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Proteção jurídica dos animais.

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07/02/2020 às 14:53
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Este estudo busca analisar o histórico da experimentação animal, desde o início do domínio do homem até o quadro atual de experimentação com animais não humanos para fins de pesquisa cosmetológica.

1 INTRODUÇÃO

A indústria estética vem se modernizando cada vez mais. A base científica se amplia e a tecnologia se torna infinitamente superior a cada ano. Tendo em vista que descobertas científicas geralmente são feitas de modo empírico, é imprescindível que testes sejam realizados. O modelo animal, na atualidade, é utilizado nos mais diversos campos de pesquisa: biologia, como nos próprios cursos de graduação, por exemplo, usando animais para dissecação; medicina e farmácia, ao testar medicamentos e cosméticos em busca de melhorar a condição de vida do ser humano; psicologia, como por exemplos os chimpanzés utilizados em testes comportamentais; a indústria alimentícia, entre outros, nos quais o fenômeno observado, em um ou mais aspectos, seja semelhante ao que ocorreria em seres humanos.

Em 2008, no Brasil, foi sancionada a lei 11.794/08, vulgarmente conhecida como Lei Arouca, que estabelece os procedimentos para o uso científico de animais, atendendo aos anseios da comunidade por uma regulamentação a respeito do tema. Na mesma lei é regulamentado, também, o uso de animais para fins educacionais e práticas agropecuárias. Define-se o conceito de “procedimentos de fim científico”, o que gera, desde o início, restrição à prática. No artigo 13 da lei 11.794/08, em seu § 5o , tem-se que “Experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolver-se-ão sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas” (BRASIL, 2008). No mesmo artigo, no § 8o , consta que “É vedada a reutilização do mesmo animal depois de alcançado o objetivo principal do projeto de pesquisa” (BRASIL, 2008). Assim, alguns limites já vem sido impostos, mesmo que o caminho ainda seja longo.

É cada vez mais perceptível uma preocupação entre os cientistas que realizam os procedimentos e a população em geral sobre a segurança do uso dessas tecnologias e os efeitos que elas teriam sobre a dignidade de humanos e animais, assim como o seu impacto sobre o meio ambiente.

A experimentação animal é um tema de interesse público, tanto para o âmbito de cientistas, que dizem ser necessária para o desenvolvimento humano, quanto para o lado de ativistas, que alegam o oposto. Muito já se entende sobre o organismo dos animais, também chamados de sencientes, ou seja, seres capazes de sentir, de vivenciar sentimentos como dor, angústia, alegria, perigo, solidão, entre outros. São, tecnicamente falando, seres que possuem o sistema nervoso central desenvolvido. Desta forma, a experimentação constitui uma forma violenta de atingir os animais, que sentem dor da mesma forma que os seres humanos. Enfim, a dignidade animal é construída quando se entende que, se os animais são tão semelhantes aos seres humanos, talvez não devessem ser usados para tal fim.

Atentando para a ideia de que, se animais são considerados similares à espécie humana para que sejam usados em testes nas mais diversas indústrias, pode-se compreender, também, que animais também sofrem, sentem dor, alegria, angústia, desespero, tristeza, desejo. Tal prática, fazendo um paralelo, poderia ser considerada uma violação dos direitos dos animais, da mesma forma que seria uma violação aos direitos humanos caso indivíduos da espécie humana fossem utilizados para testes contra a sua vontade.

Animais devem ser respeitados porque possuem o direito de serem tratados de forma digna. A imposição constante de sofrimento animal através de testes, que se entende muitas vezes desnecessários – especialmente neste trabalho, que tratará especificamente da indústria cosmética – viola tal dignidade. Atualmente, outros meios para verificar a toxicidade de produtos já estão disponíveis, entretanto milhares de animais continuam a ser usados por ano para testar produtos industriais. 

O direito dos animais de terem um tratamento digno é violado quando os mesmos são utilizados para fins comerciais para ganho humano. Animais devem ser respeitados pois, afinal, entende-se que humanos também são, de certa forma, considerados animais.

Verifica-se, na Constituição Federal, o Estado Democrático de Direito pela promoção do bem comum; pelo combate ao preconceito de raça, cor, origem, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). Daí advém o sentimento social de justiça, onde as leis devem ter conteúdo e adequação social e o Estado, conseqüentemente, deve estar a serviço do bem comum, ou seja, assegurar a dignidade da pessoa humana.

Segundo a FDA (Food And Drug Administration), agência que fiscaliza e regula todos os produtos que adentram os Estados Unidos, no que diz respeito aos cosméticos, é dito que se deve buscar meios alternativos humanos e os cientificamente comprovados como menos cruéis, para evitar sofrimento desnecessário aos animais, além de que os mesmos só serão usados, de preferência, quando não houverem meios alternativos ao seu uso para garantir a segurança dos produtos para uso humano (FDA, 2015).

Cada vez mais, pode-se notar uma preocupação geral com o bem estar dos animais. Esses seres que tantas pessoas tem em casa foram capazes de construir uma compaixão e um cuidado que vai além dos muros de cada residência. Assim, ao ser exposta a realidade dos testes com animais realizados na indústria, a revolta da população vem gerando cada vez mais mudanças, forçando muitas empresas a abolir a prática. As pessoas, cada vez mais, enxergam os animais como “parte da família”, como semelhantes. Assim, é notável a crescente preocupação dos consumidores e da indústria em relação aos testes em animais para a indústria cosmetológica e estética. Empresas de menor porte tem conseguido abolir as práticas com maior facilidade se comparadas a empresas maiores, pois estas segundas buscam ingredientes novos para promover inovação científica, e por isso realizam os testes, apesar da existência de meios alternativos para tanto.

