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A anencefalia e o crime de aborto:

atipicidade por ausência de lesividade

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09/11/2005 às 00:00
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O abortamento do feto anencéfalo não é crime, sendo caso de atipicidade da conduta pela ausência de lesividade ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal "aborto".

Sumário: 1. Introdução; 1.1. Números da Matéria; 2. Anecefalia; 3. Aborto; 4. Dignidade da Pessoa Humana; 4.1. Evolução da Concepção Atual da Dignidade; 4.2. Tentativa de Conceituação e Caracteres; 5. Direito à Vida; 6. Princípio da Lesividade; 7. Princípio da Proporcionalidade; 8. Crime de Aborto; 9. Conclusões; 10. Obras Consultadas.


1. Introdução

O abortamento tem-se mostrado como um dos temas que mais suscitam discussão e polêmica em nossa sociedade, encontrando desde os que defendem a descriminalização completa da conduta até os que lutam pela sua proibição absoluta e incondicional. O tema ressurge de tempos em tempos, ao sabor de fatos marcantes da ocasião.

A interrupção da gravidez, mais especificamente quando se trata de feto portador da anencefalia, retorna ao cenário nacional de discussões graças à divulgação na mídia de uma Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54/DF) ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde. Apresenta-se o seguinte questionamento: deve-se permitir o prosseguimento de gestação de feto sem qualquer viabilidade de vida?

A referida ADPF é de grande importância, já que dificilmente chegam aos tribunais superiores pedidos de autorização para abortamento, embora o abortamento exista de fato, ainda que clandestinamente. Por outro lado, ainda que tais pedidos de autorizações sejam submetidos ao Judiciário, a lentidão do maquinário jurisdicional ou mesmo o forte ranço religioso que marca a formação de muitos profissionais do direito impede a apreciação em tempo oportuno da questão.

O nosso objetivo com o presente texto consiste em analisar especificamente o abortamento em casos de anencefalia, primando por uma abordagem puramente jurídico-científica, concernente primordialmente à temática ética e penal. Não se ambiciona aqui solucionar indiscutivelmente o problema, posto a complexidade das paixões envolvidas e as evidentes limitações do autor. Busca-se, entretanto, dar contornos mais objetivos e práticos à matéria.

1.1. Números da Matéria

O tema tem despertado grande interesse e polêmica atualmente, sendo citados conjuntamente os termos "anencefalia"e"aborto", em cerca de 9.140 sites da Rede Mundial [01].

Segundo pesquisa encomendada ao IBOPE, 76% da população brasileira é favorável ao aborto no caso de problemas congênitos incompatíveis com a vida, como é o caso da anencefalia. Por outro lado, relativamente às hipóteses legalmente permitidas, 79% da população é favorável ao aborto no caso de risco de morte para a mulher, enquanto que, 62% apóiam com o aborto em caso de gravidez resultante de estupro (ÉPOCA, 2005, pág 65).

Marcos Valentin Frigério, Ivan Salzo, Silvia Pimentel e Thomaz Rafael Gollop realizaram um trabalho intitulado Aspectos Bioéticos e Jurídicos do Abortamento Seletivo no Brasil. Durante este trabalho, os autores estudaram 263 pedidos de alvarás para interrupção da gravidez em casos de anomalias incompatíveis com a vida.

Nestes 263 casos estudados, o Ministério Público opinou pelo deferimento do alvará em 201 (76,43%) casos e pelo indeferimento em 62 (23,57%). Em contrapartida, o juiz decidiu pelo deferimento em 250 (95,06%) casos e pelo indeferimento em apenas 13 (4,94%).

Os embasamentos jurídicos das decisões e pareceres pelo deferimento e pelo indeferimento dos pedidos foram variados, como se pode observar nas tabelas abaixo:

Tabela I: Embasamento jurídico da sentença judicial e do parecer da promotoria favorável a pedido de aborto seletivo.

