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Análise do instituto do promotor natural em acórdão do STJ

09/12/2019 às 14:05
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O impetrante, no caso apresentado, por meio de habeas corpus, pretendia a nulidade, a ser declarada de ofício, do processo, com base no fato de terem sido atribuídos às fases processuais três integrantes do MP estranhos à comarca.

INTRODUÇÃO

Trata-se de habeas corpus (Habeas Corpus No 332.583-SE) - impetrado em favor de Antonio Ferreira de Matos Filho, apontando, como autoridade coatora, o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe e decidida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, estando ausentes, justificadamente, dois de seus Ministros, no dia 9 de agosto de 2016.

Depreende-se dos autos que o paciente, juntamente com seu alegado coautor Wilton Nogueira haveriam cometido três homicídios qualificados e, conexos a estes, delitos de sequestro e ocultação de cadáver no território de jurisdição da Comarca de Cícero Dantas, no Estado da Bahia. No entanto, foram trazidos a juízo perante o Tribunal do Júri na Comarca de Laranjeiras, no Estado de Sergipe, após desaforamento, nos termos do art. 427 do Código de Processo Penal, concedido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, que deslocou os autos para esta Comarca, a partir da Comarca de Itabaiana, neste mesmo Estado. A Comarca de Itabaiana se situa no território de domicílio dos réus e também onde exerciam sua atividade profissional em vínculo com a Administração Pública do Estado. 

Condenado, o paciente arguiu, em apelação interposta ao Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, a nulidade do processo, alegando a incompetência do juízo de primeiro grau, fundando-se no art. 70 do Código de Processo Penal, que versa que, de regra, a competência será determinada pelo lugar em que se consumar a infração. Desta feita, aduziu o paciente que a Justiça do Estado de Sergipe seria incompetente para processar e julgar os crimes a ele imputados, uma vez que estes haveriam sido cometidos no Estado da Bahia, devendo os autos serem remetidos à Comarca de Cícero Dantas. Alegou ainda o paciente o descumprimento do princípio do promotor natural, citando a participação de promotores de outras Comarcas que não a de Itabaiana. Tendo seu recurso desprovido por aquele Tribunal, impetrou writ de habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, reproduzindo as mesmas alegações quanto à incompetência territorial e violação do princípio do promotor natural.


DESENVOLVIMENTO

Primeiramente, o Ministro Relator Nefi Coelho apontou a inadequação, sedimentada em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, da utilização do habeas corpus em substituição a recursos especiais, ordinários ou de revisão criminal, o que não afasta a competência da Corte para concedê-lo face a comprovação de ilegalidade, abuso de poder ou teratologia. Neste diapasão, passou o Ministro Relator a analisar as questões suscitadas.

Debruçando-se sobre a alegação de incompetência territorial do juízo da Comarca de Itabaiana, bem como do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, o Ministro Relator Nefi Coelho apontou para o fato de que a competência territorial é relativa e prorrogável. Nisto, ele se encontra em consonância com a doutrina processual brasileira, conforme se pode depreender do enunciado de Fredie Didier Jr.: 

No Direito brasileiro, as regras de competência territorial submetem-se, normalmente, a um regime jurídico dispositivo, de modo que a incompetência territorial é considerada como um defeito que somente pode ser invocado pelo réu, que deve fazê-lo no primeiro momento possível, sob pena de preclusão. (DIDIER JR, 2017: 244)

Assim, deixando de arguir o réu, na resposta-acusação, a incompetência territorial do foro no qual foi oferecida a denúncia, ocorre a preclusão deste direito e prorroga-se a competência ao foro em questão. 

No caso em tela, conforme relata o Ministro Nefi Coelho, consta dos autos que o paciente não fez uso de seu direito de alegar a incompetência da Comarca de Itabaiana em sua resposta-acusação, havendo este, portanto, sofrido os efeitos da preclusão. Sendo assim, considerou o Ministro Relator improcedente a alegação do paciente e seu pedido de deslocamento dos autos para a Justiça do Estado da Bahia.

Quanto à alegação, por parte do impetrante, de ofensa ao princípio do promotor natural - visto que foram designados vários integrantes do Ministério Público estranhos à Comarca, para atuação nas diversas fases processuais -, defendendo este que o promotor natural seria o de Laranjeiras, notamos percepção errônea sobre o princípio, tal como defende o voto do relator.

