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Lei 13.432/17 limitou investigação por detetive particular

13/02/2019 às 14:30
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A limitação do trabalho do detetive é essencial para garantir a higidez da persecução penal e evitar a perda de uma chance probatória, além de preservar a própria integridade física do detetive, que atua desarmado, sem identidade profissional e movido por interesse econômico.

Entrou em vigor a Lei 13.432/17, com o propósito de disciplinar a atividade do detetive particular. Definiu sua natureza como não criminal (art. 2º), exigiu contrato escrito com estipulação de honorários e prazo (arts. 7º e 8º) e confecção de relatório do serviço (art. 9º), e estabeleceu vedações (art. 10), deveres (art. 11) e direitos (art. 12). Além disso, possibilitou a colaboração do detetive profissional com a investigação policial mediante autorização do contratante e aceite do delegado de polícia (art. 5º). A Lei não instituiu carteira de identidade profissional (como desejava a versão inicial do Projeto de Lei) nem concedeu porte de arma de fogo ao detetive. A regulamentação é complementada pela Lei 3.099/57 e pelo Decreto 50.532/61, que não foram revogados expressa ou tacitamente pela Lei 13.432/17.

O detetive particular pode atuar “por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial” (art. 2º). Caso opte por constituir sociedade, deve estar registrada na Junta Comercial do estado respectivo (art. 1º da Lei 3.099/57), bem como na delegacia de polícia do local de atuação (art. 1º do Decreto 50.532/61).

A atuação do detetive é restrita territorialmente. Não altera essa constatação o fato de ser direito do detetive (art. 12, I) exercer a profissão “em todo o território nacional”, pois isso deve ser feito “na forma desta Lei”, ou seja, observando a exigência de estipulação contratual do “local em que será prestado o serviço” (art. 8º, V).

A legislação não criou a figura de investigador privado, eis que a atuação do detetive particular deve ser extrapenal. Sua função é de coleta de informações de natureza não criminal, limitando-se ao “esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante” (art. 2º), que constituem, ao menos em princípio, irrelevantes penais (tais como infidelidade conjugal e desaparecimento de pessoas ou animais).

Sua atividade é movida pelo lucro (art. 8º, VI) e não pelo interesse público. Por isso foi vetado o dispositivo (art. 12, V) que o definia como “profissional colaborador da Justiça e dos órgãos de polícia judiciária”, justamente para evitar “confusão entre atividade pública e privada, com prejuízos a ambas e ao interesse público”.

Com efeito, a investigação criminal continua sendo atividade essencial e exclusiva de Estado, em homenagem ao princípio da oficialidade, o que significa dizer que as funções de apuração de infrações penais e de polícia judiciária são exercidas pela Polícia Judiciária, com a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado de polícia (art. 144 da CF e art. 2º, §1º da Lei 12.830/13). Eventual contrato que ajustar a investigação criminal como objeto é nulo em razão da expressa vedação legal (art. 2º).

E nem mesmo a reunião de dados de interesse privado é exclusiva do detetive profissional, conforme consignam os vetos aos arts. 1º e 3º, podendo perfeitamente ser exercida, por exemplo, por um advogado.

A Lei não empregou os termos investigação ou apuração, preferindo coleta de dados e informações (arts. 2º, 9º e 10, III e V), deixando claro que não se confunde com a investigação criminal ou tampouco com a atividade de inteligência.

Diferencia-se da investigação criminal pois o detetive profissional não possui poder de polícia (não pode condicionar a liberdade e a propriedade dos indivíduos mediante ações preventivas e repressivas). A coleta particular de dados é desprovida dos atributos da discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade, inexistindo supremacia do seu agir em relação ao particular, ao contrário da atuação do membro da Polícia Judiciária (art. 144 da CF, art. 2º, §2º da Lei 12.830/13 e art. 6º do CPP).

Também se distingue da atividade de inteligência, executada para obtenção de dados negados de difícil acesso e/ou para neutralizar ações adversas marcadas por dificuldades e/ou riscos iminentes. A compilação privada de elementos de convicção não abrange o emprego de pessoal, material e técnicas especializadas (Portaria 2/16 do Ministério da Justiça, que aprovou a Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública).

