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A socialização da teoria contratual e a interpretação dos contratos que regulam obrigações de resultado

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20/10/2005 às 00:00
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Infelizmente, o roubo de cargas nas rodovias brasileiras não pode mais ser invocado pelo transportador rodoviário como excludente de responsabilidade, pois não se pode dizer, nos dias de hoje, que é imprevisível.

Sumário: 1. Introdução; 2. As obrigações de resultado e a responsabilidade objetiva do prestador de serviços; 3. O caso fortuito e a força maior como formas excludentes de responsabilidade; 4. O roubo não pode mais ser considerado uma causa de excludente de responsabilidade para o prestador de serviços; 5. Conclusões.


1. Introdução

Entre os princípios fundamentais do Estado Democrático brasileiro, a Constituição Federal destaca a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV da Constituição Federal de 1988), que têm como objetivo proporcionar liberdade, justiça, solidariedade social e o bem comum, reduzindo, na medida do possível, as desigualdades (art. 3º, I, III e IV da Constituição Federal).

Nesse contexto, é possível dizer que as relações jurídicas constituídas entre os agentes econômicos do mercado de consumo (denominados pela Lei nº 8.078/90 de fornecedores e consumidores) sofrem a incidência tanto dos princípios gerais de ordem econômica, como dos direitos e garantias fundamentais. Nas palavras de Roberto Senise Lisboa, "as normas jurídicas devem ser aplicadas nas relações entre fornecedores e consumidores segundo o seu fim social (art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil), compatibilizando-se o avanço tecnológico e o desenvolvimento do mercado de consumo com a proteção patrimonial e bio-psíquica dos agentes econômicos do mercado de consumo (os fornecedores e os consumidores) e da sociedade como um todo". [01]

As modificações socioeconômicas proporcionadas pela massificação contratual e pelo avanço tecnológico acarretaram a necessidade de uma maior interferência do Poder Público sobre as relações privadas (dirigismo contratual) — chamado por alguns também de publicização do direito privado —, ao tempo que despertou na sociedade a necessidade de uma participação mais efetiva, ou seja, um anseio por medidas (que ordinariamente estariam afetas ao governo – privatização do direito público) adotadas no sentido de reencontrar o equilíbrio das relações jurídicas.

Nesse contexto, muitas relações obrigacionais sofreram alterações, alterando dogmas até então consideráveis como intransponíveis pela doutrina. Trata-se aqui da interpretação que se deve dar hodiernamente às causas excludentes de responsabilidade, em especial o caso fortuito e a força maior, diante da nova teoria contratual.

A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instrumento jurídico, para a qual, segundo afirma Cláudia Lima Marques, "não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também e principalmente os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância". [02]

À procura de um equilíbrio contratual, o direito passa, na sociedade moderna, a destacar o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade, ao tempo que a lei passa a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, ou seja, as expectativas e a boa-fé das partes contratantes.

A proposta deste trabalho é, portanto, com base na análise de precedentes judiciais, analisar a questão da boa-fé e da confiança nos contratos de resultado e discutir a possibilidade do contratado, em especial o prestador de serviços, se exonerar da responsabilidade de reparar danos nas hipóteses de inadimplemento.


2. As obrigações de resultado e a responsabilidade objetiva do prestador de serviços

Arnoldo Wald define obrigação, em sentido técnico, como "um vínculo jurídico de caráter patrimonial, que recai sobre uma pessoa, em benefício de outra, relativamente a um bem (coisa ou serviço) que se encontra no patrimônio do devedor" [03] afirmando que o conteúdo da obrigação deve ser uma prestação possível, lícita, determinada ou determinável e possuindo expressão econômica. Prossegue para afirmar que "a prestação é o comportamento do devedor que aproveita ao credor e por este pode ser exigido". [04]

Há obrigações em que o devedor se obriga tão-somente a usar a prudência e diligência normais na prestação de determinado serviço para atingir um resultado, sem contudo, se vincular a obtê-lo. Tem-se, nestes casos, o que a doutrina chama de obrigação de meio.

Analisaremos aqui, no entanto, somente as obrigações em que o devedor, especificamente o prestador de serviços, se compromete com o resultado útil perante o credor (consumidor), ou seja, com as chamadas obrigações de resultado.

