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A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade

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27/07/2019 às 15:10
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A teoria dos precedentes judiciais é uma necessidade para qualquer sistema jurídico que se preocupe com a igualdade das decisões judiciais e a segurança jurídica dos jurisdicionados.

INTRODUÇÃO

A teoria dos precedentes judiciais é tema de grande relevância no Direito Processual contemporâneo. A tradicional visão acerca dos efeitos de uma decisão judicial se limitar às partes do processo encontra-se superada, haja vista uma nova realidade de conflitos existentes no meio social.

Sabe-se que o processo sempre foi visto como instrumento para resolver conflitos entre duas pessoas. Assim, o demandante exercia sua pretensão resistida contra alguém, pedindo ao juiz o reconhecimento do seu direito. A decisão judicial, que colocava fim ao conflito, produzia efeitos somente para as partes, já que a lide, neste contexto, não detinha de eficácia social, ou seja, terceiros não recebiam os reflexos de uma decisão judicial.

Todavia, houve uma mutação da realidade social. A evolução econômica do país trouxe como reflexo maior poder aquisitivo das classes tradicionalmente desafortunadas. Se há inclusão de um maior número de pessoas nas relações de consumo, via de consequência os conflitos tendem a aumentar. A massificação das relações sociais aumentou vertiginosamente os conflitos, situação em que o acesso à justiça não se limitava mais aos poucos indivíduos que faziam parte da sociedade de consumo.

O Direito processual, destarte, se viu deparado desta nova realidade. A procura ao judiciário passou a ser uma realidade concreta para toda a sociedade, razão pela qual, os conflitos passaram a se repetir, ser semelhantes. O processualista moderno teve que revisitar tradicionais institutos do direito processual, como, por exemplo, a decisão judicial. Esta, que é produto de uma atividade racional do magistrado, não se resume a conceder a prestação jurisdicional às partes sem se preocupar com seus efeitos perante terceiros. A decisão judicial, em que pese ainda ter como fulcro a resolução do conflito das partes posta em juízo, passa também a ser como um paradigma decisório para outras situações semelhantes. Eis aí o precedente judicial.

O precedente é a decisão judicial que é tomada a luz do caso concreto, cujas razões de decidir podem servir como modelo de julgamento para posteriores julgamentos para casos análogos. Sendo assim, questiona-se, como se compatibiliza o conteúdo da norma jurídica do livre convencimento motivado do magistrado diante da necessidade de dar segurança jurídica aos jurisdicionados? Além do que, é crível que dois casos semelhantes obterem prestações jurisdicionais contrárias?

É sabida a existência do princípio do livre convencimento motivado. Esta norma tem como conteúdo conceder liberdade ao juiz na produção da decisão judicial, encontrando limites, apenas, na necessária fundamentação da mesma, como requisito legitimador de sua produção. Esta é a visão tradicional da temática.

A teoria dos precedentes judiciais, já em grande evolução no sistema jurídico brasileiro, tem como uma das finalidades a busca da igualdade das decisões judiciais. Veja: casos análogos que recebem tratamento jurisdicional diverso, em que pesem possam estar de acordo com o princípio do livre convencimento do magistrado, é situação fática que traz repercussão social negativa, pois fere a igualdade e a segurança jurídica.

A confecção de uma teoria que respeite os precedentes judiciais tem uma relação intrínseca com os princípios da igualdade e da segurança jurídica, pois estas normas legitimam e, ao mesmo tempo, é a própria finalidade da teoria dos precedentes.

É este o objetivo principal deste labor científico, qual seja, demonstrar ao leitor que toda decisão judicial, malgrado a existência da liberdade de interpretação do direito pelo juiz, deve respeitar a igualdade e à segurança jurídica dos jurisdicionados. E este objetivo é alcançado por um sistema que valorize e respeite os precedentes judiciais.