Ou seja, o detetive está longe de ser um policial privado ou um agente de inteligência particular. Age como um despachante do cliente, arrecadando informações de natureza não criminal, como pode ser feito por qualquer pessoa; inclusive pelo contratante, que todavia preferiu a comodidade de pagar para que alguém faça esse serviço em seu lugar. Isto é, cuida-se de um contrato específico de prestação de serviços (sinalagmático, oneroso e intuitu personae). A Lei 13.432/17 não conferiu ao prestador do serviço qualquer prerrogativa ou vantagem na coleta de dados, pelo contrário, trouxe mais exigências para a formalização do contrato e admitiu sua colaboração somente dentro de rígidos limites.

Sua atuação é apenas complementar. Não pode executar técnicas ordinárias de investigação (tais quais oitivas e quebra de sigilo de dados) nem meios extraordinários de obtenção de prova (como infiltração policial comum ou virtual). Também não tem autorização para implementar ações de inteligência de segurança pública (a exemplo de vigilância e entrevista).

O detetive não pode participar diretamente de diligência policial (art. 10, IV). Além disso, os recursos de pesquisa permitidos ao contratado são apenas aqueles disponíveis a qualquer cidadão, que não podem atingir direitos fundamentais alheios (art. 3º do Decreto 50.532/61), sendo um de seus deveres justamente “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem das pessoas” (art. 11, II).

Outrossim, o detetive pode apenas pesquisar informações em fontes abertas (tais quais redes sociais e sites de órgãos públicos e privados), em locais públicos (como vias públicas e áreas não restritas de estabelecimentos) e sem molestar envolvidos (vítima, testemunha ou suspeito). Sua atuação se dá por meio da sugestão de fontes de prova (a exemplo de indicação de testemunha, localização de objeto e exibição de documento, e apontamento de dados). A efetiva obtenção do meio de prova (intimação e oitiva da testemunha, apreensão e perícia na coisa e requisição de dados) será feita pela Polícia Judiciária, sob o manto estatal.

Não vingou a redação original do Projeto de Lei 1.211/11 que autorizava o detetive a realizar investigação criminal, por meio de diligências como “relatórios de investigações privadas, juntando descrições, croquis, gráficos, fotografias, filmes e gravações magnéticas” referentes a “situação hipotética envolvendo fato, criminoso ou não”. Nessa esteira, o relatório a que faz menção o art. 9º consiste em simples prestação de contas ao contratante em relação ao serviço realizado, e não documentação de diligência de investigação criminal, razão pela qual não deve ser juntado no procedimento policial.

A limitação do trabalho do detetive é essencial para garantir a higidez da persecução penal e evitar a perda de uma chance probatória, além de preservar a própria integridade física do detetive, que atua desarmado, sem identidade profissional e movido por interesse financeiro.

A atuação do detetive fora dos limites enseja responsabilidade pessoal e ilicitude de provas.

O detetive particular que exceder aos limites da chancela autorizadora do delegado de polícia será responsabilizado por usurpação de função pública (art. 328 do CP), pois não abarcado pela excludente de ilicitude de exercício regular de direito (art. 23, III do CP), admitindo-se cumulação de outras infrações penais como violação de domicílio (art. 150 do CP), lesão corporal (art. 129 do CP), interceptação telefônica clandestina (art. 10 da Lei 9.296/96) ou perturbação da tranquilidade (art. 65 da LCP).

Ademais, se a obtenção da informação pelo detetive ocorrer mediante violação de normas legais ou constitucionais (realizando ato típico de investigação criminal ou inteligência de segurança pública, em vez de se limitar a pesquisar em locais públicos e fontes abertas), a prova será ilícita e não poderá ser aproveitada (art. 5º, LVI da CF e art. 157 do CPP).

Excepcionalmente a ilicitude de prova clandestina será excluída por aplicação da máxima da proporcionalidade, quando a colheita ilícita da prova se der para o suspeito se defender e provar sua inocência (prova ilícita pro reo),[1] ou a vítima proteger seu bem jurídico ofendido ou colocado em risco (prova ilícita em legítima defesa),[2] podendo se valer de auxílio técnico do detetive.[3] Sublinhe-se: apenas como desvio da regra geral.

Como regra, o detetive atua em situação penalmente atípica (a exemplo de levantamento da vida pregressa de um postulante a cargo em empresa, verificação da idoneidade de contratante ou constatação das companhias de um filho). Entretanto, muitas situações (como o inadimplemento contratual e o desaparecimento de pessoa) se encontram no limbo entre o que é extrapenal e penal; ocasiões em que geralmente a Polícia Judiciária possui dados precários que não se qualificam como indícios mínimos aptos a ensejar a instauração de inquérito policial.

