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Coação no direito civil

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04/12/2019 às 15:20
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Discute-se o vício da coação objetivando a anulação do negócio jurídico.

I – A VIS ABSOLUTA E A VIS COMPULSIVA: A COAÇÃO INVALIDANTE  

Tem-se da leitura do Código Civil de 2002:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens. Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela.

Art. 153. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito, nem o simples temor reverencial.

Art. 154. Vicia o negócio jurídico a coação exercida por terceiro, se dela tivesse ou devesse ter conhecimento a parte a que aproveite, e esta responderá solidariamente com aquele por perdas e danos.

Art. 155. Subsistirá o negócio jurídico, se a coação decorrer de terceiro, sem que aparte a que aproveite dela tivesse ou devesse ter conhecimento; mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos que houver causado ao coacto

A coação que aqui se fala não é a violência física, que exclui completamente a vontade e impede a formação do ato jurídico, mas a violência moral(vis compulsiva), que consiste em ameaças feitas a uma pessoa para constrangê-la a realizar um negócio jurídico. O coato poderia não ceder às ameaças e, se cedeu, é porque quis o ato jurídico, mas sua vontade foi perturbada na sua determinação por um motivo, a intimidação ou o terror (metus), que normalmente não existiria. A coação, como o dolo, era irrelevante no ius civile romano. Foi o pretor, em Roma, que a reprimiu. Mas não era toda forma de intimidação que tinha valor para o direito. Para que ela pudesse ser alegada, era preciso que o mal, contido na ameaça, fosse ilegítimo, como se vê do artigo 100 do Código Civil de 1916, que a ameaça se concretizasse em fatos, que fosse séria e capaz de impressionar uma pessoa dotada de uma certa firmeza; que o mal ameaçado fosse mais grave do que resultaria da realização do ato negócio jurídico e, finalmente, que entre a coação e a realização do negócio jurídico houvesse um nexo causal direto.

Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, ed. Bookseller, volume IV, § 458) ensinou que “posta da parte a vis absoluta, que é ação de A, agente, por “meio” de B, paciente – a coação é a presença da violência ou intimidação, que faça B praticar o que A sugere. A ação é de B: A não age, servindo-se de B; A coage.

A coação já é ato de B, mas é preciso que tenha havido, também, o ato de A, sem o que não haveria coação”. Se não há ato de A, coação não há. Por isso mesmo, a manifestação de vontade, que se dê por influência de outrem, sem haver violência ou intimidação, não atinge a validade do ato jurídico. Também é preciso que A tenha agido contrariamente a direito. Se agiu de conformidade com o direito, ou exercendo direito, pretensão, ação, ou exceção, regularmente, a violência, ou intimidação, que haja causado, não é ilícita, não é ato, que possa suscitar a invalidade do ato de alguém.”

Pontes de Miranda ainda adverte que a vis absoluta exclui a suficiência do suporte fático. Vis absoluta é ação; não é coação. O constrangido, nela, é instrumento de quem constrange; o constrangido não age, nenhuma ação ou parcela de ação e sua. O absolutamente constrangido não quer; o coato, o relativamente constrangido, quer, a despeito do constrangimento. Paulo, na L. 21, § 5, D, quod metus causa gestum erit, 4,2, aludiu ao que coativamente quer.

Enquanto na vis absoluta, o constrangido não poderia querer, tem ele, na coação, a escolha entre sofrer o dano, de que se lhe ameaça, ou alguém de sua autoria, e manifestar a vontade.

Para que haja a coação invalidante é preciso que se tenha dado o fato de alguém influir na prática do ato jurídico por outrem; que a isso só se decidiu por ter havido ameaça de dano se não se manifestasse a vontade, que seria necessária à entrada do suporte fático no mundo jurídico. Vis compulsiva, diz-se, porque alguém coage, compulsa, empurra justamente. Por isso, coactus voluit. Se eliminado fosse, haveria vis compulsiva, a só aparência de ato do constrangido.

Disse assim Pontes de Miranda que “no sistema jurídico brasileiro, a sanção para a vis absoluta é a pré-exclusão(o ato jurídico não é), para a vis compulsiva, a anulabilidade.”

O mal receável não precisa ser presente. O medo, sim.

O dano futuro, com que se intimida, pode ser ao corpo, à vida, à integridade física ou moral, à liberdade, à honra, a quaisquer direitos da personalidade, ou ao patrimônio. O coactor, membro da família, ode coagir invalidamente se ameaça com suicídio, ou destruição do bem.