Finalmente, o objetivo deste trabalho é, primordialmente, analisar a existência de uma dignidade a ser atribuída aos animais no direito contemporâneo, que limite a experimentação para fins estéticos, além de analisar o contexto histórico da experimentação animal e da indústria cosmética, buscando entender como um influencia no outro desde a antiguidade Também serão apontados os principais marcos e experimentos realizados com animais para fins estéticos e cosmetológicos na história, bem como os limites e soluções para preservar a dignidade animal sem prejuízo dos interesses e da qualidade de vida humana, como os métodos alternativos.

O método utilizado neste trabalho consiste em investigar acontecimentos e processos do passado para verificar a sua influência na sociedade de hoje, pois as instituições alcançaram sua forma atual através de alterações de suas partes componentes, ao longo do tempo, influenciadas pelo contexto cultural particular de cada época. Seu estudo, para urna melhor compreensão do papel que atualmente desempenham na sociedade, deve “[...] remontar aos períodos de sua formação e de suas modificações” (LAKATOS; MARCONI, 2003).

Utilizou-se também de leituras de bibliografias acadêmicas com foco na área de proteção jurídica dos animais, sempre priorizando a busca pela área de experimentação científica.  Acredita-se que com esta pesquisa seja possível perceber a importância de discutir a respeito do tema da experimentação animal, que se torna cada vez mais presente no cotidiano.


2 A EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL E A INDÚSTRIA COSMÉTICA NA HISTÓRIA

A prática da experimentação animal perdura devido a seu extenso e antigo respaldo científico, mesmo que não seja livre de falhas – e tal afirmação será discutida mais à frente. De acordo com a Comissão Europeia (2017), os testes em animais para produção de cosméticos ocorrem principalmente porque, a cada ano, milhares de novos cosméticos e produtos de uso doméstico chegam ao mercado. Em muitos países, todos esses novos produtos são testados em animais e, algumas vezes, são testados apenas os ingredientes individualmente inseridos na composição. Isto posto, em alguns países como a China, produtos e ingredientes que já passaram pelos testes são submetidos novamente como requisito para serem utilizados no país.

Este capítulo pretende demonstrar o contexto histórico que gerou o surgimento dos experimentos envolvendo animais, desde o início da sua relação dos animais com a espécie humana, até como os testes em animais se apresentam atualmente. Também será analisada a história dos cosméticos desde a antiguidade e sua influência cada vez mais expressiva sobre a sociedade contemporânea, além de ter estabelecida sua relação com os testes científicos em animais. Por fim, resta necessário destacar o surgimento de dispositivos legais que visam regular ou mesmo abolir a prática da experimentação animal. A existência destes dispositivos se faz cada vez mais presente no ordenamento jurídico nacional e internacional, visando a realização cada vez menos frequente de testes em animais e buscando, eventualmente, sua abolição.

2.1 Antecedentes históricos, conceito e delineamentos acerca da experimentação animal 

Existem pensamentos filosóficos que se fundamentam no conceito antropocêntrico de que o homem é a medida de todas as coisas, é o centro do universo, como se constata nas escolas filosóficas do romantismo, do humanismo e do racionalismo (DIAS, 2000). Com base na concepção religiosa, a civilização ocidental sempre manteve uma relação de domínio com os animais:

Segundo o judaísmo e o cristianismo, o que legitimaria os seres humanos a serem senhores do mundo é o fato de terem sido criados à imagem e semelhança de Deus, que determinou explicitamente que os humanos usufruíssem de todos os animais e plantas existentes (OST, 1995, p. 21).

Historicamente, o ser humano, que possuía um sentimento de medo e admiração pelo mundo selvagem, de verdadeira inferioridade perante os animais nas culturas primitivas, de considerar os animais selvagens como espíritos poderosos e verdadeiros deuses, para uma postura de domesticar, artificializar e humanizar a natureza. Desse modo, os animais selvagens perderam, aos poucos, a condição de espíritos poderosos, pois se tornou difícil admirar, temer ou endeusar o que já era tão facilmente controlado pelos próprios humanos (SAGAN, 1998).

Os animais acompanham a humanidade em sua história, numa relação milenar de benefício, domínio, sobrevivência e subordinação. No início os animais eram utilizados como alimento e vestuário. Os humanos logo passaram a domesticar os animais, para que deles pudessem obter alguma vantagem. A partir deste momento, os animais ganhavam abrigo, comida, proteção e, em troca, os humanos recebiam companhia, ajuda no trabalho e transporte. Havia, pela primeira vez, “um vínculo de benefício recíproco entre humanos e animais” (SANTOS, 2014, p. 28).

Sinteticamente, na linha temporal, os animais perderam a condição inicial de seres superiores, sagrados, devido à sua domesticação, e, em fase posterior, aliado ao fundamento religioso, seguido pelo desenvolvimento do pensamento humanista. Os animais, a partir da sua domesticação, foram utilizados para não só satisfazer as necessidades básicas humanas, como alimentação, vestuário, transporte, diversão e companhia, mas como também para pesquisa científica, dentre outras (FAGUNDES; TAHA, 2004, p. 59).