Para Maria Helena Diniz, a obrigação de resultado "é aquela em que o credor tem o direito de exigir do devedor a produção de um resultado, sem o que se terá o inadimplemento da relação obrigacional. Tem em vista o resultado em si mesmo, de tal sorte que a obrigação só se considerará adimplida com a efetiva produção do resultado colimado. Ter-se-á a execução dessa relação obrigacional quando o devedor cumprir o objetivo final. Como essa obrigação requer um resultado útil ao credor, o seu inadimplemento é suficiente para determinar a responsabilidade do devedor, já que basta que o resultado não seja atingido para que o credor seja indenizado pelo obrigado". [05]

Nestes casos o simples inadimplemento contratual traz em si a presunção de dano para o credor, de modo que descumprida a obrigação, competirá ao devedor provar que a falta do resultado previsto não decorreu da sua culpa, mas de caso fortuito ou força maior, pois só assim se exonerará da responsabilidade.

Quando, em responsabilidade civil, se trata dos elementos do ato ilícito ou da responsabilidade subjetiva contratual, três são os elementos presentes: conduta culposa ou dolosa, o dano e o nexo de causalidade entre a conduta e o dano. No entanto, quando se trata da responsabilidade objetiva, prescindível a demonstração de culpa, basta o dano (que por vezes é presumido) e o nexo de causalidade.

Em se tratando de relação de consumo, à semelhança das obrigações de resultado, a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço é objetiva, ou seja, independe de culpa.

A responsabilidade decorrente do inadimplemento de uma obrigação de resultado, à semelhança do que ocorre com a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço é objetiva, estipulando-se a reparação de danos, tanto patrimoniais como morais, na tutela da própria Constituição de 1988 (art. 5º, V) e sem prejuízo de sancionamentos outros cabíveis.

Contudo, enquanto nas obrigações reguladas pelo direito civil há previsão expressa pelo legislador que o caso fortuito e força maior exoneram a responsabilidade pelos danos causados pelo devedor, o parágrafo terceiro do artigo 12 da Lei nº 8.078/90 estabelece que o fabricante, o construtor, o produtor, o importador só não será responsabilizado quando comprovar: que não colocou o produto no mercado; que embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

A questão que se coloca é quais são, de fato, as causas excludentes de responsabilidade que têm o condão de exonerar o prestador de serviços de reparar os danos decorrentes de uma obrigação de resultado, como, por exemplo, no caso do transporte de coisas. Questiona-se hoje, por exemplo, se o roubo de cargas em rodovias, quando o prestador de serviços não empreendeu esforços para afastar a ação dos criminosos, pode afastar a sua obrigação de indenizar os danos sofridos pelo consumidor.

A crise da pós-modernidade é uma realidade incontestável, que se caracteriza, entre outras formas, pelo pluralismo de fontes legislativas que regulam o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos. [06] Diante desse conflito aparente entre as regras contidas no Código Civil e a Legislação Consumerista, cabe ao intérprete analisar quais são as circunstâncias que podem exonerar a responsabilidade do prestador de serviços pelo inadimplemento contratual, ou seja, pelo descumprimento de uma obrigação de resultado.


3. O caso fortuito e a força maior como formas excludentes de responsabilidade

O artigo 393, parágrafo único, do Código Civil não faz distinção entre o caso fortuito e a força maior, definindo-os da seguinte forma: "o caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir".

Para Carlos Roberto Gonçalves, "o caso fortuito geralmente decorre de fato ou ato alheio à vontade das partes: greve, motim, guerra. Força maior é a derivada de acontecimentos naturais: raio, inundação, terremoto". [07]

No entanto, grande parte da doutrina entende que nenhuma diferenciação se estabelece mais entre os dois conceitos. Nesse sentido opina Agostinho Alvim [08], que entende sinônimas tais expressões, anotando, contudo, que não basta ao devedor provar sua qualidade de pessoa habitualmente cuidadosa, para se eximir do devedor de indenizar; cumpre-lhe evidenciar que, no caso concreto, tomou todos os cuidados, tendo feito tudo para cumprir a obrigação.

