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A responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios:

admissibilidade no direito brasileiro

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18/11/2005 às 00:00
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3 A CONCEPÇÃO DE RELAÇÃO JURÍDICA OBRIGACIONAL: DE ESTÁTICA À DINÂMICA

3.1 DA CONCEPÇÃO ESTÁTICA DE OBRIGAÇÃO

Originária do Direito romano, de seu conceito clássico já se encarregavam as Institutas, para as quais representava "(...) o vínculo de direito que nos constrange à necessidade de pagar alguma coisa." [94]

Dentre as definições trazidas pelos autores clássicos de Direito civil em nosso país, impõe-nos trazer a de Washington de Barros MONTEIRO, para quem "a obrigação é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio." [95]

Isto porque "por ser essencialmente relacional, a obrigação requer duplicidade de sujeitos, a ponto de extinguir-se pela confusão, quando as posições ativa e passiva se acumulam numa única pessoa". [96]

A noção de relação jurídica obrigacional, tal como era classicamente concebida, circunscrevia-se a certos elementos, certos e determinados, os quais, por muito tempo, demonstraram-se suficientes à compreensão da noção de obrigação.

Referidos elementos compreendiam os sujeitos, a saber, credor e devedor; o objeto em torno do qual gravitava a obrigação, e o vínculo, que consistia justamente no liame jurídico que une o primeiro a este último. Passemos então a uma breve abordagem de cada um deles.

Em relação aos sujeitos, infere-se essencialmente que, como traço característico da relação que se estabelece entre ambos, aponta a relação de sujeição, de subordinação do devedor, titular do dever de efetuar a prestação em face do credor.

Assim, pode-se dizer que o credor, também chamado de sujeito ativo, é aquele a quem a prestação, positiva ou negativa, é devida, ou seja, é o titular do direito subjetivo de crédito.

Por outro lado, ao devedor, dito também sujeito passivo, cabe o cumprimento da prestação, não possuindo ilimitada liberdade, visto que deve atender aos interesses do credor, uma vez que este, caso seja prejudicado pelo inadimplemento daquele, poderá buscar a satisfação de seu crédito por via judicial, recaindo a sanção sobre o patrimônio do que deve. Daí porque já se afirmou que credor e devedor ocupam posições "claramente antagônicas". [97]

Dando continuidade à abordagem dos elementos constitutivos da obrigação, cabe falar do objeto, o qual representa a própria prestação a cargo do devedor. Referida prestação, por sua vez, pode revestir-se sob a forma de uma ação ou omissão, que pode compreender o dar, o fazer ou o não fazer algo.

É consenso entre a doutrina pátria que seu conceito compreende duas sub-espécies: o objeto imediato e o mediato.

O primeiro abrange mais propriamente a atividade ou conduta por parte do devedor. É por meio dela que a prestação torna-se disponível ao titular do direito de crédito. Já o mediato corresponde àquela noção que está mais arraigada na idéia que a maior parte das pessoas possui, ou seja, significa a coisa em si, o bem a ser entregue, embora se saiba que, em certos casos, o objeto pode consistir tão somente em um comportamento, em uma atitude do sujeito passivo, hipótese em que inexistiria objeto mediato.

Não se pode olvidar que para que a prestação se mostre viável, ou seja, para que possa ser cumprida, deve possuir as seguintes características: licitude, possibilidade, determinabilidade e patrimonialidade.

Licitude significa estar de acordo ou não ser vedada pelo ordenamento vigente. Possibilidade engloba dois aspectos: o material e o jurídico. O primeiro é evidente, visto que a contrario senso, o objeto que pereceu não é passível de ser cumprido. O último dos aspectos confunde-se com o que já dissemos sobre a licitude. Quanto à patrimonialidade, já se disse com razão que o "objeto da obrigação [consiste] em um ato ou prestação do devedor que deveria ter um valor apreciável em dinheiro e ser natural e juridicamente possível." [98]

Por fim, é imperioso mencionar que o vínculo, mais do que um mero elemento de cunho psicológico, representa a idéia de subordinação que se estabelece entre credor e devedor, garantindo ao primeiro o direito de exigir judicialmente [99] o cumprimento da obrigação.

À vista do que se expôs, fica fácil estabelecer a relação que os elementos estudados possuem com o título empregado neste item. Isto porque fica bem delineado que, segundo a visão tradicional, cada parte possuía papéis bem definidos, os quais não admitiam ser alterados.

3.2. DA CONCEPÇÃO DINÂMICA DE OBRIGAÇÃO

A natural evolução da ciência jurídica fez com que se percebesse que as relações sociais, à medida que foram se incrementando, passassem a ter um grau de complexidade tal, que hoje não é mais possível resumi-las apenas em um mero direito ao cumprimento da prestação do credor, de um lado e de que o preço seja pago pelo devedor, de outro.

Justamente por isso, alguns autores passaram a denominá-las de relações obrigacionais complexas.