O uso de animais na busca de melhores condições de vida para a espécie humana, segundo os autores Théz e Greif (2000, p. 20), “remonta aos tempos em que não havia uma clara distinção entre religião e ciência”. A experimentação animal, como é conhecida atualmente, surgiu a partir da prática conhecida como vivissecção, termo que será devidamente explicado posteriormente. A utilização de animais no campo do conhecimento médico remete à Grécia Antiga (aproximadamente 450 a.C – antes de Cristo), onde Aristóteles e Hipócrates obtiveram seus conhecimentos sobre o corpo humano por meio da dissecação de animais, expressos, respectivamente, nas obras Historia Animalium e Corpus Hippocraticum (GOMEZ; TOMAZ, 2007). Posteriormente, Galeno (129-210 d.C – depois de Cristo), em Roma, talvez tenha sido o primeiro a realizar vivissecção com objetivos experimentais, ou seja, “testar variáveis através de alterações provocadas nos animais” (TRÉZ; GREIF, 2000, p. 20).

Tais práticas se difundiram principalmente devido à crença de que os animais seriam incapazes de sentir. Segundo René Descartes (2009, p. 91 e ss), os animais, por não possuírem razão, linguagem nem alma, seriam seres autônomos, máquinas, e como tais, destituídos de sentimentos e, consequentemente, destituídos também da capacidade de sentir dor e sofrimento. Tal teoria é utilizada até os dias atuais para fundamentar o uso dos animais pela ciência. Por conta disso, Sônia Felipe (2007, p. 41) afirma que “os experimentos dolorosos feitos em animais têm em Descartes seu patrono”.

Por outro lado, Marcia Mocellin Raymundo (2010, p. 47) traça um paralelo ao pensamento cartesiano utilizando a obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin, publicada em 1859, afirmando que

[…] a teoria de Darwin possibilitou a extrapolação dos dados obtidos em pesquisas com modelos animais para seres humanos, dando um maior respaldo aos cientistas que utilizavam animais em suas pesquisas. Essa é uma relação paradoxal, uma vez que as constatações de Darwin – associadas às investigaçôes que já haviam demonstrado semelhanças importantes entre as estruturas e funcionamento do corpo dos seres humanos e de alguns animais – permitiram que esses fossem ainda mais usados. Ou seja, justamente por apresentarem semelhanças com os seres humanos é que os animais são utilizados como modelos experimentais para a evolução da ciência e, principalmente, em benefício do homem (RAYMUNDO, 2010, p. 47).

A vivissecção (do latim, vivus = vivo e sectio = corte), portanto, é “qualquer intervenção cirúrgica praticada em um animal vivo, com uma finalidade experimental” (GREIF; TRÉZ, 2000, p. 19) e não deve ser confundida com o processo de dissecação, que, segundo o dicionário Aurélio (2016), trata-se da “separação metódica dos órgãos ou dos tecidos de um cadáver, animal morto ou vegetal”. Ambas são utilizadas no campo de pesquisa, educação, ciência, psicologia, entre outros, porém de formas distintas e em momentos diferentes, a depender do estado do animal a ser utilizado.

Experimentação animal é o uso de animais em pesquisas e testes científicos, experimentos da indústria de cosméticos, na educação, para estudos medicos, psicológicos e biológicos. Os animais não-humanos têm sido usados como cobaias de experimentos científicos por séculos. Contribuiu para isso o paradigma cartesiano, mencionado anteriormente, de enxergar os animais como seres autômatos que apenas respondem mecanicamente a estímulos externos (SANTOS, 2014, p. 31).

A experimentação animal em pesquisas científicas caminhou paralelamente ao desenvolvimento da medicina e possui, segundo o Dicionário de Bioética, a seguinte definição: “a experimentação no animal consiste na utilização de animais de laboratórios vivos no quadro de experiências de investigação pura ou aplicada, bem como para fins de ensino” (HOTTOIS; PARIZEAU, 1993).

O uso de animais em laboratório também é resultado da ideia de que a ciência exige a repetição da experiência em condições controladas para considerá-la válida e a suposição de que os seus resultados podem ser válidos para o cotidiano.

Animais são usados como cobaias em diferentes formas de experimentos. São usados pela indústria de cosméticos, para testar a toxicidade de substâncias químicas. São usados para fins educativos, nas escolas de medicina e ciências biológicas, em aulas sobre anatomia, fisiologia, técnicas cirúrgicas, dentre outras. São usados para experiências científicas no desenvolvimento de terapias e medicamentos, estudos psicológicos e psiquiátricos, análise do desenvolvimento de doenças. São usados também em diversos segmentos da indústria, como em testes de colisão de automóveis ou testes da indústria armamentista, servindo como alvo ou cobaias para armas nucleares, químicas e biológicas. As principais espécies de cobaias usadas para experimentação animal são roedores como ratos, hamsteres, coelhos e porquinhos-da-índia, não pela sua adequação como “dublês” de seres humanos, mas por sua viabilidade econômica: são pequenos, dóceis e se reproduzem com rapidez, sendo, portanto fáceis de manejar, armazenar e de repor. Outros tipos de animais usados para experimentação animal são cães, gatos, rãs, porcos, cavalos, peixes e macacos (Agência Nacional de Direitos dos Animais, 2009, p.01)

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De uma forma geral, as pesquisas que utilizam animais podem ser classificadas da seguinte forma: pesquisa básica biológica, comportamental ou psicológica, referente ao enfrentamento de hipóteses e conhecimento de cunho teórico (PENNISI, 2006); pesquisa aplicada na área biomédica ou psicológica, relacionada à aplicação prática na resolução de problemas e situações existentes (CHAVES; ALBERTI; PETROIANU, 2008); pesquisa voltada para o aumento da relação entre o custo e o benefício dos animais utilizados no agronegócio (RODRIGUES; ARRIGONI; JORGE; BIANCHINI; MARTINS; ANDRIGHETTO, 2010); pesquisa para testar as características das substâncias quanto à sua toxicidade, grau alergênico, carcinogênese, dentre outras características dos produtos (PURCHASE, 1999); uso para fins didáticos, que ocorrem na prática de vivissecção (AZEVÊDO, 2006) e prática cirúrgica (CALASANS-MAIA; MONTEIRO; ÁSCOLI; GRANJEIRO, 2009); pesquisa para extração de produtos biológicos para produção de substâncias utilizadas na biomedicina, tais quais, soros, proteínas e vacinas (TEIXEIRA; ALMEIDA, 2003), entre outros exemplos.

