A atuação do juiz, do Ministério Público e da defesa nas audiências de custódia

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15/07/2019 às 17:51
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Examinam-se os regramentos internos e internacionais que recomendam a implementação da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro, ajustando-se o processo penal a normas internacionais de direitos humanos.

Sumário: 1 Introdução; 2 Previsão Normativa e Princípios Orientadores da Audiência de Custódia; 2.1 Previsão Normativa Internacional, Nacional e Jurisprudencial; 2.2 Princípios Fundamentais orientadores da Audiência de Custódia; 2.2.1 Princípio da Dignidade Humana; 2.2.2 Princípio do Devido Processo Penal; 2.2.3 Princípio da Ampla Defesa; 2.2.4 Princípio do Contraditório; 2.2.5 Princípio da Presunção de Inocência ou da Não Culpabilidade; 2.2.6 Demais Princípios Orientadores da Audiência de Custódia; 3 Audiência de Custódia e o Processo Penal Constitucional; 3.1 Objetivos e garantias asseguradas na Audiência de Custódia; 3.2 Prazo para a apresentação de preso em Audiência de Custódia; 3.3 Efeitos dos atos produzidos na Audiência e sua eficácia probatória no processo penal; 3.4 Entendimento das expressões - “sem demora” e “à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais” - previstas nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos; 4 O papel dos sujeitos processuais nas Audiências de Custódia; 4.1 Atuação do Juiz; 4.2 Atuação do Ministério Público; 4.3 Atuação da Defesa Técnica e Autodefesa; 5 Conclusão.  Referências.  

RESUMO :O estudo tem por finalidade discorrer sobre os regramentos internos e internacionais que recomendam a implementação da Audiência de Custódia no ordenamento jurídico brasileiro, ajustando-se o processo penal a essas Normas Internacionais de Direitos Humanos, possibilitando, desse modo, a verificação das finalidades a serem alcançadas com a realização dessa audiência. Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, a análise perpassou pela previsão normativa nacional e internacional, os princípios orientadores da Audiência de Custódia; o desenvolvimento da audiência em si, aplicado ao processo penal constitucional. Por fim, analisou-se e ressaltou-se o importantíssimo papel dos sujeitos processuais durante a realização dos atos pré-processuais nessa audiência. Segunda tal perspectiva, pode-se avaliar a importância que essa audiência proporciona à proteção da pessoa humana, objetivando assegurar direitos fundamentais e garantir a efetivação do direito à integridade da pessoa do preso privada de sua liberdade. Cabe salientar que não é nessa audiência que se verifica a culpabilidade do imputado, mas é a oportunidade de que dispõe de estar diante do Juiz e demais sujeitos processuais para ser ouvido sobre as circunstâncias que motivaram sua prisão, ocasião em que possam ser aplicadas outras medidas cautelares diversas da prisão. Essa audiência não tem a finalidade de produção de prova; porém, tem, essencialmente, o objetivo de proteger o direito à liberdade pessoal, permitindo ao Estado-Juiz outorgar proteção a outros direitos, como à vida e à integridade pessoal do imputado de ter cometido uma infração penal, para que não sejam violadas as regras mínimas de normas supralegais preestabelecidas. Na mesma direção, busca-se a efetividade e comprometimento dos sujeitos processuais como o Juiz, o Promotor e os Defensores de exercerem o seu papel com eficácia, a fim de que o sistema ius puniendi estatal seja mais justo e garanta a dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Audiência de Custódia. Sujeitos Processuais. Cautelaridade. Garantias. Normas Internacionais e Internas.


1 INTRODUÇÃO

Tem-se assistido, no Brasil, nos últimos anos, avanços significativos na aplicação dos direitos fundamentais no processo penal, sobretudo quando o assunto é enfrentar o dilema entre a adoção de uma medida cautelar diversa da prisão, pena ou sanção e o status de inocência, que só pode ser revogado com o advento de uma sentença condenatória transitada em julgado. Assim, descortina-se, no âmbito do Sistema Processual Penal Constitucional, mais uma vez, um rico debate em razão da recomendação supralegal que instituiu as Audiências de Custódia no Brasil, as quais ingressam na fase pré-processual, sem, contudo, constituir-se em um complemento da persecução criminal destinada à elucidação de um fato criminoso, apesar da participação do Juiz, do Ministério Público e de um defensor constituído ou público. Essa questão se deu a partir de 1992, quando o Estado Brasileiro promulgou os decretos legislativos que incorporaram os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), essa mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica[2].