Ab initio, será demonstrado como os sistemas do Civil Law e do Common Law se convergem na atual realidade jurídica, mostrando, destarte, a importância do respeito aos precedentes também no sistema romano-germânico.

O presente trabalho pretende explicar a estrutura e conteúdo dos precedentes judiciais: como é criado, como é distinguido e como é superado. Compreender estes detalhes facilita o entendimento das suas finalidades.

A presente empreitada também abordará a necessária reflexão de um tratamento igualitário dos jurisdicionados, em ambos os aspectos: substancial e formal.

Por fim e não menos importante, pretende-se trabalhar a relação existente entre uma decisão judicial e à segurança jurídica, no que pertine à legitima expectativa gerada nos jurisdicionados acerca da interpretação do direito elaborada pelo Poder Judiciário.


COMMON LAW E CIVIL LAW. UMA ANÁLISE COMPARATIVA

A percepção do respeito a casos semelhantes para a confecção de uma decisão judicial ocorreu, tradicionalmente, no sistema do common Law. Este, considerado por alguns autores como um “oráculo vivo”, é a fonte do direito neste sistema, de onde os juízes extraem - ou constituem – o direito para a resolução dos conflitos que foram levados para a sua esfera de atuação.

O Direito inglês, considerado como a principal experiência do uso do Common Law, tem nos costumes gerais observados pelos Englishmen o núcleo central de todo o ordenamento jurídico. Diferentemente da ideia tradicional do sistema do Civil Law, a função judiciária no Common Law tem participação mais intensa e “criativa” na constituição (ou declaração) do direito no caso concreto, pois, aqui, não há uma pré-codificação inserida nos costumes do povo inglês, razão pela qual sempre se esperou do juiz do common law uma atuação que tornasse concreto e efetivo o direito costumeiro, trazendo estabilidade nas relações sociais.

Se é dos juízes o mister de declarar ou constituir o direito advindo do Common Law, é um truísmo afirmar que a certeza do direito e a sua coerência deve advir do mesmo. É justamente aqui que residi o respeito ao precedente judicial, visto como a técnica que impede que casos análogos tenham decisões judiciais dispares, esta vista como grave ofensa ao princípio jurídico e filosófico da igualdade.

Havia, e de certa forma ainda há, uma divergência doutrinária acerca da natureza da decisão judicial no sistema do Common Law. Havia quem dissesse que a decisão judicial somente declara o direito inserido no “oráculo vivo”; ao revés, afirmava-se que a atividade jurisdicional era criativa do direito. De fato, as teorias acerca da jurisdição no direito costumeiro perpassava por estas duas teorias, todavia, adotando uma ou outra tese, o que realmente importa para distinguir com clareza o sistema do Common Law do Civil Law é a maior ou menor liberdade que se deu à função jurisdicional ao julgar o caso concreto. E, sem dúvida, o Common Law ao permitir maior liberdade de julgamento para os juízes, percebeu a importância de respeito aos precedentes.

...tanto a teoria declaratória quanto a teoria constitutiva adaptaram-se a um sistema de respeito obrigatório aos precedentes (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 31, ed.3).

Explico-me.

A revolução francesa foi o contexto histórico que traçou a ideologia que marcaria o sistema do civil law ao longo do século XIX. Neste diapasão, imperou-se a teoria da separação dos poderes elaborada por Montesquieu, que, segundo o qual, para que os ideais revolucionários fossem efetivados, e o regime absolutista fosse superado, era necessário conceder um poder absoluto ao parlamento, pois aos juízes da época lhe faltava um pressuposto processual de validade, mas precisamente o da imparcialidade, já que mantinham laços espúrios com os soberanos.

Na Inglaterra, o juiz esteve ao lado do parlamento na luta contra o arbítrio do monarca, reivindicando a tutela dos direitos e das liberdades do cidadão. Por isso mesmo, ao contrário do que ocorreu na revolução francesa, não houve clima pra desconfiar do judiciário ou para supor que os juízes se posicionariam em favor do rei ou do absolutismo (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 34, ed.3).