II – O MAL RECEÁVEL

No direito alemão, como indicou Pontes de Miranda, discutiu-se se era preciso, ou não, esse pressuposto de equiponderância ou preponderância do mal receável em relação ao mal que a prática do ato jurídico acarreta. Afirmando: Endemann, Windscheid, dentre outros. Contra: Plank, dentre outros. O Código Civil de 1916, no artigo 98, deu solução explícita. Assim tinha-se:

Art. 98. A coação, para viciar a manifestação da vontade, há de ser tal, que incuta ao paciente fundado temor de dano à sua pessoa, à sua família, ou a seus bens, imi-nente e igual, pelo menos, ao receável do ato extorquido.

No Código Civil de 2002, artigo 151, caput e parágrafo único:

Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.

Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.

Tem-se com relação ao artigo 152:

Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela.

Repele-se no sistema jurídico brasileiro a ideia de homem razoável, homem comum e outros conceitos abstratos. A apreciação é em concreto.

Que atos são anuláveis por vis compulsiva?

A esse respeito disse Pontes de Miranda(obra citada, pág. 426):

“Quem “compõe” obra científica, literária, ou artística, absolutamente forçado, não compôs. Quem foi coagido, é certo que a compôs, e não há pensar-se em anulação. Basta a declaração e a prova da coação para que nenhum efeito jurídico produza o fato jurídico. Nem se anula, por vício de coação, a aquisição originária da posse; posse que se adquiriu violentamente(vi) é posse viciada, porém não é anulável a aquisição, porque o ato de adquirir é fato, e não ato jurídico stiscto sensu, nem, a fortiori, negócio jurídico; nem se anula o abandono da posse, nem a ocupação, nem o descobrimento do tesouro, nem o achádego.”

Prosseguiu Pontes de Miranda (obra citada, pág. 427) ao ensinar: “Quando A toma posse de coisa, ameaçando a B de disparar o revólver, B perde a posse e A e adquiri(mundo fático) embora viciado pela violência(vi); não se pode pensar em transmissão da propriedade, porque nenhum acordo houve nesse sentido; se A força a B a assinar contrato de venda e compra e acordo de transmissão da propriedade, o contrato e o acordo são anuláveis, não a tomada da posse. A tomada da posse, com arma, ou, em geral, violenta, e a tomada de posse pelo ladrão, ou em geral, a tomada clandestina da posse, são fatos do mundo fático, e equivalentes. O ladrão sabe que está fora do mundo jurídico como o esbulhador por violência”.

Se A forçou a B a que lhe pagasse e B devia, realmente, a A, pagamento houve, que é ato-fato jurídico; e não há pensar-se em anular o pagamento, alude Pontes de Miranda. Se B exigiu, com violência, de A quitação, sem ter pago, ou não tendo solvido por outro modo, A pode demandar a B pela anulação da quitação, porque quitação não é ato-fato jurídico.

Se o meio é contrário ao direito, a coação também o é.

Se o fim é contrário a direito, a coação é contrária a direito e pode dar-se, até, ilicitude do ato jurídico ou isso é ilícito penal.

O simples temor reverencial não justifica a coação. Do mesmo modo, a quem está no exercício normal do direito. O temor reverencial se caracteriza pelo receio do agente de desagradar os pais ou outra pessoa a quem se deve respeito, como outros familiares, sacerdotes ou pessoas do convívio íntimo.

Mas, diga-se que a intimidação por meio de exercício de direito, pretensão ou ação pode ser invalidante, se tal exercício de direito, pretensão ou ação pode ser invalidante, se tal exercício é contrário a direito.


III – SÍNTESE

“Em síntese, como expôs Roberto de Ruggiero(Instituições de direito civil, volume I, 3ª edição, pág. 231), das duas formas porque se pode exercer coação sobre uma pessoa, apenas interessa a violência moral ou vis compulsiva que, dirigindo-se a extorquir uma declaração, vicia a vontade sem a excluir, e não a violência física ou vis absoluta, que exclui completamente a vontade, tirando ao violentado qualquer possibilidade de querer e impedir assim a existência do próprio negócio jurídico. A violência moral, consistindo na ameaça de um mal que sucederá ao ameaçado se ele não praticar o ato, opera apenas psicologicamente, gera com o temor que se incutiu um estado de não completa liberdade na pessoa, mas não suprime a vontade, uma vez que deixa sempre a escolha entre o mal ameaçado e a declaração.

Necessário, pois, para que ocorra a coação:

  1. Que a ameaça seja verdadeira e séria e não apenas suspeitada, o que implica que o temor incutido seja fundado na suposição verossímil de que o mal de que se ameaçou seja na verdade praticado. Esse mal pode ser futuro;
  2. Que a violência seja injusta, isto é, adotada ilegitimamente, quer pela relação em que as partes estão entre si, quer pelo fim que visa;
  3. Que o mal de que se ameaçou seja grave ou notável.