Nesse contexto sobressai a verificação da procedência das informações (art. 5º, §3º do CPP). Possui a finalidade de comprovação da verossimilhança da notitia criminis apresentada,[4] evitando a instauração despropositada de inquérito policial se não houver evidência mínima da infração penal.[5] Permite a confirmação ou não da notícia de crime, de modo que a instauração do inquérito policial ocorrerá apenas se diante de início de justa causa (juízo de possibilidade), sob pena de trancamento.[6]

Nessa vereda, a colaboração do detetive, quando autorizada, possui como principal utilidade servir de elemento de convicção que permita a deflagração do inquérito policial, e não instruir um procedimento policial já instaurado. Isso porque, se o inquérito policial está em curso, é sinal de que o delegado já obteve os mínimos dados necessários e a Polícia Judiciária já definiu caminho investigativo para extrair os meios de prova, sendo o aprofundamento da investigação incompatível com a possibilidade limitada de atuação do detetive. Apenas excepcionalmente deve ser admitida a participação do contratado, para indicar fontes de prova ainda não conhecidas do Estado-Investigação.

Além do mais, a atuação do advogado já é suficiente para tutelar os direitos do investigado ou da vítima no inquérito policial. O trabalho que o detetive particular poderia exercer será melhor realizado pelo causídico, já que o rol de ferramentas do advogado em muito excede ao do detetive particular, a exemplo da apresentação de razões e quesitos (art. 7º, XXI da Lei 8.906/94) e acesso às diligências concluídas do inquérito policial (art. 7º, §11 do EOAB e súmula vinculante 14 do STF), bem como requerimento de diligências (art. 14 do CPP).

O detetive sequer pode requerer diligências em nome do cliente (art. 14 do CPP), pois celebra contrato de prestação de serviços de coleta de dados (arts. 2º e 8º da Lei 13.432/17), e não de mandato (art. 653 do CC e art. 1º, II do EOAB) que o habilitaria a pleitear perante a Polícia Judiciária.

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Em epítome, a partir da instauração do inquérito policial desaparece a legitimidade do detetive particular, ganhando relevo a atuação do advogado na defesa dos interesses de seu cliente.

A colaboração do detetive profissional com a investigação policial deve ser precedida de autorização do cliente e concordância do delegado de polícia (art. 5º).

A anuência do contratante deve ser expressa (por escrito) e específica (documento à parte, não bastando cláusula genérica no contrato). Isso porque o pacto negocial possui natureza não criminal, e fugiria ao espírito da Lei uma autorização geral para colaboração criminal que não passasse pelo crivo especial do cliente.

Intitulamos o documento que formaliza a colaboração de termo de colaboração particular circunstanciada. O nome do documento já permite a identificação das principais características:

a) termo de colaboração: autorização escrita do delegado de polícia para que o detetive auxilie a Polícia Judiciária provendo elementos mínimos iniciais;

b) particular: o detetive atua em caráter privado, preservando a oficialidade da investigação criminal e a presidência do procedimento policial nas mãos do delegado de polícia (sem qualquer protagonismo do prestador de serviço);

c) circunstanciada: a atuação do detetive deve ser especificada do modo mais detalhado possível. É restrita, não podendo o detetive participar diretamente de diligência policial (art. 10, IV) e só podendo realizar pesquisas disponíveis a qualquer cidadão, sem imperatividade e sem atingir direitos fundamentais alheios (art. 11, II e art. 3º do Decreto 50.532/61).

Caso já disponha de informações, o detetive deve imediatamente fornecê-las indicando as fontes de prova (pessoas e coisas) de onde a Polícia Judiciária possa extrair os elementos de convicção. Se não dispuser dos dados, a busca pode ser feita em determinado lapso temporal fixado pelo delegado (que não irá extrapolar o prazo estabelecido no contrato firmado pelo detetive e seu cliente para atuação não criminal - art. 8º, II).

Deve ficar registrado no termo qual é o interesse do cliente para motivar a proposição de colaboração na investigação policial, seja na condição de vítima ou suspeito. Não pode o detetive colaborar com o Estado quando não houver interesse particular a ser tutelado (como no caso de crimes vagos).