Embasamento jurídico no deferimento

Juízes

MP

Inexibilidade de conduta diversa

1

2

Artigo 5º. da Constituição

3

4

Preservar a higidez psíquica da gestante

63

41

Inexibilidade de conduta diversa + Preservar a higidez psíquica da gestante

1

2

Inexibilidade de conduta diversa + Artigo 5º da Constituição + Preservar a higidez psíquica da gestante

7

5

Preservar a higidez psíquica da gestante e autoriza o aborto pelo art. 128

17

5

No Artigo 5º. da Constituição + art. 3º, Código de Processo Penal e princípios gerais do direito nos princípios de jurisdição voluntária e art. 1104 e seguintes do Código Penal

78

32

Estado de Necessidade + Aplicando-se anologia "in bonam parte" usando art. 124 CP c/c o Art. 128,I e II + Artigo 5º. da Constituição

1

4

Autoriza o aborto nos termos do art. 128,I e II do CP

39

24

Aplicando-se anologia ïn bonam parte" usando art. 124 CP c/c o Art. 128,I e II

13

29

No Artigo 5º. da Constituição + art. 3º, Código de Processo Penal e princípios gerais do direito nos princípios de jurisdição voluntária

6

5

Não há crime em realizar o aborto pois o feto não tem mais vida a ser tutelada

6

3

Não encontra amparo no direito normativo

3

2

Sem acesso a informação / julgado na 2ª. Instância

12

43

TOTAL

250

201

Tabela II: A argumentação dos juízes e promotores contra a autorização do aborto seletivo.

Embasamento jurídico no indeferimento

Juízes

MP

Não se opões desde que haja risco de vida materno

0

1

Não configura estado de necessidade

4

5

Não encontra amparo no direito normativo

9

53

Invioabilidade do direito a vida

0

3

TOTAL

13

62

Assim, fácil perceber que a grande maioria da população, bem como dos profissionais da área jurídica, são favoráveis à interrupção da gravidez no caso de anomalias absolutamente incompatíveis com a vida, como é o caso da anencefalia. Entretanto, ainda existe certa dúvida quanto à fundamentação jurídica adequada para sustentar as decisões judiciais neste sentido.


2. Anencefalia

A discussão sobre o aborto do feto anencéfalo tem que passar, necessariamente, por uma melhor compreensão do que vem a ser a anencefalia. Sobre o tema, de um ponto de vista médico, os Doutores Carlos Gherardi e Isabel Kurlat escreveram o esclarecedor texto Anencefalia e Interrupción del Embarazo - Análisis médico y bioético de los fallos judiciales a propósito de un caso reciente. As conclusões deste trabalho são reproduzidas a seguir, de forma resumida e em tradução livre.

A anencefalia é uma alteração na formação cerebral resultante de falha no início do desenvolvimento embrionário do mecanismo de fechamento do tubo neural e que se caracteriza pela falta dos ossos cranianos (frontal, occipital e parietal), hemisférios e do córtex cerebral. O tronco cerebral e a medula espinhal estão conservados, embora, em muitos casos, a anencefalia se acompanhe de defeitos no fechamento da coluna vertebral. Aproximadamente 75% dos fetos afetados morrem dentro do útero, enquanto que, dos 25% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana.

Na anencefalia, a inexistência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex) provoca a ausência de todas as funções superiores do sistema nervoso central. Estas funções têm a ver com a existência da consciência e implicam na cognição, percepção, comunicação, afetividade e emotividade, ou seja, aquelas características que são a expressão da identidade humana. Há apenas uma efêmera preservação de funções vegetativas que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e as dependentes da medula espinhal. Esta situação neurológica corresponde aos critérios de morte neocortical (high brain criterion), enquanto que, a abolição completa da função encefálica define a morte cerebral ou encefálica (whole brain criterion).