Na lição de Pontes de Miranda, "força maior diz-se mais propriamente de acontecimento insólito, de impossível ou difícil previsão, tal uma extraordinária seca, uma inundação, um incêndio, um tufão; caso fortuito é um sucesso previsto, mas fatal como a morte, a doença, etc". [09]

Entretanto, independentemente da conceituação que se pode dar aos institutos, fato é que nos termos em que essas excludentes são tratadas pelo art. 393, caput, do Código Civil, a distinção entre uma excludente e outra não tem nenhum sentido prático, pois o efeito da ocorrência tanto do caso fortuito, como da força maior, é o mesmo: se demonstrada a irresistibilidade, excluir o dever de reparar danos pelo devedor inadimplente.

Questão que se suscita é se o caso fortuito ou a força maior excluem, ou não, a responsabilidade pelo fato do produto ou serviço. Luiz Antônio Rizzato Nunes sustenta que, como o § 3º do art. 12 utiliza o advérbio "só", o rol ali indicado é taxativo, e não autoriza a inclusão dessas excludentes: "o risco do fornecedor é mesmo integral, tanto que a lei não prevê como excludente do dever de indenizar o caso fortuito e a força maior". [10]

No entanto, algumas hipóteses têm sido reconhecidas para exonerar a responsabilidade do prestador de serviços. É o chamado de "caso fortuito externo" [11], ou seja, aquele vício inevitável que ocorre depois que o serviço é colocado à disposição do consumidor.

Nessa linha, importante estabelecer a ressalva feita por Paulo R. Roque Khouri, que enfatiza que "o CDC, no seu artigo 8º, impõe ao fornecedor o dever da qualidade e segurança dos produtos e serviços. A quebra desse dever pode levar o fornecedor a responder pelos danos causados independentemente da existência de culpa". [12]

Considerando, portanto, que o fundamento que autoriza a responsabilização objetiva, em qualquer relação obrigacional, mesmo que não envolva a relação de consumo, é sempre o risco, o prestador de serviços não pode invocar em seu favor a excludente de responsabilidade (caso fortuito/força maior), quando não demonstrar que empreendeu todos os esforços no sentido de cumprir fielmente a obrigação contratual.

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4. O roubo não pode mais ser considerado uma causa de excludente de responsabilidade para o prestador de serviços

O contrato de transporte de coisas é, sem dúvidas, um contrato de prestação de serviços por meio do qual o transportador só cumpre efetivamente sua obrigação contratual quando entrega o bem que lhe foi confiado em perfeito estado ao destinatário final do serviço. Essa é a regra estabelecida pelo artigo 749 do Código Civil em vigor [13].

No entanto, a crescente violência que grassa o país tornou o roubo de cargas em rodovias brasileiras uma triste realidade conhecida de todos, em especial, dos empresários que atuam nessa área.

Pode-se dizer, infelizmente, que nos dias de hoje, o roubo não mais se revela um evento fortuito, apto a exonerar a responsabilidade do prestador de serviços, que ciente de suas obrigações, assume riscos deliberados e não se vale de cuidados mínimos para proteger a carga que lhe é confiada da ação de criminosos.

Fala-se aqui dos sistemas de rastreamento de veículos por satélite; escolta armada ou a contratação de empresas gerenciadoras de riscos para minimizar os efeitos da ação dos criminosos.

O prestador de serviços que compromete com o consumidor de seus serviços a transportar determinada carga de um local a outro e a adotar "todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado" (art. 749, CC) não pode se beneficiar da excludente de responsabilidade na hipótese de roubo quando não empreendeu esforços mínimos para evitar a ação dos criminosos.

Tal obrigação esbarra nos deveres de boa-fé e confiança que regulam a nova teoria contratual.

Retirou-se daqueles que exercem a atividade de transportar cargas nas estradas brasileiras a possibilidade de se invocar a imprevisibilidade — elemento necessário para se caracterizar a hipótese excludente de responsabilidade —, como bem destacado pelo Ministro Barros Monteiro da 4ª Turma do STJ ao julgar o Recurso Especial nº 138.127-SP (97/0044490-2), publicado no DJ 21.02.2000:

Ementa:

"SEGURO. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. ROUBO. FORÇA MAIOR. NÃO CARACTERIZAÇÃO SEGUNDO O ACÓRDÃO RECORRIDO.

- Negada pela decisão recorrida a ocorrência de força maior à falta do requisito da imprevisibilidade, entendimento contrário sustentado pela recorrente está a depender do reexame de matéria probatória. Incidência da súmula nº 07-STJ".