Ao contrário do que se possa dizer, tal procedimento não visa comprometer a resposta estatal ao delito ocorrido, promovendo a impunidade ou o desencarceramento. Ao submeter a pessoa sob custódia, com a maior brevidade, a uma análise integrada dos sujeitos processuais, o Juiz, o Ministério Público e o Defensor, quanto à medida cautelar mais adequada a ser aplicada ao contrário do desejado, deixar de submeter o preso a uma medida restritiva de liberdade, de pronto, quando diante da cessação de uma infração com a prisão em flagrante delito desse infrator, em razão de aparente convicção, quanto à materialidade e a autoria verificada no domínio da percepção visual dos fatos, quando o delito está sendo cometido ou acabou de sê-lo. Certamente, este é o senso comum[3] em favor da autopreservação e defesa da sociedade. Prisão em flagrante que é facultada a qualquer do povo, quando o fato ocorre de inopino e não exija ordem escrita de uma autoridade judiciária (Juiz), conforme disposto na Constituição Federal (Art. 5º, inciso, LXI)[4] e no Código de Processo Penal vigente (Art. 301)[5]. Assim, a Audiência de Custódia surge para garantir direitos da pessoa presa e para que o Juiz aplique a medida cautelar mais adequada. Ela torna-se também uma garantia e proteção ao Processo Penal, pois, esse também não pode ser colocado em risco, quando o que se deseja é alcançar a Justiça e oferecer uma resposta punitiva mais adequada.

É imperioso ainda citar que a implementação da Audiência de Custódia figura-se como sua determinação supralegal de aplicação sob uma linha de tensão vigente no direito processual penal, ao ficar entre dois polos; logo, dois eixos centrais. De um lado, a necessidade de um processo penal eficiente, com exigências e necessidades de oferecer respostas, seja quanto ao seu poder punitivo, seja quanto ao seu poder persecutório. Do outro, a importância da preservação dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana, direitos esses que são garantias individuais do acusado, consagrados na Constituição de 1988 e, após o ano de 1992, no regramento supralegal brasileiro.

Nesse sentido, a Audiência de Custódia passa a assegurar direitos inseridos em nosso ordenamento Constitucional, sobretudo, garantias essenciais afinadas ao piso vital básico da pessoa humana, desvelado pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (Art.1º, Inciso III, da CF/88). Ademais, asseguram-se garantias que revelam ter todo custodiado pelo Estado, antes de uma sentença condenatória transitada em julgado, o direito de ser apresentado, sem demora, a um Juiz ou a um Tribunal, a fim de que seja examinada a legalidade de sua prisão e o tratamento e as condições quanto à realização dessa custódia pelas autoridades policiais[6].[7] Além disso, e sobretudo, avaliar a necessidade da realização dessa prisão e se ela deve ser mantida, ao longo do processo, ou substituída por uma medida cautelar prisional ou não prisional, todas englobadas lato sensu, nos regramentos em compasso com os pressupostos gerais, a teor dos art. 282; 283; 304, §1; 309; 312; 316; 319; 321; 323; 324 do Código de Processo Penal[8].

Vale dizer que, do muito que tem sido feito em produção doutrinária no âmbito processual penal, mormente, no âmbito prático, as Audiências de Custódia representam um marco humanizatório e civilizatório do Sistema Processual Penal. Aliás, por mais pretensioso que seja o desejo de adequação e de avanços do processo penal, é importante salientar que após a vigência da Constituição de 1988, o processo penal vem galgando o seu ciclo de democratização e constitucionalização de maneira significativa.

Assim, vê-se que a partir do momento em que há uma construção supralegal fundada em Direitos Fundamentais e em Garantias Individuais, tem-se um desenho cada vez mais promissor para um Processo Penal Constitucional que possibilitará dialogar com um Estado Democrático de Direito que o recepcionou. É nesse sentido que as Audiências de Custódia passam a representar uma importante etapa da consolidação democrática do Processo Penal Brasileiro.

De fato, com o avançar da sociedade e historicamente, com o avançar da ciência do Direito, nota-se que o Processo Penal se encontra comprometido e possui um importante papel a cumprir no Estado Democrático de Direito. Portanto, o Processo Penal não pode ser compreendido apenas como um meio ou um instrumento da aplicação da lei material. Ele deve coadunar com outros objetivos muito mais nobres ao buscar direitos reconhecidos, a fim de elaborar teorias mais adequadas ao desenvolvimento de legislações cada vez mais amplas e com vistas a alcançar a justiça, focada e ancorada em bases de natureza constitucionais. Dessa forma, é possível possibilitar a máxima efetividade das Garantias Individuais e dos Direitos Fundamentais, afastando-se dos posicionamentos elaborados tão-somente consubstanciados no senso-comum jurídico, sociológico e político, mas sim centrados na busca da melhor reflexão doutrinária e da melhor construção técnica legislativa.

Esse é o papel do Processo Penal na contemporaneidade: assumir essa feição de garantia. Assim, a efetivação das Audiências de Custódia é um excepcional avanço nesse sentido, objetivando fazer valer a garantia da pessoa presa e também possibilitar que a autoridade judiciária (Juiz) adote medidas cautelares adequadas à situação com a maior brevidade e justiça.