A viabilidade para a vida extra-uterina depende do suporte tecnológico disponível (oxigênio, assistência respiratória mecânica, assistência vasomotora, nutrição, hidratação). Há 20 anos, um feto era considerado viável quando completava 28 semanas, enquanto que hoje, bastam 24 semanas ou menos. Faz 10 anos que um neonato de 1 kg estava em um peso limite, mas hoje sobrevivem fetos com 600 gramas. A viabilidade não é, pois, um conceito absoluto, mas variável em cada continente, cada país, cada cidade e cada grupo sociocultural. Entretanto, em todos os casos, a viabilidade resulta concebível em relação a fetos intrinsecamente sãos ou potencialmente sãos. O feto anencefálo, ao contrário, é intrinsecamente inviável. Dentro e um quadro de morte neocortical, carece de toda lógica aplicar o conceito de viabilidade em relação ao tempo de gestação. O feto será inviável qualquer que seja a data do parto.


3. Aborto

Para o Dicionário Aurélio, aborto é a "interrupção dolosa da gravidez, com expulsão do feto ou sem ela" (FERREIRA, 1999). Não há grande debate sobre a definição do que vem a ser aborto, mas a classificação do tema suscita muitas paixões e intermináveis controvérsias. A lição de Débora Diniz [02], na qual nos baseamos, parece a mais objetiva e sistemática.

Basicamente, pode-se reduzir as situações de aborto a quatro grandes grupos:

a) Interrupção eugenésica da gestação (IEG): são os casos de abortos ocorridos em nome da eugenia, isto é, situações em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente, apontam-se os atos praticados pela medicina nazista como exemplo de aborto eugenésico, quando as mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra geral, o aborto eugenésico se processa contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a abortar;

b) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos de abortos ocorridos em homenagem à saúde materna, isto é, em situações onde a interrupção da gravidez visa salvar a vida da gestante. Hoje em dia, com o avanço científico e tecnológico na medicina, os casos de aborto terapêutico são cada vez em menor número, sendo raras as situações terapêuticas que exijam tal procedimento;

c) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de abortos ocorridos em virtude de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que motivam as solicitações de aborto seletivo são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina, sendo exemplo clássico o da anencefalia;

d) Interrupção voluntária da gestação (IVG): são os casos de abortos ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, ou seja, onde a gestação é interrompida porque a mulher ou o casal não deseja a gravidez, seja por ser ela fruto de um estupro ou de uma relação consensual. Geralmente, a legislação que admite esta modalidade de aborto impõe limite cronológico à prática.

Com exceção do aborto eugenésico, todas as outras formas de aborto, por princípio, levam em consideração a vontade da gestante ou do casal. O termo eugenia, entretanto, mais por uma estratégia de argumentação que por real correspondência, tem sido utilizado para descrever a corrente que defende a liberação do aborto de fetos anencéfalos.

O término "seletivo" da gravidez (ISG), como explicado, ocorre no caso daquele feto que, devido a uma má formação fetal, faz com que a gestante ou o casal não deseje o prosseguimento da gestação. É certo que, neste caso há uma seleção (como na eugenia), entretanto, ela foi feita com a concordância da gestante e em razão da impossibilidade da vida extra-uterina ou da qualidade de vida do feto depois do nascimento.

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Entretanto, mesmo dentro da definição de aborto seletivo (ISG), há necessidade de se distinguir e tratar de forma diferente os casos em que o feto vai se tornar uma criança portadora de deficiência dos casos nos quais o feto não possui qualquer viabilidade para vida extra-uterina. O nascimento de uma pessoa portadora de deficiência é merecedor de proteção legal plena, posto que se trata aqui de viabilidade plena para a vida, mesmo que possa haver alguma limitação. A questão que se debate é com relação às anomalias plenamente incompatíveis com a vida, onde a gestação é conduzida com a certeza absoluta da não sobrevivência.

Por fim, embora seja tema de capítulo posterior, é de se destacar que, no Brasil, o aborto apenas é permitido expressamente no caso de risco de vida para mãe (ITG) e no caso de gravidez resultante de estupro (IVG).


4. Dignidade da Pessoa Humana

Embora muitos doutrinadores considerem o direito à vida antecedente necessário de todos os demais direitos fundamentais, esta análise é de natureza puramente cronológica. O direito à vida, de nosso ponto de vista, é conseqüência lógica da dignidade da pessoa humana.

