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Aspectos financeiros do anatocismo

01/12/2000 às 00:00
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O artigo "Anatocismo legalizado: medida provisória beneficia as já poderosas instituições financeiras", do ilustre Dr. Bruno Mattos e Silva, instigou a minha ousadia em oferecer argumentos técnicos que contradizem as colocações do seu bem formulado artigo.

Já faz algum tempo que os doutos juristas e advogados vêm condenando a denominada prática do anatocismo, sem contudo se preocuparem com o conteúdo técnico da condenação.

O debate recrudesceu mais recentemente com a alteração da Medida Provisória nº 1.963, de 21/03/2000, permitindo a prática do anatocismo, ou juros compostos, em contratos de prazo inferior a um ano.

A condenação vai desde o uso da medida provisória como instrumento jurídico para permitir tal prática, passando pela inserção permissiva em uma medida que abriga assunto inteiramente diverso e indo até a afirmação de que o Governo estaria beneficiando as já poderosas instituições financeiras, como atribui o ilustre articulista.


Mas não tenho encontrado disposição dos críticos em analisar as razões técnicas, de caráter matemático e financeira, que justifiquem a proibição do uso dos juros compostos nas operações de prazo inferior a um ano.

O anatocismo se tornou um monstrengo, um fator de exploração e uma forma de as instituições financeiras extorquirem os coitados dos contratantes..

Antes da Medida Provisória nº 1.963/2000, a Cédula de Crédito Bancário instituída pela Medida Provisória nº 1.925 já havia antecipado a permissão condenada, Sem dúvida, já era tempo de se abolir essa condenação tão inoportuna quanto anacrônica.

Os juros compostos são adotados em todo o mundo, sendo o sistema de contagem de juros mais adequado e capaz de acompanhar a celeridade e o dinamismo das operações financeiras hodiernas.

Sem dúvida, estabeleceu-se uma enorme inversão entre causa e efeito, e entre forma e a essência.

Não é a forma de calcular os juros que eleva o custo do financiamento, mas as elevadas taxas de juros praticadas no mercado.

Uma releitura atenta do art. 4º, inciso IX, da Lei nº 4.595/94 e da Súmula nº 596, do E. STF, será capaz de convencer, com toda a certeza, que a prática do anatocismo não mais é proibida há muitos anos, aliás desde a sua promulgação.

A partir do momento que as taxas de juros podem ser livremente pactuadas, se tornou automaticamente livre o forma de calculá-las, desde que os valores dos juros resultantes da aplicação das taxas contratadas estejam corretos.

A proibição dos juros compostos leva a situações absurdas. Explico: uma instituição financeira pode contratar uma taxa de juros simples de 300% ao ano, mas não pode estabelecer essa taxa a 2% ao mês, a juros compostos, o que dá apenas 26,8% em um ano.

Se a taxa de juros é estabelecida para um determinado período, tanto faz calculá-la pelo regime simples ou composto.

Sem dúvida, é uma incoerência que, aqui sim, beneficia as instituições financeiras. Ela se prevalece dessa proibição para elevar as taxas de juros, com vem acontecendo.

De outra parte, tanto faz contratar uma operação de 26,8% ao ano a juros simples ou compostos, que o desembolso final do mutuário será absolutamente o mesmo.

Os juros compostos atendem melhor ao compasso entre captações e aplicações de recursos. Como pretender capte recursos ao prazo de 30/33 dias, em média, e que a aplicação deles se dê ao prazo de um ano? No limite, essa prática redundaria em concordatas bancárias, pela impossibilidade de os bancos, embora tendo recursos, não poderem honrar o pagamento das captações.

Constata-se, então, que o problema está na magnitude das taxas de juros e não na forma de calcular.