O presente trabalho ter por finalidade estudar a relação jurídica processual da Audiência de Custódia, fixando seu conceito, suas características, sua estrutura e o papel dos sujeitos processuais distinguidos pela norma supralegal integrantes desse ato processual. Em linhas gerais, no contexto de um breve estudo, esta pesquisa buscará guiar-se, sob análise dos princípios norteadores da Audiência de Custódia, quanto à importância de sua realização e o papel de cada sujeito processual na busca da harmonia da melhor prestação jurisdicional, assegurando direitos individuais e garantias fundamentais do preso e, ao processo, a garantia dos fatores de justiça, acesso, estabilidade, legalidade e celeridade. 

Isto posto, é possível elaborar uma problematização, sem um maior aprofundamento, diante do tema:  a ausência de algum sujeito processual previsto em Lei, em uma Audiência de Custódia, invalida os atos nela praticados?

Depois de elaborada essa proposição, resumidamente, posicionando-se por meio de um incitamento ao estudo do problema proposto, buscar-se-ão critérios argumentativos em Tratados, Leis e doutrina jurídica que poderão trazer luz a essa dúvida.

Assinala-se como hipótese de resposta ao problema formulado, a qual poderá ser comprovada total ou parcialmente após o fluxo do estudo a ser produzido, a seguinte assertiva: É requisito essencial à realização da Audiência de Custódia que todos os sujeitos processuais estejam presentes: o Juiz, o Ministério Público e o Defensor constituído ou público, a fim de que os atos não sejam invalidados.

Por fim, de maneira palpável, o esforço desse estudo é entender a importância da realização dessa Audiência na promoção da Justiça e o papel exercido pelas partes integrantes desse ato pré-processual. Assim, nota-se que Jurisdição, Direitos Fundamentais, Sujeitos Processuais, Atos Procedimentais e Processo são saberes essenciais nessa construção jurídica.


2 PREVISÃO NORMATIVA E PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA  

No que tange à delimitação normativa do instituto da Audiência de Custódia, cabe salientar que ela já existe no Direito Internacional por muitos anos, tendo previsão em vários Tratados e Convenções, tais como, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (1950); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969). Com efeito, tem-se que a partir dessas normas internacionais surge normativamente o direito processual penal interno da Audiência de Custódia, o qual passa a se compatibilizar com a ordem jurídica internacional. Desta forma, vê-se que o ordenamento interno deve passar a comportar-se conforme proposto cumprir no Plano Internacional, quando da ratificação dos referidos Tratados e Convenções de Direitos Humanos[9]. 

2.1 Previsão Normativa Internacional, Nacional e Jurisprudencial

No contexto concernente da delimitação Normativa da implementação da Audiência de Custódia, conforme salienta Pires (2016, p.258), essa audiência tem como objetivo proteger os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, permitindo o controle judiciário e o respeito aos direitos individuais, inicialmente ratificado em Roma, em 1950, na Convenção Europeia. Isto significa dizer que foi estabelecida, nessa Convenção Internacional, a garantia de que “[...] qualquer pessoa presa ou detida deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais [...]”, conforme estabelecido em seu artigo 5.3[10].

Em relação ao reconhecimento da dignidade da pessoa humana e aos seus direitos quanto a sua igualdade inalienável fundada na liberdade, justiça e paz no Mundo, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aprovado em 1966 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, deixa expresso, também, por sua vez, em seu art. 9.3, que  “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais [...]”[11]. Acrescenta Pires (2016, p.4) que “[...] no ordenamento brasileiro a autoridade habilitada a exercer funções judiciais é somente o juiz, portanto, é ao magistrado que deverá ser apresentado à pessoa presa, para que seja analisada a legalidade ou não da prisão”.

Para que essa garantia fosse alcançada, também, no âmbito do Plano Regional de Direito Internacional, no ano de 1969, foi celebrada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), popularmente conhecida como Pacto de São José da Costa Rica. Trata-se de uma Convenção firmada pelos integrantes da Organização de Estados Americanos (OEA), e que, de maneira geral

[...] tem como objetivo estabelecer os direitos fundamentais da pessoa humana, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à integridade pessoal e moral, à educação, entre outros similares. A convenção proíbe a escravidão e a servidão humana, trata das garantias judiciais, da liberdade de consciência e religião, de pensamento e expressão, bem como da liberdade de associação e da proteção à família. O objetivo da constituição deste tratado internacional é a busca da consolidação entre os países americanos de um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito aos direitos humanos essenciais, independentemente do país onde a pessoa viva ou tenha nascido. O pacto tem influência marcante da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que compreende o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria e sob condições que lhe permitam gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos (PIRES, 2016, p. 4).