Voto:

(...) "o V. Acórdão reporta-se ao dever de guarda e custódia por parte da transportadora. Segundo a jurisprudência dominante, cabe à empresa incumbida do transporte de mercadorias proceder com as cautelas necessárias, a fim de que a carga seja entregue indene ao seu destino".

Hoje, aliás, o Código Civil vigente, dentro dessa triste realidade das rodovias brasileiras (independente do Estado da Federação em que seja realizado o transporte), traz a previsão que "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem" (artigo 927, parágrafo único).

Portanto, independentemente do consumidor exigir expressamente que o caminhão indicado pela transportadora seja equipado com sistema de rastreamento ou acompanhado por escolta, é dever do era dever da prestadora de serviços, por força da atividade que desenvolve, garantir que a carga chegue ao seu destino final incólume, valendo-se de todos os meios para que isso aconteça.

Demais, nunca é demais reiterar que "o transporte é obrigação de resultado e não pode quem assume tal incumbência safar-se da obrigação de reparar o dano escudado na ação criminosa de terceiros", conforme lembra o Juiz Roberto Stucchi do Extinto 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo (Ap. 339.991 – 7ª C. – j. 23.4.85), que se encontra na RT 597/129.

O que se defende hoje, é importante mencionar, não é a ação de caminhoneiros, no exercício de suas funções, combatendo assaltantes nas estradas, mas que as empresas transportadoras de cargas assumam a incumbência de disponibilizar, nos transportes que realizarem (principalmente quando expressivo economicamente for o valor da carga transportada, como no caso em tela), equipamentos e aparatos de segurança (ainda que tais despesas tenham reflexo no frete que é cobrado), para que possam afastar sua responsabilidade por eventos como este, demonstrando-se que todos os esforços foram empreendidos para, ao menos, inibir a ação dos criminosos.

Esse, aliás, é posicionamento que se solidifica no Superior Tribunal de Justiça, consoante voto do Ministro Aldir Passarinho Júnior, da 4ª Câmara, no RESP 433738 (2002/0025866-0), publicado no DJ em 17/02/2003:

"Meu entendimento a propósito coincide com aquele manifestado pelo ilustrado Juiz singular, Dr. Alberto A. Zvirblis, que julgou procedente a ação.

Muito embora a maioria dos eventos dessa natureza – assalto a mão armada – atraia a isenção da responsabilidade pela força maior, penso que essa interpretação merece tempero em certas circunstâncias, quando delas se possa extrair a previsibilidade do fato e ser ele inerente à natureza da atividade econômica desenvolvida.

No julgamento do REsp n. 402.227/RJ, em que era examinada questão de assalto em ônibus urbano, teci as seguintes considerações, verbis:

"Com efeito, nos grandes centros urbanos, os veículos coletivos constituem alvo de assaltos, ou seja, o crime é cometido em função do veículo de transporte e não de seus passageiros individualmente. Há, mesmo, quadrilhas especializadas nessa prática. De sorte que aí configura-se um tipo de exposição do indivíduo que provavelmente não ocorreria se estivesse só. Em tais circunstâncias, como o fato é previsível, até corriqueiro, o empresário do setor arca com o risco, que, lamentavelmente, passa a ser inerente a sua atividade, cabendo-lhe envidar os necessários esforços para minimizar tais eventos.

Assim, em princípio, tenho que há responsabilidade do transportador, decorrente do ônus contratual que assume para conduzir incólume seu passageiro ao destino. Quando isso não acontece em face de furto ou roubo, deve arcar com as conseqüências.

Apenas faço a ressalva de que tal responsabilidade pode ser atenuada ou excepcionalmente até desaparecer, quando, por exemplo, o passageiro se conduz de forma inesperada, irresponsável, não recomendada em situações dessa natureza, levando ao agravamento do perigo. É o caso das reações impensadas, amplamente desencorajadas pelas autoridades de segurança pública, ou qualquer outra atitude inconseqüente por parte do usuário do coletivo."

No caso dos autos, como visto, não se cuida de transporte coletivo, mas de carga.

Penso, no entanto, que sendo o roubo um acontecimento bastante comum desde muitos anos para cá, quem exerce a atividade de transporte de mercadorias conhece os riscos que lhe são próprios, entre os quais a possibilidade de perda da carga por assalto. E, em assim sendo, já considera eventos dessa ordem em seus custos, repassando-os ao consumidor, qual seja, o contratante do serviço. Se o transportador é mais cauteloso, como foi a hipótese aqui, faz um seguro, cujo prêmio, por outro lado, é, também, igualmente levado em conta no preço do frete.