O modelo animal, atualmente, é usado praticamente em todos os ramos da pesquisa biológica e em diversos campos da pesquisa biomédica, desde que atenda aos seguintes requisitos: permita o estudo dos fenômenos biológicos ou de comportamento do animal, possibilite que um processo patológico espontâneo ou induzido possa ser investigado, e que o fenômeno, em um ou mais aspectos, seja semelhante ao fenômeno em seres humanos (FAGUNDES; TAHA, 2009).

A pesquisa científica e o teste de produtos ocorrem para aprimorar o “conhecimento acerca dos mecanismos fisiopatológicos de doenças, empreender ensaios terapêuticos com novos fármacos, estudar marcadores biológicos e avaliar novas técnicas com perspectivas de aplicabilidade na espécie humana” (SCHANAIDER; SILVA, 2004, p. 31).

Cronologicamente, é possível citar alguns relevantes exemplos dos avanços na pesquisa básica por meio da experimentação animal. No século XVII, foi descoberta a circulação sanguínea e a função dos pulmões. No século seguinte, foi descoberto o método para realizar a medição da pressão sanguínea. No século XIX, foi desenvolvida a vacinação para estimular a imunidade e foi possível adquirir maior compreensão das doenças infecciosas. Já no século XX, foi feita a descoberta dos antibióticos e a compreensão do sistema hormonal (MATFIELD, 1996).

Na década de 1920, houve a descoberta das vitaminas. Na década seguinte, se tomou conhecimento a respeito dos mecanismos do impulso nervoso e também houve a descoberta de tumores de origem virótica. Nos anos de 1940, foi possível compreender como ocorria o desenvolvimento embrionário. Na década de 50 já se analisava o controle da atividade muscular, compreendia o metabolismo energético e o mecanismo de audição. Nos anos entre 1960 e 1970 os anticorpos monoclonais foram descobertos e as funções bioquímicas do fígado foram melhor entendidas. A partir de 1970 foi possível entender o papel dos antígenos nos transplantes, os caminhos das funções cerebrais e, além disso, houve a descoberta das prostaglandinas. Finalmente, na década de 80 ocorreu o desenvolvimento de animais transgênicos e os cientistas tiveram melhor compreensão dos fundamentos da memória (MATFIELD, 1996).

Existem, de mesmo modo, vários marcos importantes na indústria farmacêutica e de medicamentos provenientes de testes em animais. No entanto, os testes para a indústria cosmética receberão destaque neste trabalho. Em 1938 foi dada a largada, nos Estados Unidos, para os testes na indústria cosmética. Por motivos de segurança, foi exigida das companhias a realização dos testes em animais.  Em 1944 foram desenvolvidos os testes Draize de olhos e de pele, testes estes que serão descritos no último capítulo (FDA, 2014).

Em 1991, o Centro Europeu de Validação de Métodos Alternativos é estabelecido para fiscalizar o desenvolvimento e aceitação de métodos alternativos de teste, que reduzem, refinam e substituem o uso de animais. Em 2004, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico aprova testes alternativos para ativos fototóxicos, de corrosão e absorvição dermal e logo em 2009 e 2010, aprova também métodos alternativos de toxicidade ocular e de irritação da derme. Em 2013, a União Europeia bane completamente a venda efetiva de cosméticos testados em animais (PETA, 2015). Mais será dito no último capítulo a respeito dos métodos alternativos já existentes para os testes em animais. Esse cenário crescente não afasta essas experimentações na contemporaneidade, o que reforça a necessidade de compreender a existência desses experimentos e a importância dos animais não humanos na esfera da vida e sua diversidade.

2.2. A indústria de cosméticos na história e considerações a respeito de sua influência

O termo “cosmético”, de acordo com Sartori, Lopes e Garatini (2010), “é derivado da palavra grega kosmétikos, que tem sua origem na palavra kosmos, que está relacionada com algo organizado, harmonioso e em equilíbrio”, pois são utilizados diversos tipos de compostos orgânicos para manter o equilíbrio e melhorar a estética visual. Existem evidências históricas registradas do uso de cosméticos para embelezamento e higiene pessoal desde 4000 anos antes de Cristo. Por volta do ano 30.000 a.C. surgem registros das práticas de adorno e camuflagem da pele e dos cabelos. Nesta época, as pessoas limitavam-se a colorir o corpo como uma forma de proteger-se ou de intimidar seus inimigos, sejam eles outros humanos ou animais (SOUZA, 2016).

De acordo com Galembeck e Csordas (2009), os primeiros registros são dos povos egípcios, que pintavam os olhos com sais de antimônio para evitar a contemplação direta do deus “Ra”, representado pelo sol. Para proteger sua pele das altas temperaturas e do clima seco dos desertos da região, os egípcios recorriam à utilização da gordura animal e vegetal, como cera de abelhas, mel e leite no preparo de cremes para a pele, que promoviam ação umectante, retendo umidade e mantendo estáveis os níveis de hidratação da pele. Existem registros de historiadores romanos relatando que a rainha Cleópatra frequentemente se banhava com leite para manter pele e cabelos nutridos, devido à grande concentração de proteína lipídica (gorduras) presente no leite.