O princípio do promotor natural é percebido implicitamente no mesmo artigo constitucional que dispõe a respeito do princípio do juiz natural e sobre a vedação da criação de um tribunal de exceção, a saber, os incisos LIII e XXXVII do artigo 5º. Entretanto, dada a unicidade e indivisibilidade do Ministério Público, com cada membro representando-o como um todo, de forma diversa do que ocorre na divisão de competências do Judiciário, o princípio em destaque não se desenvolve da mesma maneira que o princípio do juiz natural, embora sejam extensões um do outro.

Apesar de já bastante pacificado na doutrina e na jurisprudência atual, há autores que afirmam a inexistência do “promotor natural”. Estes, comumente, baseiam seu ponto de vista no fato de o princípio não estar explicitado no ordenamento jurídico brasileiro, podendo ser depreendido apenas implicitamente de legislação constitucional e infraconstitucional, além do argumento comum de que não constitui direito subjetivo do réu poder “escolher” quem o acusa. Os argumentos apresentados, porém, partem do mesmo pressuposto erroneamente alegado pelo impetrante no acórdão em questão. Nesses termos, realmente não se configura “promotor natural”. O princípio, em verdade, não se comporta da mesma maneira que o princípio do “juiz natural”. Visto que o Ministério Público é uno e indivisível, podendo cada um de seus membros representá-lo em sua integridade - como já mencionado -, não caberia mesmo falar na possibilidade do réu de “escolha”. “Promotor natural”, portanto, referir-se-ia, na verdade, ao direito público subjetivo do réu de, além de conhecer quem o acusa, que este lhe seja delegado em conformidade com as normas do direito processual, vedando-se a configuração de um tribunal de exceção, e, portanto, práticas como a designação de membro do Parquet ad hoc, mediante manipulações casuísticas e em desacordo com os critérios legais pertinentes.

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O impetrante, no caso apresentado, por meio de habeas corpus, pretendia a nulidade, a ser declarada de ofício, do processo, com base no fato de terem sido atribuídos às fases processuais três integrantes do MP estranhos à Comarca de Laranjeiras, Comarca para a qual fora feito o desaforamento, utilizando-se do princípio do “promotor natural”. Ora, como já explicitamos, este não se apresenta da mesma maneira que o princípio do juiz natural, sendo lícito ao Ministério Público até mesmo trocar seus agentes, desde que de acordo com as normas do processo, visto serem substituíveis em suas atribuições. Cabe, a esse respeito, ressaltar o presente na Lei Orgânica do Ministério Público, que dispõe, “dentre as competências do Procurador-Geral de Justiça, a designação de seus integrantes para, por ato excepcional e fundamentado, exercer as funções processuais afetas a outros integrantes da instituição, submetendo sua decisão previamente ao Conselho Superior”. 

Dessarte, o preceito entendido pelo impetrante como próprio ao princípio do “promotor natural” não corresponde ao aceito amplamente pela doutrina e jurisprudência brasileira, a saber, o de que o réu possui o direito público subjetivo de conhecer quem o acusa e de que este o acuse de forma fundamentada e de acordo com um ordenamento jurídico democrático, vedando-se o tribunal de exceção. Sua alegação faz-se, assim, ineficaz, visto que a mera constatação da presença de membros do Ministério Público estranhos à Comarca não configura nulidade imediata, que possa ser declarada de ofício, mas sim nulidade relativa, somente acolhível diante de prejuízo comprovado da defesa e, mesmo assim, com momento próprio para ser suscitada, sob pena de preclusão. Daí a afirmação do relator de que o impetrante “não se desimcumbiu de demonstrar que a designação ora impugnada se deu para fins de manipulações casuísticas ou por critérios políticos, ou até mesmo em desacordo com o regramento legal pertinente” (como consta do Acórdão).


CONCLUSÃO

Trata-se de decisão acertada por parte do Superior Tribunal de Justiça. Diante de uma série de incongruências e inconformidades com o campo geral da doutrina e da jurisprudência processual, como a proposição de habeas corpus no lugar dos recursos ordinário e especial, o requerimento de nulidade baseando-se em incompetência territorial sobre o qual mostrou-se precluso o direito, bem como o pedido de nulidade infundadamente baseado no princípio do “promotor natural”, o writ demonstra-se quase como um último fôlego do réu, com intuito meramente protelatório dos dias de liberdade - visto que o HC não demonstra ilegalidade, abuso de poder ou teratologia.


BIBLIOGRAFIA

DIDIER JR, Fredie, Curso de Direito Processual Civil - Vol.1. 19ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

CORDEIRO, Taiana et. al. Princípio do promotor natural. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42617/principio-do-promotor-natural. Acesso em: 13/06/2018.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, Walter. Análise do instituto do promotor natural em acórdão do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 6004, 9 dez. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74933. Acesso em: 20 abr. 2024.

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