 Como ensinou Caio Mário da Silva Pereira(obra citada, pág. 365), “no caracterizar a coação, se bem que frequentemente provenha daquele a quem a declaração da vontade beneficia, admite-se que possa partir de um terceiro, sem se desfigurar como defeito do consentimento. É, pois, diferente o comportamento do legislador quanto à violência e ao dolo, de vez que este não vicia o ato, quando partido de terceiro, senão na hipótese da ciência do beneficiado, ao passo que aquela o macula sempre. Procurando uma explicação moral para a diversificação de tratamento, alguns autores dizem que se acha no fato de ser mais difícil defender-se da violência do que do dolo, que pode ser evitado pela maior prudência e perspicácia da vítima, enquanto que geralmente não há oposição à coação.

O que varia é a extensão da responsabilidade da pessoa a quem o ato jurídico vai beneficiar. Se tiver conhecimento do processo intimidativo, responde solidariamente com o coator pelas perdas e danos que sofrer a vítima, se, ao revés, o desconhece, somente o coator os suporta, podendo-se, em resumo, dizer que o defeito do ato negocial existirá sempre, mas as suas consequências patrimoniais somente repercutem no beneficiado se estiver de má-fé, já o terceiro coator, é em uma ou outra hipótese responsável pelas perdas e danos, como o autor de um ilícito”.

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Não será necessário que a ameaça se dirija diretamente a pessoa do paciente. Pode este ser ameaçado, indiretamente, de um dano que atinja o seu patrimônio, ou a uma pessoa de sua família.

Que se dirá nos casos de exposição daquele que se encontre em perigo eminente. Será o caso daquele dono da embarcação que faz água que se compromete a remunerar de forma desarrozoada a quem o leve ao porto, por exemplo. Não há incidência da vis compulsiva. O favorecido não extorquiu a emissão de vontade sobre ameaça de um dano, porém aproveitou-se de um risco a que a vida ou a fazenda do agente estava exposta, para obter uma vantagem. Não realizou um processo de intimidação, mas auferiu benefício por via de um dolo de aproveitamento, que entra na composição do chamado “estado de perigo”.  


IV – A CONFIRMAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO ANULÁVEL

Trata-se de negócio jurídico anulável sobre o qual cabe a aplicação do que segue:

Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro.

Art. 173. O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa de mantê-lo.

Art. 174. É escusada a confirmação expressa, quando o negócio já foi cumprido em parte pelo devedor, ciente do vício que o inquinava.

Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que contra ele dispusesse

A ratificação é negócio jurídico unilateral, oriundo de manifestação de vontade não receptícia. Discute-se se a ratificação pode ser posterior ao exercício da ação de anulação. Respondeu de forma afirmativa R. Schlottmann. O que não se pode dar é a ratificação após o trânsito em julgado da sentença constitutiva negativa; até isso ocorrer, é possível a ratificação.

A ratificação é irrevogável.

Para ratificar, é preciso que, no momento, à pessoa, que vai ratificar, possa pedir a anulação, ou que a ação esteja apenas prescrita.

Sendo assim a ratificação, que se refere a ato jurídico anulável, é, portanto, a manifestação de vontade, não-receptícia, que retira o defeito, ou o possível defeito do ato jurídico anulável. É ato jurídico de que resulta a extinção do direito de pedir a anulação.

A ratificação é negócio jurídico, cujo suporte fático se pode compor de declaração de vontade, ou por ato ou atos voluntários que impliquem vontade de ratificar o ato jurídico anulável.

No direito brasileiro, não há ratificação tácita do ato jurídico anulável, salvo por ato de adimplemento, total ou parcial.

A faculdade de ratificar só pertence a quem é titular da ação de anulação, se podia praticar o ato jurídico, que exsurgisse anulável e de acordo com as exigências legais, se as há. O titular é o que praticou o ato jurídico anulável, ou o herdeiro ou outro sucessor. Quanto aos testamentos, a ação pertence aos interessados, em vez de ao testador.

Alerte-se que os negócios jurídicos nulos não se podem convalidar, sendo lógico que o seu estado inicial se prolongue para sempre, somente empurrado para a não-existência pela decisão, ou pelo ato dos figurantes, que aí é menos contrarius consensus do que reconhecimento, sem se identificar com esse em sua espécie puramente declaratória.

Já a anulabilidade, caso da coação, não impede a eficácia.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Coação no direito civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5999, 4 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74749. Acesso em: 20 abr. 2024.

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