Concedido o poder absoluto ao parlamento na criação do direito, aos juízes só lhe restavam uma atividade puramente mecânica, qual seja, a mera declaração do Direito. A separação “rigorosa” dos poderes do Estado impôs que aos juízes somente declarassem a vontade concreta da lei – teoria da jurisdição elaborada por Chiovenda -, não havendo qualquer atividade interpretativa em sua atuação. A título de ilustração, na França, foi criada a Corte de Cassação, que possuía uma nomenclatura impropriada, já que era uma Corte que fazia parte do Poder Legislativo, e tinha por escopo cassar a interpretação errada da lei.

Nesse sentido, o poder dos juízes ficaria limitado a afirmar o que já havia sido dito pelo legislativo, devendo o julgamento ser apenas “um texto exato da lei” (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 52, ed.3).

Pois bem, as legislações dos países que adoram o sistema do Civil Law foram sendo confeccionadas com base nessa ideologia. A Codificação da época tinha a pretensão de completude, concretude e coerência, mediante o uso da técnica legislativa dos textos casuístico, não se admitindo falhas e lacunas. A Codificação tomava para si a legitimidade exclusiva para dar certeza ao Direito quanto aos jurisdicionados. Ao se admitir a premissa como verdadeira, não há como admitir outra conclusão acerca da natureza da atividade jurisdicional, senão a de que jurisdição tem como único espoco declarar a vontade do legislador. Não foi outra coisa que ocorreu nessa época, momento em que surgiram as clássicas teorias da jurisdição: aplicação da vontade concreta da lei – tese de Chiovenda -; e criação da norma jurídica individual, com fundamento da norma geral (lei) – teoria confeccionada por Carnelutti.

A experiência da atividade jurisdicional do Civil Law estava marcada pelo insucesso. É visível que uma atividade de aplicação de um texto legal no caso concreto exige muito mais do que a simples declaração dos contornos legais. A atividade interpretativa é um meio necessário para conferir concretude a um texto legal, visto que é uma ingenuidade não concluir pelo alto grau de complexidade da intersubjetividade das relações, e, por consequência, da aplicação do texto ao caso sob julgamento. As propostas ideológicas do Civil Law foram se mostrando inefetivas, haja vista que as Codificações se mostravam com inúmeras falhas de regulação e de completude.

...a concepção dogmática de que o Direito se restringe ao produto do legislativo, ancorada na ideologia da Revolução Francesa e no dogma da estrita separação dos poderes, não sobreviveu aos fatos históricos, à conformação diversificada dos sistemas jurídicos dos vários países do Civil Law e, sobretudo, ao advento do constitucionalismo (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 40, ed.3).

O que realmente varia do civil law para o common law é o significado que se atribui aos Códigos e a função que o juiz exerce ao considera-los. No common law, os Códigos não tem a pretensão de fechar os espaços para o juiz pensar; portanto, não se preocupam em ter todas as regras capazes de solucionar os casos conflituosos (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 54, ed.3).

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O último golpe sofrido pelo sistema do Civil Law foi o surgimento do Neoconstitucionalismo. A supremacia da lei deu lugar à supremacia da Constituição; os juízes passaram a controlar a constitucionalidade das leis no caso concreto; a codificação feita sob a técnica dos textos casuísticos deu lugar a técnica legislativa das cláusulas gerais. Em suma: o Neoconstitucionalismo alterou a própria Teoria do Direito.