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Dessa forma, pode-se constatar que o instituto da Audiência de Custódia, ao passar a vigorar no direito processual penal brasileiro, com base nas previsões normativas estabelecidas nos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos, o faz a partir da promulgação dessas normas no plano legislativo interno em 1992, por via dos Decretos Legislativos nº 592, de 06 de junho de 1992 e o Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992, respectivamente.

Este instituto (Audiência de Custódia), frise-se, deve compatibilizar-se com a operabilidade de seus atos, pressupostos e procedimentos em face dos vigentes no plano interno, de acordo com os ditames conferidos em normas firmadas no plano internacional. Ressalta-se, porém, que essas normas internacionais, ratificadas pelo Estado Brasileiro, não impuseram que internamente fosse adotado e aplicado esse instituto, de maneira unilateral e, sim, que no Brasil, por ocasião do seu comprometimento, por meio dos Decretos Legislativos editados, o instituto deverá ser aplicado no Sistema Processual Penal interno.

Todavia, a partir da Emenda Constitucional nº 45/04, que inseriu na Constituição Federal o Art, 5º, §3º, os aludidos Tratados obtiveram o status de norma “supralegal”, posicionando-se em nível superior à legislação nacional e inferior à Constituição[12]. Demonstrou-se assim que, por possuírem status supralegal, seus regramentos devem ser observados e aplicados no plano interno.

Faz-se importante destacar que no julgamento da ADI 5240, de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o artigo 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, ao dispor que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”, faz com que os efeitos de toda a legislação ordinária conflitante com esse preceito convencional sejam sustados, conforme entendimento do julgado da referida ADI, ao ser mencionada em voto a questão da prisão civil do depositário infiel em face dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, ao se reafirmar que essa normas internacionais possuem precedente de validade supralegal. Confira-se:

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. PRECEDENTES - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - CONFIGURAÇÃO DO “PERICULUM IN MORA” - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.” (ADI 4.015 MC, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, DJe de 06/12/2014). [...] O rito procedimental do   habeas corpus segundo a Constituição Federal, a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Código de Processo Penal. [...] Isso se deve ao caráter supralegal que os tratados sobre direitos humanos possuem no ordenamento jurídico brasileiro, como ficou assentado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 349.703, relator para acórdão o Min. GILMAR MENDES, Pleno, DJe de 05/06/2009: POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, ADI 5240,2015).

Entretanto, apesar da posição hierarquicamente superior dos Tratados que versam matérias sobre Direitos Humanos posicionarem-se no ordenamento jurídico interno em patamar superior ao Código de Processo Penal, nota-se que o instituto da Audiência de Custódia não se encontra regulamentado na legislação interna e, consequentemente, não especifica o regramento da matéria.  Em que pese, adverte o professor Paiva (2015. p. 34) pode-se abstrair que os procedimentos previstos pela Audiência de Custódia, em outros países, há muito são uma situação corriqueira, o que no Brasil, somente após 1992 passou a ser um tema aplicado pelo Sistema Processual Penal, porém, ainda, por demais debatido e controvertido.

Diante disso, verifica-se que pouco a pouco, no Brasil, a liberdade foi se consolidando como um direito essencial à dignidade humana, respaldada no ordenamento constitucional e na normatividade internacional. Por liberdade, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) compreende, de acordo com a jurisprudência das cortes internacionais, como sendo o poder de escolher livremente as opções e circunstâncias que conferem sentido à sua existência, conforme suas próprias convicções. Segundo o Relatório da Comissão, tais direitos impõem “[...] limites expressos à atuação do Estado e de seus agentes, especialmente quando são aplicadas medidas de coerção aos cidadãos. Qualquer forma de privação ilegal e arbitrária da liberdade dos indivíduos deve ser considerada proibida. Trata-se de uma proibição de caráter imperativo, imposta a todos os Estados (norma de jus cogens)” (BRASIL, 2014, Cap.VII. p. 280).

Fatos recentes no Brasil demonstram que medidas buscando evitar violações de direitos, com a privação de liberdade abusiva, propiciaram e contribuíram para o surgimento da Audiência de Custódia, objetivando tentar reduzir arbitrariedades, sobretudo, quanto ao encarceramento desnecessário. O Brasil, como signatário dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos citados, se obrigou a instituir a Audiência de Custódia. Apesar disto, apenas no ano de 2011 foi apresentada uma proposta de Projeto de Lei no Senado Federal (PLS) nº 554/2011, visando modificar o Art. 306 do CPP[13], acrescentando-se os seguintes pressupostos:

§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do Juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.  § 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos do art. 310. § 3º A oitiva a que se refere o parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.  § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pelo Delegado de Polícia, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.  § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderá inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código (BRASIL, 2011, PLS nº 554).