Se analisarmos os recebíveis de uma instituição financeira, verificaremos que elas se classificam, grosso modo, em três grandes grupos, a saber:

a) financiamentos em que a prática de juros compostos é permitida por lei, cujos principais exemplos sãs as cédulas de crédito rural, industrial e comercial. Muitos bancos se utilizam dessas cédulas para as suas composições de dívida, por elas permitirem a capitalização composta.

b) financiamentos para pagamento em prestações, como os realizados pelo SFH-Sistema Financeiro de Habitação, alguns casos de composição de dívidas, CDC-Crédito Direito ao Consumidor, FINAME, leasing financeiro, como sistemas de pagamentos pelos diversos tipos de amortização (Price, SAC, SACRE, Americano, Alemão, etc) que, em regra, não adotam a capitalização de juros, salvo em alguns casos em que é concedido um período de carência com juros capitalizados nesse período. Nos financiamentos pela FINAME, por exemplo, no período de carência os juros são debitados e pagos trimestralmente, em norma, elidindo a prática do anatocismo. E nesse tipo de financiamento, a TJLP-Taxa de Juros de Longo Prazo é capitalizada no que exceder a 6% ao ano. Impedir a capitalização será o mesmo que impedir a realização dessas operações tão necessárias aos investimentos das empresas e ao próprio desenvolvimento econômico nacional.

c) Operações de crédito rotativo, em cujo grupo restam, praticamente, os cheques especiais e as contas garantidas. No caso das contas garantidas, normalmente os bancos debitam os juros dessas contas na conta corrente, não havendo, assim, que se falar em capitalização de juros.

Já nas operações de cheques especiais, os juros deveriam ser mensalmente ajustados entre as partes, ou em outro prazo contratado (na grande maioria dos casos eles são impostos unilateralmente pelos bancos, sem qualquer comunicação ao devedor, isso sim um abuso). Entretanto, essas operações não constituem o maior percentual do universo dos ativos bancários, mas uma parcela relativamente pequena.

A Resolução nº 804/83 do CMN/BACEN torna obrigatória a taxa efetiva anual nos contratos de financiamento ou em qualquer outro documento básico das operações das instituições financeiras de que possa estar ciente o mutuário ou o tomador do crédito. Entretanto essa obrigatoriedade não é obedecida.

Voltando aos cheques especiais.

Com efeito. Em setembro/2000, o total das operações do segmento livre atingia o total de R$ 137.544 milhões, enquanto as operações de cheque especial somente somavam R$ 6.693 milhões, ou seja, 4,87% do total.

E as operações de cheque especial sem atraso atingiam o percentual de 89,7% e as em atraso com mais de 90 dias apenas 3,1% do total. Parece claro que os próprios "explorados" estão satisfeitos com a situação.

Em ambos os casos, ver a publicação "Juros e spread bancário", no "site" do Banco Central do Brasil (www.bcb.gov.br), relativa ao mês de setembro/2000.

Quanto às operações de cheque especial, pessoal física, que se estima em um 12 milhões de contas no Brasil (o total de depositantes está em torno de 27 milhões, mais ou menos), não chega a 3% o número de reclamações por anatocismo que vão à Justiça.

A permissão para a prática do anatocismo na MP 1963-17 em nada altera o essencial, que é a magnitude das taxas, aliás, livremente pactuadas segundo a lei, a Súmula 596 e a jurisprudência dominando no STJ (v. por exemplo RESP 264560/SE, DJ de 20/11/00 e RESP 205990/RS, DJ de 07/08/00).

Essa Medida Provisória tem a finalidade de tornar sem sentido o único obstáculo apresentado pelos bancos para redução das taxas de juros nos cheques especiais.

Em um trabalho importantíssimo, o Banco Central do Brasil levantou todas as alegações que os bancos apresentaram contra a redução das taxas de juros. Tem tomado as providências possíveis, como se pode ver analisando os dados contidos no "site" do Banco Central.

Segundo a mesma publicação já referida, mostra que as taxas de juros medias para pessoas físicas se reduziram de 103% para 71,1% ao ano, e o "spread" bancário se reduziu de 85% ao ano para 54,8% no mesmo período. Resultado semelhante, entretanto, não ocorreu nas operações de cheque especial.

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Está restando, apenas, a proibição do anatocismo praticamente nas operações de cheques especiais, que o Governo procurou atender, permitindo-o, para que os bancos não tenham mais desculpas a apresentar de não abaixarem as taxas.

