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O direito brasileiro e a tormentosa questão relacionada às técnicas de reprodução assistida

23/01/2019 às 14:30
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Quando a inseminação heteróloga se dá sem o consentimento do marido, este pode impugnar a paternidade?

No Código Civil foram inseridos três dispositivos no artigo 1.597, que trata da presunção de filhos concebidos na constância do casamento. Assim, além dos incisos I e II, que cuidam das presunções ordinárias de concepção, dispõe esse artigo que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos:

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Esses dispositivos, únicos no código sobre o tema, cuidam dos filhos nascidos do que se convencionou denominar fertilização ou reprodução assistida. O código enfoca, portanto, a possibilidade de nascimento de filho ainda que após a morte do pai ou da mãe, no caso de fecundação artificial e de embriões excedentários. Frise-se que o embrião pode ser albergado no útero de outra mulher, questão que faz surgir a problemática da maternidade sub-rogada, maternidade de substituição ou ventre de aluguel Advirta-se, de plano, que o Código Civil de 2002 não autoriza nem regulamenta essa reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador.

O fenômeno legal da procriação, no direito do passado, estabelece a presunção de que há uma relação causal entre a cópula e a procriação. Desse modo, em princípio, provada a relação sexual, presume-se a fecundação. No entanto, hoje enfrentamos outra problemática, a exigir normas atualizadas. A inseminação artificial permite fecundar uma mulher fora da relação sexual. O esperma é recolhido e, mantido ou não por tempo mais ou menos longo, o qual sendo introduzido no órgão sexual da mulher, fecunda-a. O mesmo se diga a respeito do embrião. A questão da paternidade nessa hipótese é de sensível importância. O sêmen pode ser do marido ou companheiro da mulher ou de terceiro, conhecido ou desconhecido. Pode não ter havido concordância do marido ou do terceiro. Cuida-se de problemática à espera de soluções, uma vez que os dispositivos do novo código apenas apontam um início legislativo. A fecundação também pode redundar de embrião retirado da mulher.

Denomina-se homóloga a inseminação proveniente do sêmen do marido ou do companheiro; heteróloga, quando proveniente de um estranho. Por outro lado, outra banda de questões surge se a inseminação é feita contra a vontade do marido ou companheiro. São novos e desafiantes temas a aguçar modernamente os estudos jurídicos e a exigir respostas do legislador.

No tocante especificamente à paternidade, a tendência das legislações é de conceder toda a liberdade para permitir o recurso a todos os meios de prova cientificamente aceitos. A demora natural do legislador em dar respostas aos novos problemas, não só no nosso país, mas também no exterior, não deve ser obstáculo para o jurista e principalmente para o magistrado dar solução adequada às novas questões.

Atualmente, considera-se que o resultado positivo de paternidade é tão seguro quanto sua exclusão. A genética avança em velocidade acelerada. Os exames até pouco tempo tidos como modernos e eficazes, exames de sistemas sanguíneos, ABO, MN, RH e o sistema HLA, perderam muito de seu interesse com a descoberta, na década de 1980, do polimorfismo genético, que se transmite hereditariamente (DNA). No entanto, por mais que se valore a prova biológica, não deve dispensar-se o concurso da prova convencional, a menos que o legislador queira, na filiação, estabelecer o estrito laço de sangue, desinteressando-se de todo e qualquer laço afetivo, com todas consequências danosas conhecidas. Assim como na adoção, a paternidade deve ser vista como um ato de amor e desapego material, e não simplesmente como fenômeno científico, sob pena de revivermos odiosas concepções de eugenia que assolaram o mundo em passado não muito remoto.

Nesse sentido a doutrina se refere à paternidade socioafetiva. Várias legislações já nos dão exemplo disso ao admitir as consequências da paternidade à inseminação artificial com sêmen de terceiro, admitida pelo casal. Na inseminação heteróloga, autorizada pelo marido ou companheiro, a paternidade socioafetiva já estaria estabelecida no momento em que o pai concorda expressamente com a fertilização.

A ciência já avançou muito em matéria de fertilização assistida, em prol dos casais que padecem de infertilidade. Questão fundamental que se desloca para o campo jurídico é saber se quando a inseminação heteróloga se deu sem o consentimento do marido, este pode impugnar a paternidade. Se a inseminação se deu com seu consentimento, há que se entender que não poderá impugnar a paternidade e que a assumiu. A lei brasileira passa a resolver expressamente essa questão. A lei não esclarece ainda, porém, de que forma deve ser dada essa autorização. Por outro lado, a nova lei civil fala em "autorização prévia", dando a entender que o ato não pode ser aceito ou ratificado posteriormente pelo marido, o que não se afigura verdadeiro. A lei específica deve ser urgentemente promulgada para resolver questões éticas, jurídicas e sociais dessa problemática, inclusive proibindo condutas indesejáveis e tipificando-as como crime, como a criação de clones de seres humanos.

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Está em tramitação o Projeto de Lei do Senado nº 90/99, que dispõe sobre a matéria. De acordo com esse projeto, os estabelecimentos que praticarem a reprodução assistida estarão obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e usuários venham a conhecer reciprocamente as suas identidades, zelando, da mesma forma, pelo sigilo absoluto das informações sobre a criança nascida a partir de material doado. Nesse projeto abre-se, porém, a possibilidade de a pessoa gerada ter acesso às informações sobre sua geração em casos especificados em lei e quando houver razões médicas que tornem necessário o conhecimento genético. Estas últimas disposições são polêmicas.

Como se vê, o assunto ainda tateia na doutrina. Ainda não há terreno seguro a ser trilhado nesse horizonte novo da ciência. Há necessidade que invoquemos princípios éticos, sociológicos, filosóficos e religiosos para uma normatização da reprodução assistida. A futura legislação sobre biogenética e paternidade deverá ocupar-se, portanto, de muitos novos aspectos, nem sequer imaginados em passado próximo. E os aspectos preocupantes são proeminentemente éticos.

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BACHÁ, Maria. O direito brasileiro e a tormentosa questão relacionada às técnicas de reprodução assistida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5684, 23 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69407. Acesso em: 19 mar. 2024.

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