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A Emenda Constitucional n. 101 e a possibilidade do militar estadual acumular cargo público

06/07/2019 às 11:10
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Nota-se uma situação um tanto quanto inusitada, pois a carreira militar, que normalmente exige mais que as carreiras civis, em razão de inúmeras peculiaridades, não é mais de dedicação exclusiva, enquanto que várias carreiras civis são.

Hoje (04/07/19) foi publicada no Diário Oficial da União a Emenda Constitucional n. 101, que permite a acumulação de cargos públicos por militares estaduais (policiais militares e bombeiros militares).

O art. 42 da Constituição Federal foi acrescido do § 3º, que passou a prever que "Aplica-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios o disposto no art. 37, inciso XVI, com prevalência da atividade militar."

A regra constitucional é a impossibilidade de se acumular cargos públicos, todavia o art. 37, XVI, da Constituição Federal prevê a possibilidade de se acumular cargos públicos, desde que haja compatibilidade de horários e seja:

a) a de dois cargos de professor;

b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;

c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.

O Parecer da Comissão de Constituição e Justiça afirma que “Assim, o que se objetiva, na prática, é a possibilidade de os membros das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares poderem acumular seus cargos de militares dos Estados com: i) um cargo de professor; ii) um cargo técnico ou científico; ou iii) um cargo ou emprego privativo de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. Esse é o verdadeiro espírito da alteração legislativa pretendida.”

Portanto, ao prever que se aplica as exceções acima aos militares, é possível afirmar que os militares estaduais podem:

a) dar aulas em escolas públicas ou em universidades públicas;

b) exercerem outro cargo técnico ou científico;

c) acumular outro cargo público na área de saúde (esta possibilidade já havia sido contemplada pela Emenda Constitucional n. 77, de 2014).

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assevera que "Cargo científico é o conjunto de atribuições cuja execução tem por finalidade investigação coordenada e sistematizada de fatos, predominantemente de especulação, visando a ampliar o conhecimento humano. Cargo técnico é o conjunto de atribuições cuja execução reclama conhecimento específico de uma área do saber."[1]

Márcio Cavalcante[2] expõe que cargo técnico é aquele que requer conhecimento específico na área de atuação do profissional, com habilitação específica de grau universitário ou profissionalizante de 2º grau" (STJ. 2ª Turma. RMS 42.392/AC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 10/02/2015). É aquele que exige da pessoa um conjunto de atribuições ligadas ao conhecimento específico de uma área do saber. Segundo já decidiu o STJ, somente se pode considerar que um cargo tem natureza técnica se ele exigir, no desempenho de suas atribuições, a aplicação de conhecimentos especializados de alguma área do saber. STJ. 2ª Turma. REsp 1569547-RN, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 15/12/2015 (Info 575).

O conceito de "cargo técnico ou científico" não remete, essencialmente, a um cargo de nível superior, mas pela análise da atividade desenvolvida, em atenção ao nível de especificação, capacidade e técnica necessários para o correto exercício do trabalho.[3]

Os cargos de perito, intérprete e tradutor de libras[4], gestor de políticas públicas[5], pesquisadores científicos e cientistas, enfermeiro, médico, psicólogo, engenheiro, piloto de aeronaves, analistas de tribunais, dentre outros, são cargos de natureza técnica/científica.

Os cargos que exijam atribuições meramente burocráticas, como atendente de balcão nos fóruns e juntada de documentos nos processos, não possuem natureza técnica/científica.

Dessa forma, é possível, caso haja compatibilidade de horários e sem prejuízo da atividade militar, que o policial militar ou bombeiro militar exerça os referidos cargos mencionados, em razão de aprovação em concurso público ou indicação para o exercício de um cargo público de natureza técnica/científica.

Destaca-se que o Comandante não está obrigado a ajustar o horário de serviço do militar para que seja possível haver compatibilidade de horários, na medida em que a alteração aprovada, expressamente, concede primazia para a atividade militar ao mencionar que a acumulação de cargo público se dará com a “prevalência da atividade militar”. Lado outro, não deve o Comandante, sob pena de desvio de finalidade, e consequente nulidade do ato, alterar o horário de serviço do militar com o intuito de impossibilitar a acumulação de cargo público.