Por outro lado, Pires (2016, p.7) salienta que, diante da inércia do Poder Legislativo Federal em votar o PLS 554/11, bem como as superlotações dos presídios brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pretendendo implantar a Audiência de Custódia, com a maior brevidade possível, impôs diretrizes e regulamentou todos os procedimentos, iniciando-se por alguns Tribunais Criminais de São Paulo (capital), incentivando o início dos trabalhos, a título de projeto piloto.

Ao abordar esse cenário, a implementação da Audiência de Custódia, sublinha Pires (2016, p.7) que o “[...] referido projeto foi implantado através do Provimento Conjunto 3/2015, da presidência do Tribunal de Justiça do estado, em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça e do Ministério da Justiça”.

Subjacente a esta proposta da implementação do Provimento Conjunto 03/2015, do CNJ[14], como afirma Pires (2016, p. 7) “o Estado do Maranhão foi o primeiro a regulamentar a prática das audiências de custódia no Brasil, antes mesmo do projeto piloto instituído pelo CNJ em São Paulo, no dia 10 de novembro de 2014, quando o Tribunal de Justiça do Maranhão, por meio do Provimento nº 14/201412 da Corregedoria”[15]. Tal medida, que foi adotada por outros Estados, e em 14/10/2015, pelo Distrito Federal (DF) fecha o ciclo de implantação do projeto em todas as unidades da Federação.

Contrário a isso, Pires (2016, p.9) acrescenta que, no estado de São Paulo, membros do Ministério Público paulista se mostraram contrários à implantação da Audiência de Custódia. A Associação Paulista do Ministério Público (APMP), que representa os membros do órgão no estado, tentou suspender a implantação dessas audiências, por meio da alegação de que a medida é "um remédio errado para uma doença evidente"[16]. Para a APMP, discorre Luchete (2015), apenas uma lei federal poderia ter determinado esse modelo. Como o Tribunal de Justiça de São Paulo criou a medida por um provimento, a Associação alega que a corte quis legislar por conta própria, fixando regras para a polícia e para o Ministério Público. Tal pleito foi rejeitado pelo desembargador relator do Tribunal de Justiça de São Paulo ao concluir que essa não era a via adequada para manejar Mandado de Segurança em face da implantação do referido projeto, denegando liminar em Ação de Mandado de Segurança.

E a esse respeito, ainda, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL/BRASIL, ajuizou ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, como anteriormente mencionado, ADI 5240, com pedido de medida cautelar, arguindo a inconstitucionalidade da totalidade dos dispositivos do Provimento Conjunto 03/2015, da Presidência do Tribunal de Justiça e da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que disciplinou as audiências de custódia no âmbito daquele tribunal, nos seguintes termos:

[...] alega a autora que é entidade de classe de âmbito nacional, atuando na defesa das prerrogativas, interesses e direitos de Delegados de Polícia, civis e federais, em mais de nove Estados da Federação, de modo que teria legitimidade para ajuizar a presente ação direta de inconstitucionalidade, com base no artigo 103, inciso IX, da Constituição Federal. Também sustentou a pertinência temática da ação, uma vez que a norma impugnada instituiria deveres funcionais para os Delegados de Polícia de São Paulo, bem como o seu cabimento para a impugnação de ato normativo regulamentar, uma vez que, no seu entender, o provimento impugnado teria caráter inovador na ordem jurídica e não meramente regulamentar, sendo possível, assim, o seu controle de constitucionalidade pela via direta. No mérito, arguiu que o regramento da audiência de custódia, por ter natureza jurídica de norma processual, dependeria da edição de lei federal, por força dos artigos 22, inciso I, e 5º, inciso II, da Constituição Federal, havendo, inclusive, projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado tratando do assunto (projetos de lei nº 7.871/2014 e 554/2011, respectivamente). Dessa forma, o provimento do TJSP estaria suprindo lacuna legal e extrapolando de forma inconstitucional o poder regulamentar daquele tribunal. Prossegue a autora aduzindo que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) tampouco poderia servir de fundamento para a edição do provimento atacado, visto que, segundo entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343, tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil ingressariam no ordenamento jurídico nacional com status supralegal, de modo que, na sua ótica, não seria possível a sua regulamentação direta através da espécie normativa empregada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Por fim, apontou a inconstitucionalidade da norma impugnada à luz do princípio da proibição do excesso e a existência de dificuldades operacionais na execução das audiências de custódia, requerendo, liminarmente, a suspensão da eficácia do Provimento Conjunto 03/2015 e, no mérito, a declaração da sua inconstitucionalidade integral (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, ADI 5240, 2015).