A simples inevitabilidade do assalto não me parece suficiente para eximir o dever de reposição pelo prestador do serviço.

Assim, não vejo como isentar o transportador da responsabilidade pela perda da carga, ainda que por motivo de roubo, cabendo-lhe ressarcir o proprietário da mesma, que lhe confiou a sua guarda, para que pudesse seguir e chegar, incólume, ao destino.

Coloco-me, portanto, em respeitosa dissonância com a orientação da Colenda 3ª Turma, que sufraga a tese oposta, no sentido da isenção da responsabilidade do transportador por motivo de força maior, causado por fato de terceiro (cf. REsp ns. 164.155/RJ, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJU de 03.05.1999; REsp n. 56.912/RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU de 09.10.95; REsp n. 40.152/SP, rel. Min. Nilson Naves, DJU de 10.10.94).

Nesta 4ª Turma, encontram-se acórdãos no mesmo sentido acima, igualmente pelo afastamento da responsabilidade, vg, REsp ns. 43.756/SP, rel. Min. Torreão Braz, DJU de 01.08.1994; 160.369/SP e 109.966/RS, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU, respectivamente, de 21.09.1998 e 18.12.1998; 218.852/SP, rel. Min. Barros Monteiro, DJU de 03.09.2001).

Desse último julgamento (REsp n. 218.852/SP), observo que o voto do eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao acompanhar o ilustre relator, o fez por diferente argumentação, tendo S.Exa. salientado que se se tratasse de demanda entre a transportadora e o proprietário da carga, reconheceria a responsabilidade, mas não em ação regressiva, de seguradora contra a transportadora, eis que também para a autora o roubo seria um evento previsível dentro da sua atividade econômica.

É uma posição intermediária, mais elástica, porém, rogando vênias, não vejo motivo para a distinção, preferindo, consoante já afirmei acima, rejeitar, na espécie, indiferentemente, a isenção pela força maior. Efetivamente, se o risco existe, ele começa pela atividade da transportadora, onde se dá o sinistro, o roubo. E a seguradora da proprietária da mercadoria se subroga em seus direitos, de modo que não me parece razoável extingui-los apenas por ser a seguradora quem os reclama e não a titular da carga roubada, pois a lei não faz distinção sobre isso e os direitos são rigorosamente os mesmos: têm como origem o contrato de prestação de serviços de transporte.

Ademais, bastaria uma manobra jurídica para cair na hipótese da tese, bastando a ação ser intentada pela seguradora, mas figurando no pólo ativo a dona da carga, mediante acerto particular entre ambas.

Entendo, dessa forma, que o melhor é o puro e simples afastamento da força maior pelas razões acima expendidas, independentemente da pessoa do autor, se o proprietário da mercadoria ou a seguradora.

Vale registrar a preocupação, a propósito, já manifestada pelo douto Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, ao votar no REsp n. 164.155/RJ, quando afirma:

"Quanto a essa questão da força maior, a nossa jurisprudência já se encontra consagrada. Tenho até severas resistências a esse entendimento, porque, com o cenário de violência que estamos vivendo, será inviável obter qualquer indenização, uma vez que não existe nem nas grandes cidades assalto que não seja com essa configuração. Por outro lado, o Estado está imobilizado, sem condição de tomar providências adequadas para preservar a segurança pública".

Comungo, pois, do ponto de vista sufragado no REsp n. 50.129/RJ, de relatoria do ilustre Ministro Torreão Braz, assim ementado:

"RESPONSABILIDADE CIVIL. ESTRADA DE FERRO. MORTE DE PASSAGEIRO EM DECORRÊNCIA DE ASSALTO NO INTERIOR DE COMPOSIÇÃO FERROVIÁRIA. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR.

- O caso fortuito ou a força maior caracteriza-se pela imprevisibilidade e inevitabilidade do evento. No Brasil contemporâneo, o assalto à mão armada nos meios de transporte de cargas e passageiros deixou de revestir esse atributo, tal a habitualidade de sua ocorrência, não sendo lícito invocá-lo como causa de exclusão da responsabilidade do transportador.