Pois bem, a jurisdição já não mais poderia se subordinar a dar concretude a vontade concreta da lei. A aplicabilidade direta da Constitucional, notadamente a aplicação direita dos direitos fundamentais, exige do juiz uma atividade de conformação da lei aos ditames do Constituinte originário. Se o legislador produziu direito legislado em confrontação ao conteúdo constitucional, ou se se omitiu em flagrante inconstitucionalidade por omissão, o juiz deve conformar este comportamento, comissivo ou omissivo, produzindo uma nova norma jurídica para regular o caso concreto. Veja que esta norma jurídica não é a que simplesmente torna concreta a vontade do parlamento, mas sim é aquela que foi extraída após uma filtragem constitucional e, a posteriori, utilizada como regramento do caso sob julgamento. Por fim, o próprio parlamento visualizou a inevitável atuação “criativa” do Poder Judiciário, já que, no uso do poder-dever constitucional de legislar, passou a produzir direito legislador mediante o manejo das cláusulas gerais, técnica que tem como características a incompletude do seu texto, conferindo nortes interpretativos ao juiz na aplicação/criação do direito ao caso concreto.

Após essa analise comparativa entre os dois sistemas, é infalível a afirmativa que os mesmos não mais de divergem; ao revés, se convergem. A atuação do juiz do Common sempre lhe foi dada maior liberdade de aplicação do direito ao caso concreto, já que o Direito inserido nos costumes não dá a ideia de completude e concretude aos jurisdicionados. O juiz do Civil Law, que originariamente estava subordinado à supremacia da lei, hodiernamente exerce atividade jurisdicional ativista, criativa, pois deve, a priori, conformar a lei aos ditames da Constituição e dos direitos fundamentais, criando a norma jurídica do caso, para, a posteriori, aplicá-la ao caso sob julgamento.

A evolução do Civil Law, particularmente em virtude do impacto do constitucionalismo, deu aos seus juízes um poder similar àquele do juiz inglês submetido ao Common Law e, bem mais claramente, ao poder do juiz americano, dotado do poder de controlar a lei a partir da Constituição (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 38, ed.3).

Destarte, inevitável também é a pergunta. Por que somente o Common Law deu importância jurídica aos precedentes judiciais? Como já foi dito, o Common Law, que é o direito dos costumes, precisa ser concretizado para aplicação nos casos sob julgamento, e esse mister sempre foi delegado aos juízes, verdadeiros colaboradores para a certeza e coerência do Direito costumeiro.

Nos países que não precisaram se iludir com o absurdo de que o juiz não poderia interpretar a lei, naturalmente aceitou-se que a segurança e a previsibilidade teriam de ser buscadas em outro lugar. E que lugar seria esse? Ora, exatamente nos precedentes, ou, mais precisamente, no stare decisis (LUIZ GUILHERME MARINONI, Precedentes obrigatórios, p. 61, ed.3).

Ao revés, o Civil Law, sob a influência dos ideais libertários da Revolução Francesa, teve a pretensão de conferir ao parlamento o mister de dar concretude e coerência ao Direito, tirando do juiz qualquer poder interpretativo sobre a lei, situação em que os precedentes judiciais não foram percebidos como importantes instrumentos de certeza e coerência do Direito. Todavia, a história mostrou que a ideologia do Civil Law foi infrutífera, pois a Jurisdição, sofrendo forte influencia do Neoconstitucionalismo, tem um papel mais criativo na aplicação do direito. Diante desta premissa, os objetivos de coerência e concretude do Direito não mais podem ser buscados na lei, mas sim na atividade jurisdicional. A jurisdição, ao conformar a lei com o conteúdo constitucional, é o responsável por trazer expectativa de direito aos jurisdicionados.

Enfim, a teoria dos precedentes judiciais, diante desta nova abordagem metodológica também deve ser o instrumento condutor de segurança jurídica no sistema do Civil Law.

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Sobre o autor
Renato Nascimento Lessa

Advogado OAB BA n° 40.539. Área de atuação: Cível e Consumidor. Graduado pela Universidade Católica do Salvador. Pós- graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera/LFG, coordenação do professor Fredie Didier. Aprovado e empossado nas funções de conciliador e juiz leigo, tendo exercido tais atividades entre 2015 e 2017. Telefone: (71) 992838762 (wapp)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Renato Nascimento. A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5869, 27 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69694. Acesso em: 25 abr. 2024.

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