Quanto ao salário do militar que acumular cargo público, em razão da decisão do STF no RE 612975/MT e RE 602043/MT, é possível que ultrapasse o teto remuneratório, na medida em que haverá acumulação lícita de cargos públicos.[6]

Antes da Emenda Constitucional n. 101 os militares federais e estaduais (art. 42, § 1º, da CF) da área de saúde poderiam acumular cargo público, desde que o outro cargo fosse também da área de saúde, em razão da Emenda Constitucional n. 77, de  11 de fevereiro de 2014, que passou a possibilitar esse acúmulo no art. 142, § 3º, II, III e VIII, com prevalência da atividade militar.

A Emenda Constitucional n. 101 alcançou somente os militares estaduais, razão pela qual os militares federais podem acumular cargo público somente se forem da área de saúde.

Dessa forma, tem-se a seguinte situação:

Cargo público

Militar Estadual

Militar Federal

Professor

Pode acumular

Não pode acumular

Técnico ou científico

Pode acumular

Não pode acumular

Saúde

Pode acumular

Pode acumular

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Para que haja o acúmulo de cargo público deve-se analisar se o novo cargo que o militar vier a exercer não exige que haja dedicação exclusiva.

Na prática, em que pese a possibilidade do militar acumular cargo público, ainda que seja cargo técnico ou científico, certamente o acúmulo ocorrerá nas áreas de educação e saúde, em razão da necessária compatibilidade de horário e pelo fato de muitos cargos técnicos ou científicos exigirem dedicação exclusiva.

Como a Emenda Constitucional n. 101 permite a acumulação de cargo público nas hipóteses do art. 37, XVI, da Constituição Federal, com prevalência da atividade militar, a carreira militar estadual deixa de se exigir dedicação exclusiva e as leis que preveem ser a carreira militar de dedicação exclusiva estão revogadas.

Nota-se uma situação um tanto quanto inusitada, pois a carreira militar, que, naturalmente, exige-se muito mais que as carreiras civis, em razão de inúmeras peculiaridades, não é mais de dedicação exclusiva, enquanto que várias carreiras civis são, quando houver previsão em lei, pois a Constituição Federal não é expressa em permitir a acumulação de cargo público nas carreiras civis, salvo nas hipóteses em que for carreira de professor ou na área de saúde (art. 37, XVI, da CF).

O art. 142, § 3º, II, da Constituição Federal assevera que o militar federal e estadual[7] da ativa que tomar posse em cargo público civil será transferido para a reserva, salvo se for da área de saúde.

Houve alteração do art. 42, com o acréscimo do § 3º, para permitir que o militar estadual acumule cargo de professor, técnico ou científico e na área de saúde, mas não houve alteração do art. 142, § 3º, II, da Constituição Federal.

Dessa forma, deve-se entender que a aplicação do art. 142, § 3º, II, da Constituição Federal limita-se aos militares federais e deve ser aplicada aos militares estaduais somente quando não houver compatibilidade de horários ou o novo cargo civil exigir dedicação exclusiva, pois interpretação diversa seria o mesmo que tornar inaplicável a Emenda Constitucional n. 101.           


Notas

[1] RMS 7.550/PB, 6.ª Turma, Rel. Min. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, DJ de 02/03/1998.

[2] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Definição de cargo técnicoo. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/051e4e127b92f5d98d3c79b195f2b291>. Acesso em: 04/04/2019.

[3] RMS 42.392/AC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/02/2015, DJe 19/03/2015; RMS 28.644/AP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 19/12/2011; RMS 20.033/RS, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/02/2007, DJ 12/03/2007, p. 261.

[4] REsp 1569547/RN, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/12/2015, DJe 02/02/2016.

[5] AgInt no RMS 49.835/AC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 27/05/2016

[6] Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, XI, da Constituição Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público. STF. Plenário. RE 612975/MT e RE 602043/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, julgados em 26 e 27/4/2017 (repercussão geral) (Info 862).

[7] Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998) § 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 15/12/98)

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Sobre o autor
Rodrigo Foureaux

Juiz de Direito - TJGO. Mestre em Direito. Foi Juiz de Direito do TJPA e do TJPB. Aprovado para Juiz do TJAL. É Oficial da Reserva Não Remunerada da PMMG. Bacharel em Direito e em Ciências Militares com Ênfase em Defesa Social. Especialista em Direito Público. Autor do livro "Justiça Militar: Aspectos Gerais e Controversos".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FOUREAUX, Rodrigo. A Emenda Constitucional n. 101 e a possibilidade do militar estadual acumular cargo público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5848, 6 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75171. Acesso em: 24 abr. 2024.

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