- Inteligência do art. 17, par. 1º, do Decreto Legislativo n. 2.681, de 07.12.912.

- Ação julgada procedente. Indenização calculada de acordo com a esperança de vida prevista na tabela do Ministério da Previdência e Assistência Social.

- Recurso conhecido e provido."

(4ª Turma, unânime, DJU de 17.10.94)"

(grifamos)

Citando trabalho acadêmico do Ilustre Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Francisco César Pinheiro Rodrigues, tem-se que: "A tendência predominante nos Tribunais (RT 578/155, 597/129 e 571/128) é no sentido de não isentar as transportadoras de carga da obrigação de indenizar donos de mercadorias subtraídas em razão de furto ou roubo (assalto) por serem tais fatos previsíveis e não totalmente inevitáveis." [14]

Exercendo a transportadora atividade inerente aos riscos de sua atividade empresarial, deve ela suportar os ônus decorrentes desses riscos, mormente quando previsíveis e até mesmo esperados e, ainda, quando o evento danoso se insere num contexto em que fica bem caracteriza a ausência de cuidado da transportadora de bens.

A prestadora de serviços que não empreende esforços para realizar sua atividade empresarial com segurança desrespeita a função social do contrato na exata medida em que nada fez para minimizar os efeitos nocivos do descumprimento culposo das obrigações contratuais e, inclusive, põe em risco a vida de seus empregados.

O roubo, infelizmente, não é mais um evento imprevisível, inevitável e, mesmo, irresistível. Muito pelo contrário, o roubo é um fato absolutamente previsível e esperado e, senão irresistível, ao menos sujeito a certos controles e procedimentos que tenham por escopo diminuir os riscos de sua ocorrência ou minimizar seus efeitos negativos.

Sobre o assunto destaca-se o voto proferido pelo Ilustre Juiz Hélio Lobo Júnior da 9ª Câmara do Extinto Egrégio 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, na Ap. 759.540-4, julgada em 18.05.99:

"Deve ser lembrado, igualmente, que durante o transporte, corre por conta do dono o risco que as fazendas sofrerem, provenientes de vício próprio, força maior ou caso fortuito" (art.102 CC). Na verdade, os tempos atuais permitem certa perplexidade na verificação de conceitos, se confrontados com o cotidiano, mas a força maior refere-se a acontecimento que diligência alguma consegue superar, embora possa ser perfeitamente previsível. A hipótese dos autos melhor se adequaria ao caso fortuito, vale dizer, evento imprevisível e, por isso, inevitável. O roubo, no entanto, no momento em que vivemos, lamentavelmente, não pode ser considerado imprevisível. Pelo contrário, qualquer pessoa de bom senso sabe que o risco de um assalto está sempre presente em nosso Estado e, especialmente, na Capital. Basta ler jornais, assistir televisão, conversar com os amigos, para saber que o roubo é uma ameça constante a todos os cidadãos. Isso sem falar naqueles que já experimentaram na própria pele os efeitos desse crime, às vezes com resultados extremos. O roubo de cargas, por sua vez, parece ser um dos mais corriqueiros. Desconhecê-lo seria ignorar a realidade. Atualmente as empresas cultuam a segurança como uma necessidade imperiosa, para que possam se proteger e preservar o seu patrimônio, principalmente quando operam fatias do mercado favoritas para os ladrões. (...)

Há um velho ditado popular que diz: quem não tem competência não se estabelece. Isso quer dizer que a transportadora, ao se propor levar determinada carga ao destino, diante da obrigação de resultado que assume, deve considerar o risco do roubo, fato corriqueiro em nossos dias, objeto de crime organizado, fácil de se concretizar, providenciando, inclusive, seguro para os riscos de sua atividade, como aconteceu no caso vertente".

A decisão em destaque resume bem a essência deste trabalho, razão pela qual as palavras consignadas no voto do Ilustre Julgador devem ser tomadas de assalto, constituindo verdadeiro resumo do que se defende aqui, sendo as mesmas tidas como o caminho a ser trilhado pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras no que diz respeito ao assunto.

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Sobre o autor
Marcio Roberto Gotas Moreira

advogado em Santos (SP), especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP, mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Marcio Roberto Gotas. A socialização da teoria contratual e a interpretação dos contratos que regulam obrigações de resultado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 839, 20 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7431. Acesso em: 2 mai. 2024.

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