Neste mesmo sentido, a Constituição Federal considerou a dignidade da pessoa humana fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III), sendo o princípio-valor fundamental segundo o qual devem ser interpretados todos os demais diretos.

Assim, antes mesmo de se falar em direito à vida, necessário compreender a dignidade da pessoa humana e seus caracteres principais.

4.1. Evolução da Concepção Atual da Dignidade

A construção da atual concepção do pensamento ocidental sobre a dignidade da pessoa humana deve seus primórdios à filosofia grega. A Grécia Antiga rompeu com a tradição de se dar explicações mitológicas às forças da natureza e criou um racionalismo baseado na observação para explicar os fenômenos naturais, enumerando uma série de leis e princípios necessários e universais. Além disso, os pensadores gregos estabeleceram que o homem é detentor da plena capacidade de compreender a natureza e seus fenômenos.

Rabenhorst (RABENHORST, 2001, pág 15) lembra a contribuição grega:

(...) uma das primeiras reflexões acerca do lugar do homem no mundo aparece na tragédia Antígona, de Sófocles (442 a.C.). Nela encontramos a idéia de que o homem é uma exceção dentro do conjunto da natureza: Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem (Antígona, v 332-335). O grande trágico grego vê, pois, no homem, uma clara superioridade com relação às outras espécies. Tal superioridade advém não apenas da quantidade de coisas que este ser é capaz de realizar, mas principalmente da qualidade de suas habilidades: ele sabe ensinar a si próprio, sabe cultivar a terra, domesticar animais, atravessar o mar...

Os gregos antigos acreditavam que os homens se distinguiam dos demais animais pelo uso da razão, ou seja, pela capacidade de compreender o mundo e de utilizar a lógica. A palavra grega logos, aliás, significava, entre outras coisas, o uso da razão e da linguagem. E era justamente na razão, na lógica, onde residia, para os gregos, a dignidade.

Importante ressaltar, entretanto, que a dignidade, para os gregos, não se manifestava da mesma forma para todos os indivíduos. Em Atenas, por exemplo, apenas os atenienses do sexo masculino, filhos de atenienses e no perfeito gozo de suas liberdades, possuíam cidadania e tinham assegurado o pleno exercício da palavra e a isonomia. Mulheres, escravos e estrangeiros eram considerados inferiores e não participavam da vida pública.

A dignidade (dignitas), pois, tinha relação com a posição social ocupada pelo indivíduo, sendo possível se falar em sua quantificação e modulação, sendo reconhecidos alguns homens como mais dignos que outros.

O pensamento estóico – como é conhecida a produção filosófica de Stoa (Pórtico) – apareceu no período da subjugação dos gregos pelos romanos e defendia que todos os homens são livres e iguais, já que neles se manifesta uma idêntica capacidade de pensar (logikós). Desta identidade concluíram os estóicos que todos os homens são membros de uma mesma comunidade (oikeiôsis) fraternal, sendo esta uma lei natural superior às leis artificiais do homem. Neste sentido, os estóicos repudiavam veementemente a escravidão como instituição social. Para eles, a única forma legítima de desigualdade entre os homens seria de natureza moral, havendo homens mais sábios ou virtuosos (sophoi) que outros, insensatos e escravos das paixões (phauloi).

Assim, na antiguidade, coexistiam as noções de dignidade moral (acepção estóica) e dignidade sociopolítica (no sentido de posição social e política ocupada pelo indivíduo).

Com o advento da doutrina cristã, passou-se a difundir a idéia de que o homem foi concebido à imagem e semelhança de Deus. Neste aspecto, todos os homens são iguais, portadores de um valor próprio que lhes é intrínseco. Além disso, o cristianismo passa a propor uma salvação pessoal baseada na escolha de cada um, na liberdade, no livre-arbítrio. A concepção cristã deslocou o foco da filosofia da sociedade como um todo para o indivíduo. A visão da dignidade perdeu a dimensão quantitativa que possuía no mundo antigo, deixando de ser uma honraria ou distinção decorrente da situação social do indivíduo, para adquirir uma dimensão qualitativa, no sentido de que nenhum indivíduo possuiria maior ou menor dignidade, mas todos manifestariam uma idêntica estrutura espiritual. Neste sentido, cada homem, não importando sua origem ou condição social, seria intrinsecamente valioso e indistintamente digno de respeito.