Na Bíblia é possível encontrar relatos do uso de cosméticos pelos israelitas e por outros povos do antigo Oriente Médio, como a pintura dos cílios (de Jezebel) com um produto à base de carvão; tratamentos de beleza e banhos com bálsamos que Ester tomava para amaciar a pele, a lavagem com vários perfumes e óleos de banho dos pés de Jesus, por Maria - irmã de Lázaro (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 05).

Os gregos e romanos foram os pioneiros na produção dos primeiros tipos de sabões, que eram preparados a partir de extratos vegetais muito comuns no Mediterrâneo, como o azeite de oliva e óleo de pinho, e também a partir de minerais alcalinos obtidos a partir da moagem de rochas.

Atores do teatro romano eram grandes usuários de maquiagem para poderem incorporar diferentes personagens ao seu repertório. Pastas eram produzidas misturando óleos com pigmentos naturais extraídos de vegetais (açafrão ou a mostarda) ou de rochas. Mortes por intoxicação eram comuns entre os atores, pois muitos dos pigmentos minerais da época continham chumbo ou mercúrio em sua composição (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 5).

Segundo Ashenburg (2008), com as invasões bárbaras e a subsequente queda do império Romano, os banhos entraram em declínio, se tornando algo raro. E apenas no Império Bizantino se manteve a tradição do ato de “tomar banho”. Precisamente por este motivo surgiu a expressão “banhos turcos” (OVÍDIO, 1994, p. 104). No século 10, os cabelos eram lavados não com água, mas com misturas de ervas e argilas, que limpavam, matavam piolhos e combatiam outras infestações do couro cabeludo (VITA, 2008, p. 160).

No século 13, com a epidemia da peste negra, os banhos foram proibidos, pois a medicina da época e o radicalismo religioso pregavam que a água quente, ao abrir os poros, permitia a entrada da peste no corpo. Durante os 400 anos seguintes, os europeus evitaram os banhos e a água era somente usada para matar a sede. Lavar o corpo por completo era considerado um “sacrilégio” e o banho era associado a práticas consideradas, na época, “lascivas” (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 6). Mãos, rosto e partes íntimas eram limpas apenas com pastas e alguns tipos específicos de perfumes. Ocorreu o crescimento do uso da maquiagem e dos perfumes, que buscavam compensar as práticas de higiene, que na época eram mínimas.

Na Era Elizabetana (século XVI), o uso dos cosméticos disseminou-se pelas cortes e aristocracias europeias. Os hábitos dos reis e rainhas eram cobiçados e, eventualmente, popularizados. As perucas ganharam alta popularidade neste período, visto que muitas pessoas da realeza estragaram seus cabelos naturais testando diferentes composições químicas para descolorir ou cachear. Um creme de primavera (Primula veris) usado pela rainha Elizabeth logo se tornou artigo de moda. A este creme se atribuía os efeitos de preservar, embelezar e clarear a pele, bem como de remover ou impedir o surgimento de rugas. Assim, aos poucos, a cosmetologia se afastava da medicina (SOUZA, 2016).

Na corte francesa já existiam cabeleireiros que eram tratados como celebridades e colocaram Paris no centro do penteado feminino. Eles circulavam pelos palácios, teatros e salões da nova classe burguesa com casacos vermelhos, calções pretos e uma pequena espada presa à cintura. Um dos mais célebres e aclamados foi Léonard, que dedicou suas tesouras às madeixas da rainha Maria Antonieta (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 6).

O reconhecimento do benefício da higiene pessoal cresceu ao longo do século 19. Donas de casa dessa época fabricavam cosméticos em suas próprias residências utilizando limonadas, leite, água de rosas, creme de pepino etc. A influência do Romantismo e o contato dos europeus com os povos indígenas da América, cuja cultura estava profundamente associada ao banho e à higiene, voltaram a glorificar a natureza do banho como um ato saudável. Em 1878, foi lançado o primeiro sabonete em barra, pela empresa atualmente conhecida como “Procter&Gamble” (P&G) (SOUZA, 2016).

Embora seja atribuído a Helena Rubinstein a abertura do primeiro salão de beleza do mundo em 1902, o primeiro de que se tem registro foi inaugurado em 1635 em Paris por Champagne, conhecido como le sieur — mesmo assim, frequentar o local era um privilégio de poucas damas ricas que tinham condições para tanto. Apenas no século 20, quando a mulher passou a conquistar espaços públicos e a água corrente tornou-se acessível, é que esses estabelecimentos se expandiram. Até isso acontecer, enquanto os homens recorriam aos barbeiros, as mulheres deveriam manter os cuidados de beleza em casa (SOUZA, 2016).

No século XX, a indústria de cosméticos cresceu muito. Em 1921, pela primeira vez o batom é embalado em um tubo e vendido em cartucho para as consumidoras. Entre as inovações da indústria de cosméticos, destacam-se os desodorantes em tubos, os produtos químicos para ondulação dos cabelos, os xampus sem sabão, os laquês em aerossol, as tinturas de cabelo pouco tóxicas e a pasta de dentes com flúor. Nos anos 50, políticas de incentivo trouxeram para o Brasil empresas multinacionais gigantescas, como a americana Avon e a francesa L’Oréal. Essas empresas lançaram novidades como a venda direta e produtos para o público masculino. A maquiagem básica, que se compunha de pó-de-arroz e batom, foi se diversificando e se sofisticando. Nos anos 90, o tempo entre a aplicação do cosmético e o aparecimento do efeito prometido na bula diminui de 30 dias para menos de 24 horas. Surgem os cosméticos multifuncionais, como batons com protetor solar e hidratantes antienvelhecimento. Neste início do século XXI, os alfa-hidroxiácidos, utilizados em cremes para renovar a pele, começam a ser substituídos por enzimas, mais eficazes. Outra tendência é a descoberta de novas matérias-primas contendo várias funções. No momento atual, as pesquisas avançam na direção da manipulação genética para melhorar a estética (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 7).

