Interno do Tribunal de Contas do Estado de Goiás (RITCE/GO).

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Sobre o autor
Eduardo Luz Gonçalves

Graduado em Direito pela UFPI, Pós-graduado lato sensu em Direito Processual pela UFPI, Mestrando em Desenvolvimento Regional pela UNIALFA, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Procurador da Fazenda Nacional e Procurador do Ministério Público de Contas do Estado de Goiás.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Eduardo Luz. Os tribunais de contas e as políticas públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5595, 26 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69241. Acesso em: 26 abr. 2024.

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