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal, ao finalizar a análise de cada um dos dispositivos arguidos do provimento 03/2015, salientou que esses limitaram-se, tão somente, a regulamentar previsões legais e convencionais já referidas, sem, contudo, extrapolar ou contrariar o conteúdo de tais normas. Portanto, o provimento explicitou de maneira esparsa dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos do Homem e do Código de Processo Penal, oportunizando uma melhor compreensão, de maneira mais clara e sistemática, indispensável ao cumprimento das normas legais e convencionais vigentes sobre a matéria. Porém, tal compreensão não possibilita a promoção de um controle de sua constitucionalidade, a fim de obstar ou resolver possível inconformismo entre esse regulamento e a lei. Assim, o STF deixa de conhecer a ação direta de inconstitucionalidade quanto aos artigos arguidos do Provimento Conjunto 03/2015 do TJSP.

Nesse amplo contexto de discussões, com mais uma provocação da Suprema Corte, por ocasião, favorável à adoção da Audiência de Custódia, registra-se que o Partido Socialismo e Liberdade – PSOL buscou, por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) – ADPF 347/15, com pedido de medida liminar, que fosse reconhecida a figura do “estado de coisas inconstitucionais” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro e à adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos presos, que, naquela oportunidade, alegava-se decorrerem de ações e omissões dos Poderes Públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal[17].

De maneira breve pode-se citar, também, a título de contribuição ao estudo, que, a referida ADPF 347/2015, sustentou na argumentação e debates questões sobre o cenário acerca da violação de diversos preceitos fundamentais da Constituição de 1988: o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), a proibição da tortura, do tratamento desumano ou degradante (artigo 5º, inciso III) e das sanções cruéis (artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”), assim como o dispositivo que impõe o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e sexo do apenado (artigo 5º, inciso XLVIII), o que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX) e o que prevê a presunção de não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII), os direitos fundamentais à saúde, à educação, à alimentação apropriada e o acesso à Justiça[18].

Após o julgamento dessa ADPF, em diferentes medidas, assevera Oliveira (2016, p.327) que a Lei nº 12.403/11, anteriormente introduziu alterações no texto legal do Código de Processo Penal; porém, ainda representava modesta contribuição que não foi ao encontro do arguido pela ADPF 347/15. A propósito, diz Oliveira “[...] a origem da Audiência de Custódia está fulcrada em pactos internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário e a sua finalidade foi estabelecer no Sistema Processual brasileiro, evolução essa a qual não pode deixar de acompanhar” (OLIVEIRA, 2016, p.327), pois, percebe-se que foi o ponto central da ADPF 347/15.

Por certo, é impossível comparar realidades, mas até aqui percebeu-se que a evolução processual foi por demais importante para delinear os contornos da proposta do procedimento pré-processual da Audiência de Custódia. Todavia, há vários momentos de relevante importância nessa evolução; citá-los até aqui enriquece a reflexão. Mas, na verdade, é imprescindível destacar a ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) diante do passo decisivo para a regulamentação, sistematização e implementação desse instituto no Brasil, a partir da Edição da Resolução 213/15, a qual procurou uniformizar os procedimentos da realização dessa Audiência, com base no uso das atribuições legais e regimentais do seu Presidente. Essa Resolução trouxe luz a questões que ainda serão percorridas e discutidas nesse estudo.

2.2 Princípios Constitucionais e Processuais que norteiam a Audiência de Custódia 

Ao ser estudada em termos de preservação de garantias individuais, a adoção da Audiência de Custódia resguarda direitos fundamentais do cidadão perante o poder persecutório do Estado, conforme alude Pires (2016, p.258), ao dizer que o instituto reduz a prática do encarceramento e a possibilidade de o Poder Judiciário aplicar outras medidas cautelares. Essas garantias são inspiradas em Princípios Constitucionais e Processuais que orientam a implementação do instituto.

2.2.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana 

 Cabe ressaltar ser inquestionável que um dos princípios mais relevantes na aplicação dos Direitos Humanos, e o de maior influência de todo o sistema jurídico, principalmente à implementação da Audiência de Custódia, perpassa o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, expresso no Art. 1º, Inciso III da Constituição Federal.[19]Tendo em vista a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, verifica-se que o processo penal deixa de servir apenas como instrumento de imposição de pena a qualquer custo; pelo contrário, como afirma Silveira (s.d., p.6)*.

passa ter a ideia de ser ele um instrumento investigatório, desenvolvido com fiel observância ao devido processo legal, em diversos aspectos, que visa a apurar as circunstâncias em que um determinado fato com relevância criminal ocorreu, com vistas a apontar ou não a responsabilidade penal do acusado, sem comportar práticas que exponham o homem a situações degradantes, de vexame ou de tortura (SILVEIRA, s.d., p.6).