Ressalte-se que esta bela doutrina nem sempre foi efetivada na prática, negando a Igreja Católica, por vezes, a humanidade de índios e negros, por exemplo. Do mesmo modo, a Igreja Católica também legitimou todo o sistema de estratificação social do feudalismo, sistema este que evidentemente distinguia os homens.

Tomás de Aquino, que chegou a se referir expressamente à dignitas humana, procurou conjugar a doutrina cristã e a acepção estóica da dignidade clássica. Para o pensador, quando Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, dotou-o de razão, qualidade peculiar que lhe permite construir sua vida de forma livre e independente. Esta capacidade de autodeterminação inerente à natureza humana, para Tomás de Aquino, é o fundamento da dignidade da pessoa humana.

No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a concepção da dignidade da pessoa humana passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção de que todos os homens são iguais em dignidade e liberdade.

Segundo Locke, cada indivíduo é circundado por um perímetro de não-interferência intransponível ao controle social. Esta área de não-interferência é disposta pelos indivíduos como um direito natural e é transferida ao Estado por meio de um pacto social. Não existiria, portanto, qualquer diferença natural entre os indivíduos, contudo, para assegurar esta igualdade em uma sociedade civil, os homens fazem uso de um pacto que formaliza os direitos que eles naturalmente possuem e os tornam efetivos por meio da coerção.

Para Immanuel Kant, a natureza racional do ser humano lhe confere autonomia da vontade, ou seja, a faculdade de determinar a si mesmo e agir (ou não) em conformidade com as normas. Esta característica, apenas encontrada no homem, constitui-se fundamento da dignidade da pessoa humana. Com base nesta premissa, Kant (KANT, 1980, pág. 140) sustenta:

(...) o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).

A acepção de dignidade da pessoa humana elaborada por Kant prevalece na doutrina jurídica mais expressiva – nacional e estrangeira, muito embora sofra alguma crítica por seu exagerado antropocentrismo.

Existe uma significativa diferença entre a visão cristã e a concepção kantiana da dignidade humana. Ambas atribuem uma dignidade intrínseca ao homem em função da posição que este ocupa no mundo, entretanto, enquanto que, para a perspectiva cristã, a dignidade se justifica pela representação divina do homem, para Kant, a dignidade se alicerça na própria autonomia do sujeito, ou seja, na capacidade humana de se submeter às leis oriundas de sua potência legisladora e de formular um projeto de vida de forma consciente e deliberada.

Sartre rejeita a idéia de natureza humana intrínseca. Para ele, o homem primeiro existe, para depois ter sua essência, pelo que, o seu futuro está inteiramente por construir e sob sua responsabilidade. O homem, então, nada mais é que o que ele faz de sua própria vida, só existindo na medida em que se realiza. Assim, para Sartre, a dignidade da pessoa humana não é inata, ao contrário, reside justamente no fato de sua existência estar toda por construir. Ao contrário das coisas, que já possuem uma existência predeterminada, o homem tem plena liberdade para fazer-se. Aí reside a sua dignidade.

Cumpre destacar ainda a noção desenvolvida por Hegel, sustentando que a dignidade consiste em uma qualidade a ser conquistada. A dignidade de Hegel é centrada na idéia de eticidade, de tal sorte que o homem não nasce digno, mas torna-se digno a partir do momento que assume sua condição de cidadão.