Essa permissão, data vênia, entendo como inteiramente inócua. Pelo seguinte:

a) a questão está na magnitude das taxas e não na forma de calcular.

b) se as taxas podem ser livremente pactuadas, como impedir elevadas taxas?

c) Se na casa de uma pessoa passa um cano d´água dentro da parede, e esse cano está furado, não adianta pintar a parede; tem de tapar o buraco do cano. E isso, no caso específico, é o mesmo que "engessar" uma das pernas mais importantes da economia, impedindo-a de andar.


O nosso País já sofreu muito com perda de potencial de desenvolvimento econômico com essa anacrônica, demagógica e populista Lei da Usura, assinada por Getúlio Vargas, ditador, e conhecida antigamente como Lei Oswaldo Aranha. Foi, sem dúvida, a responsável pela proliferação da "agiotagem" no Brasil, cuja forma de punição ainda não está fortemente definida, apesar da MP 1820.

Esse anacronismo começou a ser corrigido com a permissão dada pelo então Ministro da Fazenda, Walter Moreira Salles (se me não engano no governo Juscelino) permitindo a venda de letras de importação com deságio de até 5% ao mês. O ministro se surpreendeu com o volume de recursos que existiam no mercado informal, e que não de transformavam em poupança para financiar investimentos produtivos em face da limitação das taxas de juros.

O outro passo importante na direção das livres taxas de juros foi dado pela SUMOC, quando o então Superintendente, Economista Dr. José Garrido Torres, criou as sociedades de crédito financiamento e investimentos, permitindo a elas a venda de letras de câmbio com deságio também (eufemismo para as taxas de juros) captando, assim recursos para financiamento de eletrodomésticos e veículos a prazo. Sem esse artifício de burla à lei da Usura, não teríamos essas indústrias até hoje.

A Lei da Usura (Decreto 22.626/33) é do ano de 1933, há 67 anos portanto (verdadeira múmia do século findante), quando não se possuia instrumento capaz de calcular taxas de juros efetivas que adota a forma geométrica ou exponencial. É que esse cálculo então se fazia com o uso de logaritmos, técnica matemática do conhecimento apenas de alguns poucos iluminados e de difícil aplicação ainda hoje, se o cálculo for feito manualmente. Com o advento das calculadores eletrônicas, esses cálculos passaram a ser feitos em segundos.

O cálculo das taxas exponenciais não apresenta , necessariamente e sempre, taxas superiores às taxas aritméticas, ou nominais. Por exemplo, se, cumprida a resolução do CMN/BACEN citada, no que tange à obrigatoriedade de menção das taxas efetivas anuais, uma taxa de 36% ao ano, em um contrato de seis meses, a taxa geométrica para esse período será de 16,62% enquanto a taxa aritmética, ou a juros simples, será de 18% no mesmo período.

Como espero ter deixado bem claro ao longo deste estudo, o problema está na magnitude das taxas de juros e não na forma de calcular.

De que adianta proibir a prática dos juros compostos (o conhecido anatocismo) se as taxas podem ser livremente pactuadas, conforme a lei, as normas do Conselho Monetário Nacional e a jurisprudência do E. STJ?

O autor deste estudo não tem a menor dúvida que a não permissão para a prática do anatocismo em pouquíssimos contratos (praticamente só no de cheque especial) é mais interessante para os bancos do que proibi-la.

Especialmente quando essa prática só pode ser reparada com o ingresso do prejudicado na Justiça, o que, como se viu, ocorre em ínfima percentagem das contas. Mais de 80% dos clientes com contas de cheque especial, como mostramos, se encontram em situação regular e apenas 3,1% com atrasos de mais de 90 dias.

É uma reflexão que proponho.

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Sobre o autor
Oziel Chaves

economista em São Paulo, perito judicial e auditor de contratos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Oziel. Aspectos financeiros do anatocismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 48, 1 dez. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/738. Acesso em: 29 mar. 2024.

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