Além disso, o detetive não pode atuar em investigação policial relativa a crimes violentos, ocasião em que deve não só se abster de colaborar com a Polícia Judiciária, mas inclusive renunciar ao serviço contratado face ao risco à sua integridade física ou moral (art. 12, III).

São anexos obrigatórios do termo: a) autorização expressa do contratante, que deve ser feita por escrito; b) contrato de prestação de serviços do detetive para seu cliente (art. 8º), que precisa conter a qualificação completa, natureza da coleta de dados não criminais (especificação do problema, tal qual infidelidade conjugal), local de coleta de dados, prazo, relação de documentos e dados fornecidos pelo contratante e estipulação de honorários.

Não se exige concordância do Ministério Público nem chancela judicial.

A ação penal do crime não afeta a possibilidade de colaboração. Em crimes de ação penal pública condicionada ou privada, caso o contratante seja a vítima, sua autorização já constituirá a condição de procedibilidade para deflagração do procedimento policial.

A autoridade de Polícia Judiciária pode exercer juízo de retratação e voltar atrás em seu ato discricionário para determinar a qualquer tempo a cessação da colaboração em curso (art. 5º, parágrafo único da Lei 13.432/17); o contratado também deve interromper o auxílio em caso de extinção do contrato (pressuposto da colaboração) em razão da rescisão por inadimplemento ou força maior (art. 607 do CC).

A participação do detetive particular no curso da investigação policial é uma discricionariedade do delegado de polícia, e não uma prerrogativa profissional. Registre-se ainda que não há qualquer menção sobre a possibilidade de tal profissional auxiliar no curso do processo criminal.

É vedado ao detetive divulgar os meios e os resultados da coleta de dados e informações a que tiver acesso no exercício da profissão, salvo em defesa própria (art. 10, III).

E seu dever profissional preservar o sigilo das fontes de informação (art. 11, I). Obviamente esse segredo não pode impedir o fornecimento de documentos e indicação de pessoas e coisas pelo detetive ao delegado, se autorizado a colaborar com a investigação criminal.

É crível concluir que a Lei não promoveu alargamento na utilização da investigação criminal privada (e sua espécie investigação criminal defensiva),[7] ao contrário do que ocorreria com aprovação do Novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei 156/09, art. 13) que faculta ao investigado entrevistar pessoas. Na atual sistemática, a vítima ou suspeito não pode produzir a prova com imperatividade.

Para que a informação obtida pelo particular se revista de idoneidade a embasar a persecução penal, já que não possui fé pública, deve ser submetida à supervisão estatal, sem a qual não há como assegurar a confiabilidade dos relatos.[8] Incide a chamada teoria da canalização, segundo a qual o elemento de convicção, para ser considerado válido e aproveitável na persecução criminal, deve obter a chancela estatal, dando verniz de oficialidade. Além disso, a ação instrutória do particular não pode obstruir a investigação policial por meio de inovação artificiosa do estado de lugar, coisa ou pessoa, sob pena de crime (art. 347 do CP).


Notas

[1] STF, RE 402.717, Rel. Min Cezar Peluso, DJ 02/12/2008.

[2] STJ, REsp 1.026.605, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJ 13/05/2014.

[3] Para gravação de conversa telefônica ou ambiental, por exemplo.

[4] STJ, RHC 14.434, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 01/04/2004.

[5] COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Niterói: Impetus, 2016.

[6] STF, HC 132.170 AgR, Rel. Min Teori Zavascki, DJ 16/02/2016.

[7] MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

[8] STF, AP 912, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 14/02/2017.

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Sobre o autor
Henrique Hoffmann

Professor e coordenador de pós-graduação do CERS. Autor de livros e coordenador de coleção pela Juspodivm. Colunista do Conjur e da Rádio Justiça do STF. Professor da Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola da Magistratura do Paraná, Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e SENASP. Coordenador do IBEROJUR no Brasil. Mestre em Direito pela UENP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Bacharel em Direito pela UFMG. Delegado de Polícia Civil do Paraná. Premiado como melhor Delegado de Polícia do Brasil na categoria jurídica. Publicou mais de 25 livros e 70 artigos, e proferiu mais de 60 palestras em 17 estados. www.henriquehoffmann.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Henrique Hoffmann. Lei 13.432/17 limitou investigação por detetive particular. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5705, 13 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71782. Acesso em: 19 abr. 2024.

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