Isto posto, não há dúvidas de que existe uma cultura da beleza instaurada ao redor do mundo. Com a história da rainha Cleópatra, por exemplo, é possível perceber que já existia um estereótipo próprio da antiguidade. O cuidado com o seu corpo e o uso de maquiagens que deixavam de ser mero artifício de proteção fazia com que as pessoas sentissem admiração por sua aparência, pois além de ser alguém com grande importância na sociedade, ela possuía os conhecimentos e meios necessários para ter acesso e usufruir de todos os cosméticos disponíveis naquela época.

No decorrer do tempo, o significado de beleza sofreu alterações e hoje cada sociedade possui o perfil estético considerado ideal. Devido à influência da mídia no meio social atual, existe uma busca incessante pela fórmula da beleza que gera um constante desenvolvimento da ciência por trás dos cosméticos, fazendo com que diariamente surjam novos produtos com o propósito de trazer mais beleza para a população. A busca pelo perfil estético ideal e pela melhora na autoestima gera satisfação pessoal e faz com que muitos utilizem diversos produtos cosméticos com o objetivo de atingir tal meta.

A indústria cosmética é uma das que mais cresce no mundo, movimentando bilhões anualmente, a exemplo de 2017, ano em que apenas nos Estados Unidos a indústria cosmética alcançou um total de 17,7 bilhões de dólares (atualmente sendo convertidos em cerca de mais de 56 bilhões de reais), crescendo 6% em relação ao ano anterior (The NPD Group, 2017). Segundo o panorama de 2017 da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), a indústria cosmética vem ganhando notoriedade a cada ano, tendo crescido em mais de 100% em relação ao primeiro panorama. Em relação ao ano anterior, o crescimento no setor foi de 18% (ABIHPEC, 2017). O crescimento exponencial da indústria foi acompanhado pelos investimentos direcionados à mesma no ramo da pesquisa, que busca inovações e melhorias para manter os consumidores interessados nos novos produtos.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é um órgão regulador vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil. Trata-se  de uma autarquia de regime especial que exerce o controle sanitário de todos os produtos e serviços, sejam nacionais ou importados, submetendo-os à vigilância sanitária, tais como medicamentos, alimentos,  cosméticos, produtos de higiene etc. Além de regulamentar, testar e aprovar os produtos que os Brasileiros consomem, a ANVISA também  tem o importante papel de órgão fiscalizador atuando em todo território nacional. A mesma agência trata de um ramo chamado cosmetologia, que se trata da ciência voltada aos estudos de formulações cosméticas, trabalhando em sua pesquisa, desenvolvimento e produção. De acordo com a definição conferida pela legislação da ANVISA, cosméticos são:

Preparações constituídas por substâncias naturais ou sintéticas, de uso externo nas diversas partes do corpo humano, pele, sistema capilar, unhas, lábios, órgãos genitais externos, dentes e membranas mucosas da cavidade oral, com o objetivo exclusivo ou principal de limpá-los, perfumá-los, alterar sua aparência e ou corrigir odores corporais e ou protegê-los ou mantê-los em bom estado (ANVISA, p. 07, 2015).

A pele é o maior órgão do corpo humano e, por conta disso, se encontra constantemente exposta a riscos de contaminação, infecção e doenças de contato. Portanto, é de suma importância destacar a necessidade de conhecimento químico dos produtos usados e seus riscos para quem os utiliza, pois podem haver reações alérgicas, irritações na pele, como eczemas e intoxicações causadas por algumas substâncias ou elementos existentes em sua composição química, que em alguns casos pode levar a morte, como por exemplo o uso de tinturas para o cabelo, que podem possuir componentes potencialmente danosos à saúde, como o formol (formoaldeído).  De acordo com a ANVISA (2007), as reações do uso do formol podem ser:

Contato com a pele - Tóxico. Causa irritação à pele, como vermelhidão, dor e queimaduras; Contato com os olhos - Causa irritação, vermelhidão, dor, lacrimação e visão embaçada. Altas concentrações causam danos irreversíveis; Inalação - Pode causar câncer no aparelho respiratório. Pode causar dor de garganta, irritação do nariz, tosse, diminuição da frequência respiratória, irritação e sensibilização do trato respiratório. Pode ainda causar graves ferimentos nas vias respiratórias, levando ao edema pulmonar e pneumonia. Fatal em altas concentrações. Exposição crônica - A frequente ou prolongada exposição pode causar hipersensibilidade, levando às dermatites. O contato repetido ou prolongado pode causar reação alérgica, debilitação da visão e aumento do fígado. No caso da escova progressiva, dependendo da concentração do formol, pode ainda causar queda capilar (ANVISA, p. 23, 2007).

Reações alérgicas podem ser produzidas por exposição continuada do indivíduo a uma determinada substância presente em um cosmético ou alimento. Apesar dos mecanismos de evolução do processo alérgico ainda não estarem muito bem esclarecidos, acredita-se que ocorra uma combinação de uma substância exógena com algumas proteínas presentes no organismo, causando falhas bioquímicas ou enzimáticas, cuja intensidade depende da genética do indivíduo. O cérebro humano reage interpretando que esta substância é um invasor perigoso e produz histamina, visando neutralizar a ação da “agressora”. Os efeitos da histamina variam de pessoa para pessoa, porém em todos os casos ocorre uma redução da imunidade do indivíduo e o aumento da sua propensão a doenças. Em casos mais extremos de sensibilização, o organismo reage muito rapidamente visando impedir a entrada do “agressor”, causando o fechamento das vias respiratórias e morte por sufocação (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 26).