É possível avaliar que, contando com quase trinta anos da vigência da Constituição Federal e passados mais de vinte da possibilidade de o preso ser entrevistado por uma autoridade judiciária quando de sua prisão, impõe-se que o Estado brasileiro assegure a eficácia dos mandamentos supralegais firmados ao cumprir esse direito sob o risco de desrespeitar a dignidade das pessoas presas. Assim sendo, o tema também é debatido por Silveira (s.d., p. 6) ao reafirmar que

Garantido o contato pessoal com a autoridade judiciária, o preso poderá expor a sua situação social, familiar e profissional, podendo neste momento demonstrar que faz jus ao direito da liberdade provisória ou mesmo à substituição da prisão cautelar por outra medida menos gravosa, como as inseridas no sistema através da Lei 12.403/2011(SILVEIRA, s.d., p.6).

2.2.2 Princípio do Devido Processo Penal

É imperioso considerar que o devido processo legal ingressa no ordenamento jurídico a ideia da elaboração de um procedimento legal. Isso se dá em razão de que é por meio dele que o preso pode deduzir sua ampla defesa e o seu contraditório. Tal princípio encontra-se previsto no art. 5º, Inciso LIV, da CR[20]. Todavia, assim como a Audiência de Custódia, mesmo com a regulamentação proposta pelo CNJ para a sua procedimentação, esse instituto decorre da normatização de normas internacionais, as quais não descrevem um rito próprio para a sua realização. Assim, não haverá afronta ao Princípio do Devido Processo Legal a partir do momento em que se observem as garantias e os direitos fundamentais do preso e o seu recolhimento e condução sem demora à presença de uma autoridade judiciária para a adoção das medidas previstas nas normas supralegais. Cumpre salientar que, quando da normatização, em âmbito do ordenamento jurídico processual penal pátrio, será possível com mais nitidez ver a configuração desse princípio nas Audiências de Custódia promovidas[21].

2.2.3 Princípio da Ampla Defesa

Não é despiciendo citar que o Princípio da Ampla Defesa assegura o mais legítimo dos direitos do homem, a sua defesa. Para Pires (2016, p.10), esse é o princípio que assegura a defesa mais ampla possível ao preso. É o princípio que garante a defesa no âmbito mais abrangente possível. Está previsto no art. 5º, LV, da CR[22], sendo comportados por esse princípio manejar todas e quaisquer modalidades de provas legítimas no ordenamento jurídico, ou seja, a ampla defesa será assegurada “com os meios e recursos a ela inerentes”   Pires (2016, p.10). Neste contexto, diz Pires (2016):

[a] ampla defesa é cláusula de garantia individual instituída precisamente no interesse do acusado.  A Audiência de Custódia tem como uma de suas finalidades a oitiva do acusado pelo magistrado possibilitando, assim, o contraditório e a ampla defesa e, não levando em consideração apenas o auto de prisão em flagrante lavrado pela autoridade policial (PIRES, 2016, p. 10).

Distingue-se no processo penal duas formas de ampla defesa: uma considerada técnica, que será prestada por um advogado; e a outra, pelo próprio preso, denominada de autodefesa. Esta última, segundo Silveira (s.d., p. 8)

[...] no nosso sistema processual penal tem lugar principalmente no ato de interrogatório, oportunidade que o acusado tem o direito de não se autoincriminar (nemo tenetur se detegere) e também o de se entrevistar diretamente com o seu julgador, expondo-lhe a sua versão dos fatos e os motivos que geraram aquela prática (SILVEIRA, s.d., p.8). 

2.2.4 Princípio do Contraditório

Expressamente previstos no art. 5°, inc. LV, da CR, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” [23]. No CPP, especificamente, no art. 310, não há previsão de entrevista do preso com a autoridade judiciária (Juiz) e com os demais sujeitos processuais (membro do Ministério Público e o Defensor).

É importante salientar que, com a previsão da Audiência de Custódia esse contraditório deve ser garantido. Logo, em reforço a essa posição Silveira (s.d., p. 9) salienta que “eventuais provas produzidas nessa audiência estarão acobertadas pelo manto do contraditório e poderão ser utilizadas na formação do livre convencimento do futuro juiz da causa, com efeitos similares à produção antecipada de provas” [24].

Cita Pires (2016, p.11) que “durante a realização da audiência de custódia o autuado poderá exercer seu direito de conhecer e contradizer os fatos descritos no auto de prisão em flagrante”. Entretanto, a produção antecipada de provas para instruir futura ação penal não constitui objeto da Audiência de Custódia, pois suas finalidades dizem respeito ao cumprimento da pauta de direitos humanos do preso em flagrante delito, seja em respeito à sua dignidade, seja quanto à avaliação de fundamentos para a ratificação da custódia cautelar com a consequente conversão em prisão preventiva, a teor das normas supralegais e do Regulamento estabelecido pelo CNJ. Todavia, segundo Pires (2016, p. 11) a observância do princípio do contraditório ajuda a compreender a realização da Audiência de Custódia. Esse princípio é aplicado em fase pré-processual com o status de direito de audiência, ou seja, conforme previsto no art. 306 do CPP -, direito de ouvir o preso. Da mesma maneira, deve-se observar a aplicação do art. 282, §3º, quando o contraditório permeia a adoção de qualquer aplicação de medida cautelar.