Para Hannah Arendt, por fim, a dignidade da pessoa humana representa um conjunto de direitos inerentes ao homem que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado. A autora, ao analisar o fenômeno totalitário, percebeu que, neste tipo de estado, criam-se as condições para que se considerem os homens supérfluos, subtraindo sua condição humana. Para evitar a formação deste tipo de estado e a conseqüente coisificação do homem, sugere a autora o pleno exercício da liberdade e da palavra, de forma a possibilitar o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. A constitucionalização do valor-fonte da dignidade da pessoa humana sob a forma de princípio em diversas Constituições mundiais decorre diretamente do pensamento de Hannah Arendt.

4.2. Tentativa de Conceituação e Caracteres

Segundo afirma Ingo Wolfgang Sarlet, é questionável a viabilidade de se alcançar um conceito satisfatório do que significa a dignidade da pessoa humana. Esta dificuldade decorre, conforme exaustiva e correntemente destacado na doutrina, do fato de que se trata aqui de conceito de contornos vagos e imprecisos, caracterizado por sua ambigüidade e porosidade, bem como por sua natureza polissêmica (SARLET, 2004, pág. 39). Trata-se, pois, de conceito jurídico indeterminado, ou seja, no dizer de karl English, "um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos" (ENGLISH, 1983, pág 208).

Cabe ressaltar que não é só o conceito de "dignidade da pessoa humana" que apresenta certa indeterminação. A própria significação dos termos "humano" e "pessoa" apresentam alguma fluidez. Para o Dicionário Aurélio, estes termos significam o seguinte:

Humano (do lat. humanu) Adj. 1. Pertencente ou relativo ao homem; natureza humana; gênero humano. 2. Bondoso, humanitário.

Pessoa (do lat. persona) s.f. 1. Homem ou mulher. 2. V personagem. 3.V. individualidade. 4. (...). 5. Filos. Cada ser humano considerado na sua individualidade física ou espiritual, portador de qualidades que se atribuem exclusivamente à espécie humana, quais sejam, a racionalidade, a consciência de si, a capacidade de agir conforma fins determinados e o discernimento de valores. 6. Jur. Ser ao qual se atribui direitos e obrigações.

Assim, importante deixar claro que, ao falarmos de dignidade da pessoa humana, estamos nos referindo tão somente aos integrantes da raça humana. Não há que se falar, pois, de dignidade da pessoa humana de animais ou plantas, por exemplo. Por mais óbvia que pareça esta afirmação, ela é importante para dar um ponto de partida seguro à nossa tentativa de conceituação.

A palavra "pessoa", por outro lado,deriva do latim persona, e surgiu no cenário grego como máscara dos atores e, aos poucos, passou a significar o conjunto de traços acusadores de certo tipo de indivíduo. Foi com esse significado que a palavra se introduziu na linguagem filosófica, pelo estoicismo popular, para designar os papéis representados pelo homem na vida social. Segundo Locke, pessoa "é um ser inteligente e pensante que possui razão e reflexão, podendo observar-se (ou seja, considerar a própria coisa pensante que ele é) em diversos tempos e lugares; e isso ele faz somente por meio da consciência, que é inseparável do pensar e essencial a ele" (PEREIRA, págs. 153, 154 e 155). Pessoa humana, pois, é cada integrante da raça humana, caracterizada essa, entre outras coisas, pela racionalidade, pela consciência de si mesmo, pela capacidade de agir conforme fins determinados e pela capacidade de atribuir valores.

A razão, como se pode observar, é elemento essencial da definição de pessoa. Entretanto, vale salientar que esta razão deve ser considerada em abstrato, como sendo a capacidade que cada ser humano tem de ser racional, ainda que, no caso concreto, esta potencialidade não se realize. É o caso dos insanos, dos comatosos, entre outros.

No uso da sua singular racionalidade, o direito é, sem dúvida, uma das maiores realizações do homem. Através de uma complexa valoração, o ser humano estabeleceu normas de convivência social, positivou as mais importantes e criou um sistema organizado para exigir o seu cumprimento. O homem criou as leis e possui a força necessária para fazê-las cumprir. Neste sentido – e em outros mais – o ser humano é um animal singular.