A reação alérgica mais comum produzida por um cosmético é a dermatite de contato, que se traduz pela irritação da pele ou do couro cabeludo, pela formação de eczemas e por rachaduras. Os solventes e os biocidas ou preservantes (como o formaldeído previamente mencionado) são os componentes que desencadeiam com mais frequência essas reações. A toxicidade de uma matéria-prima ou de um cosmético é avaliada através de testes de exposição a curto e longo prazo em alguns animais (normalmente coelhos e outros roedores), mas há objeções ao uso destes, devido ao sofrimento que lhes é imputado com a prática. Atualmente, a grande maioria dos produtores de cosméticos baniu ou vem tentando reduzir ao máximo os testes em animais (GALEMBECK; CSORDAS, 2009, p. 27).

2.3. Os dispositivos legais nacionais e internacionais acerca da experimentação animal ao longo da história e a Lei Arouca 

No que tange às disposições internacionais, Guimarães e Mázaro (2004) afirmam que, no campo jurídico, a lei mais antiga acerca do uso de animais na pesquisa surgiu na Inglaterra, em 1822, e proibia a crueldade apenas contra grandes animais – chamada “British Anticruelty Act” (em tradução livre, “ato britânico anticrueldade”). No Reino Unido, a primeira legislação específica referente à experimentação animal foi o “British Cruelty to Animal Act” (“ato britânico contra crueldade em animais”, em livre tradução), em 1976 (TANSEY, 1998). Atualizada em 1986, passou a chamar-se “Animals (Scientific Procedures) Act 1986” (em tradução livre, “ato dos procedimentos científicos em animais de 1986”). Da atualização legal emanaram um guia operacional – “Guidance on the Operation of the Animals (Scientifc Procedures) Act 1986”  (“ato guia das operações em animais para procedimentos científicos de 1986”, em tradução livre) – e também um código de procedimentos técnicos – “Code Practice for the Housing and Care Animals Used in Scientific Procedures” (em português, “código de prática para o armazenamento e cuidados de animais usados em procedimentos científicos”) (RAYMUNDO; GOLDIM, 2002).

Nos Estados Unidos, a primeira lei relacionada à utilização de animais em pesquisas foi o Laboratory Animal Welfare Act, de 1966, que se traduz por “ato pelo bem estar de animais laboratoriais”. Atualmente, após sofrer modificações, denomina-se apenas Animal Welfare Act, ou “ato pelo bem estar dos animais” (PEREIRA; SILVA; ROMEIRO, 1998). Tal lei foi submetida a emendas em 1970, 1976 e 1985 e a alterações em 1990, 2002, 2007 e 2008 (ANDERSON, 2007). Sua atuação sofreu ampliação em cada emenda, tendo como característica importante, de acordo com Paixão (2008), o reconhecimento da obrigatoriedade de existência das comissões institucionais de ética no uso de animais (Institutional Animal Care and Use Committee – IACUC).

O documento internacional mais importante para proteção dos animais é a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), adotada em janeiro de 1978. Neste documento está descrito o direito dos animais à liberdade, o direito de não sofrerem maus-tratos e a vedação à utilização de experimentos que impliquem dor física, bem como orienta para a utilização de procedimentos em que os animais sejam substituídos por outros métodos de teste. Surgia, pela primeira vez, a ideia de algo próximo a uma dignidade animal:

Art.1º - Todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o mesmo direito à existência.

[...]

Art. 3º - Nenhum animal será submetido a maus-tratos e atos cruéis. Se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor nem angústia.

[...]

Art. 8º - A experimentação animal que implique sofrimento físico é incompatível com os direitos dos animais, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra. As técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas.

(UNESCO, 1978)

A Associação Mundial de Veterinária (World Veterinary Association - WVA), visando o bem-estar das espécies de animais utilizados em pesquisas, adotou o posicionamento de que “os animais, durante a realização do experimento, não devem sentir fome, sede, dor, desconforto (ambiente adequado e confortável), sofrer lesões, doenças, medo ou aflição, e devem sentir-se livres para desenvolver o seu comportamento normal” (WVA, 2008). Isto posto, entende-se que a Associação Mundial de Veterinária permite a utilização de animais em pesquisa, desde que assegurado o seu bem-estar em todas as fases desta.

Já no âmbito nacional, Maschio (2005) destaca que a primeira norma a regular e proteger os animais foi o Decreto nº 16.590/1924 que findou revogado pelo Decreto nº 11/1991. O Decreto nº 16.590/1924 vetava, “nas casas de diversões públicas, as corridas de bovinos, brigas de aves, e toda e qualquer diversão que resultasse em maus-tratos aos animais” (BRASIL, 1924). Em seguida veio o Decreto-Lei nº 24.645/1934, sancionado pelo então chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, Getúlio Vargas, que em seu artigo 1º determinou que todos os animais existentes no país fossem tutelados pelo Estado e, em seu artigo 2º, previu sanção para aqueles que praticassem maus-tratos aos animais. O próprio texto legal, em seu artigo 3º, elencou os atos considerados como maus-tratos aos animais, dentre os quais os seguintes podem ser relacionados à prática de utilização de animais em pesquisas:

Art. 3º. - Consideram-se maus tratos:

I - Praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;

II - Manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;

III - Obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forçi8uhuhh8hkh88hyggtxas e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente não se lhes possam exigir senão com castigo;

[...]