2.2.5 Princípio da Presunção de Inocência ou da Não Culpabilidade

No que concerne ao Princípio da Presunção de Inocência, previsto na Constituição Federal, no art. 5º, inciso LVII, o caráter desse princípio é dialogar com três dimensões, como nos permite refletir Pires (2016, p.11), sobretudo, na Audiência de Custódia. A primeira é a dimensão probatória, na qual estabelece o ônus da prova subjetiva (acusação) e o ônus da prova objetiva (defesa) -, regra conforme o brocardo “in dubio pro reo”. A segunda é a dimensão de garantia, ocasião em que o Estado deve envidar esforços para observar o estado de inocência do preso, sem antecipar a culpa, tratando a pessoa do preso como inocente. A terceira e última é a regra do próprio tratamento em audiência de custódia, a qual veda qualquer tipo de prejulgamento antecipando culpa ao preso; esse deve ser tratado como inocente.

2.2.6 Demais princípios orientadores da Audiência de Custódia

O princípio do nemo tenetur se detegere, desenvolvido a partir da dignidade da pessoa humana, segundo Silveira (s.d., p.11) traz a premissa de que não se pode exigir que a pessoa acusada de um crime, e sujeita a ser punida por isso, seja obrigada a fornecer elementos que colaborem na demonstração de sua culpa. A CR/88 incorporou o princípio em tela, dispondo em seu art. 5°, LXIII que “o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado[...]”[25], garantindo desta forma o direito de não se autoincriminar. Especificamente no que toca à audiência de custódia, o sucesso dela, enquanto medida de implementação dos direitos humanos ao sujeito preso em flagrante delito, passa necessariamente pelo cumprimento dos postulados extraídos da vedação à imposição ou sugestão de autoacusação, o que pressupõe uma especial atenção à advertência clara e específica do direito de manter-se calado e de não se autoincriminar, no primeiro momento de contato do preso com a autoridade judiciária que estiver presidindo o ato[26].

            Explicadas essas questões quanto à não incriminação, é possível tratar do princípio da razoável duração do processo. Esse princípio, como afirma Silveira (s.d., p. 11)

 no que diz respeito ao processo penal, a questão é de suma importância, pois a não observância da celeridade importa em negar à Sociedade uma resposta à sua pretensão de ver o réu julgado pela conduta antissocial que lhe é imputada. Por outro lado, o acusado tem o direito de não sofrer com as consequências do processo penal além do tempo necessário, submetendo-se por largo lapso temporal aos notórios efeitos decorrentes da condição de réu em um processo penal, o que já constitui um drama para o indivíduo, com reflexos em sua dignidade (SILVEIRA, s.d., p.11)*.

Por outro lado, a audiência de custódia deve observar o princípio da simplicidade, evitando atos desnecessários e burocráticos, de modo a garantir que não seja prejudicada por equivocadas alegações de ela se constituir em mais um obstáculo de celeridade ao processo.

Para Silveira (s.d., p.12), na forma como se vem instituindo a Audiência de Custódia, é preciso atentar para o princípio da individualização da prisão ou das cautelares. Esse princípio impõe ao juiz concretamente a necessidade de individualizar qual o tipo de medida cautelar a ser adotada, pois essa pode vir a privar direitos da pessoa do preso. O juiz precisa fundamentar qual o perigo processual observando o periculum libertatis, a fim de aplicar uma medida compatível[27].

Além disso, extrai-se dos artigos 9º e 10º da Resolução do CNJ, número 213 de 2015 que regulamentou a apresentação da pessoa presa em Audiência de Custódia, o princípio da provisoriedade. Sumamente este princípio impõe que as medidas adotadas não podem ir além do que for julgado necessário, devendo ser observados os prazos de cumprimento das medidas e sua reavaliação periódica[28]. Sua inspiração também se baseia no art. 7º, item 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

  É possível destacar ainda os princípios da proporcionalidade e da homogeneidade na realização da Audiência de Custódia, ou seja, o juiz deve, na Audiência, avaliar qual a medida cautelar mais adequada. Talvez o aprisionamento não seja a melhor opção, por isso, adota-se outra, que será levada ao processo posteriormente. Já este estabelece uma homogeneidade entre o caso e a medida cautelar aplicada. Esse é um exercício que deve ser feito pelo juiz com aspecto prospectivo[29].

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Sobre o autor
Alberto Luiz Alves

da Reserva da Polícia Militar de Minas Gerais. Especialista em Segurança Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais. Especialista em Gestão Estratégica em Segurança Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais. Especialista em Comunicação Social pela Universidade Newton Paiva. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS). Professor de Direito Penal e Processo Penal Comum e Militar. Professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional. Professor de Comunicação Social.

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