Conscientizando-se de sua singularidade, o homem passou a acreditar ser merecedor de uma proteção especial e devedor de uma conduta irrepreensível. A este conjunto de direitos e deveres fundamentais, destinados a preservar o homem como algo especial, deu-se o nome de dignidade da pessoa humana. Assim, não há que se falar em dignidade inata, já que não se trata de dado ôntico, que existe na natureza. Trata-se de uma convenção social. A dignidade da pessoa humana é um conceito criado pelo homem e que depende de uma fé, de uma crença de que o ser humano é superior aos demais animais e merecedor desta distinção. O homem possui dignidade porque ele diz que a tem e possui a força para fazer valer o que foi dito.

Neste sentido, Rabenhorst (RABENHORST, 2001, pág 46):

(...) assumamos que a dignidade humana não é uma propriedade observável e que, como tal, não pode ser provada ou negada sobre bases meramente fáticas. Isto significa que ela seria apenas uma ideologia criada pela visão de mundo ocidental? Não necessariamente. Ela pode significar, também, que a idéia de que todos os homens são indistintamente dignos repousa em um conjunto de crenças morais que não podem ser plenamente justificadas. Essas crenças, escreve o filósofo canadense Charles Taylor, se agregam em torno do sentido de que a vida humana deve ser respeitada e de que as proibições que isso nos impõe contam-se entre as mais ponderáveis e sérias de nossa vida.

Embora exista – em um determinado momento e lugar – a crença de que o homem é portador de uma certa dignidade, isto não quer dizer que esta fé seja reconhecida pela legislação respectiva e, por sua vez, mesmo que seja ela reconhecida, isto não quer dizer que todo o conteúdo da dignidade da pessoa humano seja efetivado a todos. A crença, a positivação e a efetivação de seu conteúdo são etapas do desenvolvimento da dignidade da pessoa humana.

O conteúdo da dignidade da pessoa humana, por sua vez, segundo Ingo Wolfgang Sarlet implica em "um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos" (SARLET, 2004, pág. 60).

A dignidade da pessoa humana, justamente por se tratar de uma crença social, jamais poderá ser conceituada de maneira fixista, o que não se harmonizaria com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas diversas sociedades contemporâneas e ao longo do tempo. Trata-se, pois, especialmente em relação ao seu conteúdo, de um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento.

Com relação ao momento do surgimento e do desaparecimento do titular da dignidade da pessoa humana, existem sérias controvérsias. Entretanto, partindo do pressuposto que a racionalidade e a consciência de si mesmo, bem como a capacidade de agir conforme fins determinados e atribuir valores são características definidoras da humanidade, poderíamos conceber que a pessoa humana surge com o nascimento – já que o feto é um ser humano ainda em construção – e desaparece com a morte, seja ela propriamente dita ou cerebral. O feto e o cadáver não são capazes de razão, de autoconsciência ou autodeterminação. O feto pode vir a ser uma pessoa e o cadáver foi uma pessoa. Nem um nem o outro é pessoa.

Vale ressaltar, por outro lado, que o feto e o cadáver possuem dignidade. Mas trata-se de uma dignidade relativa, em homenagem ao que o feto pode vir a ser e ao que o cadáver foi. Assim, parte da proteção dada ao ser humano é estendida ao feto e ao cadáver, entretanto, este fato nunca pode suplantar o dever do Estado de proteger o ser humano e sua dignidade.

No Brasil, a dignidade da pessoa humana constitui fundamento do Estado democrático de Direito, previsto no artigo 1.º, inciso III da Constituição Federal. O constituinte de 1988, assim a posicionando, alçou a dignidade da pessoa humana à condição de princípio e valor fundamental.

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Sobre o autor
Manuel Sabino Pontes

Defensor Público no Rio Grande do Norte, lotado em Natal/RN, Especialista em Direito Constitucional e Financeiro pela Universidade Federal da Paraíba, Especialista em Direito Processual Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTES, Manuel Sabino. A anencefalia e o crime de aborto:: atipicidade por ausência de lesividade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 861, 9 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7538. Acesso em: 19 abr. 2024.

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