VI - Não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongado, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não;

[...]

XVI - Fazer viajar um animal a pé mais de dez quilômetros sem lhe dar descanso, ou trabalohar mais de seis horas contínuas, sem água e alimento;

[...]

XIX - Transportar animais em cestos, gaiolas, ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e número de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por uma rede metálica ou idêntica que impeça a saída de qualquer membro do animal;

XX - Encerrar em curral ou outros lugares animais em número tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou deixá-los sem água ou alimento por mais de doze horas;

[...]

XXVII - Ministrar ensino a animais com maus tratos físicos (BRASIL, 1934).

Dessa forma, devido à ausência de legislação específica, por muito tempo o Decreto-Lei em questão foi utilizado por analogia como norma para a prática de experimentação animal, uma vez que regulava simplesmente a proibição de maus-tratos contra os animais (MARQUES; MIRANDA; CAETANO; BIONDO-SIMÕES, 2005).

Em seguida, a crueldade contra animais, independente de fins didáticos ou científicos,  foi tipificada como contravenção penal pelo artigo 64 do Decreto-Lei nº 3.688/1941, a Lei das Contravenções Penais, sancionado pelo Presidente da República, Getúlio Vargas (BRASIL, 1941).

As sanções impostas aos praticantes de maus-tratos contra animais previstos no Decreto-Lei nº 24.645/1934 distinguem-se daquelas previstas no Decreto-Lei nº 3.688/1941, por serem mais severas em relação à prisão e à multa:

Decreto-Lei nº 24.645/1934:

[...] Art. 2o. - Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus-tratos aos animais, incorrerá em multa de Cr$.... e na pena de prisão celular de 2 a 15 dias, quer o delinqüente seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo da ação civil que possa caber (BRASIL, 1934)

Decreto-Lei nº 3.688/1941:

[...]

Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo:  

Pena – prisão simples, de dez dias a um mês, ou multa, de cem a quinhentos mil réis (BRASIL, 1941).

A Constituição Federal (CF), em seu capítulo referente ao meio ambiente, proíbe a prática de crueldade contra os animais:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1o - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

[...]

VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade (BRASIL, 1988).

Existe, no entanto, a crítica de que no Brasil, apesar de existir suposta preocupação do legislador com a proteção dos direitos dos animais, “as leis atualmente vigentes possuem uma série de subterfúgios e exceções que acabam por legitimar as práticas que deveriam coibir” (MACHADO; PINHEIRO; MARÇAL; ALCÂNTARA, 2004, p. 13).

Parece pertinente mencionar, neste momento, a Emenda Constitucional 96, de 2017, que insere o § 7º no artigo 225 da Constituição Federal, citado acima. O mesmo dispõe a respeito das práticas desportivas com animais, como forma de manifestação cultural:

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos (BRASIL, 2017).

Tramitaram, no Congresso Nacional, Projetos de Lei (PL) que versavam sobre a regularização da matéria que, de acordo com o que dizem Rezende, Peluzio e Sabarense (2008), são decorrentes da evolução biotecnológica e da ausência de legislação específica no que se refere à prática da experimentação animal, tendo em vista que as disposições anteriores permitiam brechas, como a existência de dispositivos que tratavam apenas da captura e armazenamento de animais, mas nada dispunham a respeito dos experimentos (MARQUES; MORALES; PETROIANU, 2009). Deste modo, o primeiro Projeto de Lei a tramitar na Câmara dos Deputados tratando exclusivamente do tema foi o PL nº 1.507/1973, proposto pelo Deputado Federal Peixoto Filho (BRASIL, 1973), que gerou a subsequente edição da Lei nº 6.638/1979 e estabeleceu as normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais (BRASIL, 1979).

Em paralelo, tramitava o projeto de lei de nº 1.153/1995, que resultou na Lei Federal nº 11.794/2008, ficando conhecida popularmente como Lei Arouca, em virtude da autoria ser do Deputado Federal Sérgio Arouca. A Lei nº 11.794/2008, que regulamenta o inciso VII, do §1º, do artigo 225, da Constituição Federal, após 13 anos de trâmite legislativo, foi o primeiro diploma legal que estabeleceu procedimentos para o uso científico de animais, revogando, consequentemente, a Lei nº 6.638/1979 (BRASIL, 2008).

A Lei Arouca põe em destaque o princípio dos 3R’s (Replacement, Reduction, Refinament) e os demais dispositivos bem-estaristas – termos que serão melhor explicados no próximo capítulo –, incluindo a morte por tratamento humanitário (art. 3º, inc. IV), a aplicação de cuidados especiais antes e depois do experimento (art. 14, caput), a aplicação de métodos alternativos quando possível (art. 5º, inc. III), a redução do número de animais explorados, buscando a diminuição de sua dor através de sedação e analgésicos (art. 14, § 4º). Os dois últimos fazem parte dos 3R’s, que serão devidamente explicados posteriormente.

Desse modo, a utilização de animais em pesquisa deixou de ser regulada por uma lei que se referia apenas à vivissecção animal e por regulamentos esparsos de diversos órgãos governamentais, passando a ser normatizada por um sistema regulatório próprio e de controle previsto em uma única lei específica ao tema: a Lei Arouca. Esse marco legislativo nacional é referência, em conjunto com as normas constitucionais e a legislação internacional já citada, para uma interpretação que valorize a vida, as dores e as sensações dos animais não humanos.

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Sobre a autora
Mariana de Freitas Farias

bacharel em Direito pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Mariana Freitas. Proteção jurídica dos animais.: A dignidade animal na era do consumismo estético. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6064, 7 fev. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75012. Acesso em: 19 mar. 2024.

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