As considerações tecidas por João de Matos Antunes VARELA nos dão uma precisa noção a esse respeito. Para o autor português:

As relações obrigacionais complexas ou múltiplas [são] compostas de dois ou mais deveres principais de prestação e dos correlativos direitos de crédito e toda a corte de deveres secundários de prestação e de deveres acessórios de conduta, que amiudadas vezes seguem aqueles. É nomeadamente, o caso das relações jurídicas nascidas dos contratos bilaterais, em que à obrigação simples a cargo de um dos contraentes (v. gr., a obrigação de pagamento do preço que recai sobre o comprador) se contrapõe, pelo menos, a obrigação sinalagmática que onera o outro (obrigação de entrega da coisa). [100]

No âmbito do direito pátrio, pioneiros foram os estudos de Clóvis do COUTO e SILVA, que com obra própria a respeito do tema, cunhou a consagrada expressão "obrigação como processo", hoje tão utilizada pelos autores que abordam a questão. [101]

Segundo ele, ao se utilizar a expressão citada pretende-se "sublinhar o ser dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência" [102]. Isto porque os atos que compõe uma obrigação apresentam-se e desenvolvem-se de modo gradativo e seqüencial, de modo que todos eles buscam um fim. E é esta finalidade que encerra a idéia de obrigação como processo.

Na verdade esta noção quer significar a adoção de uma postura diferenciada na análise da questão, de modo a considerar as relações contratuais não mais como uma somatória de atos subseqüentes distintos, mas sim percebendo que entre eles existe uma relação de integração, uma vez que justamente por estarem seqüencialmente dispostos, tendem a um mesmo fim.

Portanto, hodiernamente, não basta apenas que a obrigação assumida pelo contraente seja cumprida, mas que principalmente, conforme veremos, em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva, este cumprimento se faça de modo a satisfazer concretamente os interesses da contraparte, denotando um legítimo caráter de cooperação entre elas. Referido mandamento, conforme se observa, tem o condão de criar deveres que devem ser observados por ambas as partes.

No Brasil, infelizmente, a maior parte dos autores que tratam do tema ainda adota a referida "concepção estática de obrigação", furtando-se ao seu caráter atual que, como dito, vem se revelando notadamente dinâmico e complexo [103].

Na prática, esta visão diferenciada adquire relevância sobretudo nas hipóteses em que, por ocasião do inadimplemento contratual, necessita-se mensurar com justiça o quantum hábil a reparar os prejuízos experimentados pela parte lesada.

É partir desta ótica que o trabalho passa a tratar as questões que iremos abordar.

3.2.1. A Idéia de Obrigação como Processo à Luz da Boa-fé

Mencionou-se en passant [104] o papel que o mandamento da boa-fé objetiva desempenha nesta nova concepção da obrigação como processo dinâmico, cujos olhares estão voltados para a sua finalidade. Procurar-se-á, a partir de agora, demonstrar de que modo isto efetivamente se processa.

Primeiramente é imperioso notar que sendo um princípio fundado basicamente em um modelo ético-jurídico de conduta, ilógico seria exigi-lo apenas de uma das partes. O que ocorre, aliás, é justamente o inverso: tamanho é seu campo de incidência que é possível impor sua observância a todos os participantes do negócio, não apenas na fase de sua conclusão ou em sua execução, mas inclusive após o completo adimplemento da prestação contratual. Aliás, vem-se admitindo sua exigência desde as tratativas negociais, como se procurará demonstrar no Capítulo III deste estudo.

Conforme se esboçou inicialmente, referimo-nos aqui à boa-fé objetiva, ou seja, àquela conduta revestida de lisura, de transparência, de retidão, de respeito à pessoa daquele com quem se negoceia, e não àquela noção que se traduz pela crença errônea que o lesado possui de estar na posse legítima de um direito, bem como nos casos em que ignora estar sendo ludibriado por algum proponente astucioso.

Pragmaticamente, visualisamo-na quando, v.g., o proponente esclarece quais as vantagens e desvantagens da escolha de um determinado produto em meio a outros similares, assim como quando, ao ter conhecimento de determinada circunstância que possa dificultar, inviabilizar ou mesmo nulificar o negócio, comunica-a imediatamente ao parceiro contratual. [105]

Ainda mais ampla é a sua incidência no âmbito das relações de consumo. Veja-se, a contrario sensu, quantas vezes nos deparamos com campanhas publicitárias fantasiosas, em que as reais condições do produto (modelo, peso, quantidade e principalmente a proximidade da data de validade) são maculadas. [106] Alguns dos casos mais ilustrativos em nosso Direito serão abordados nas últimas linhas deste trabalho.

Falou-se que a adoção de referida postura, traduzida no cumprimento de determinados deveres jurídicos, deve ser observada durante todo o iter do processo obrigacional. Mas que deveres são estes? É disso que trata a seqüência desta monografia.

3.2.2. Deveres Obrigacionais

No mesmo sentido empregado por COUTO E SILVA [107], em seu pioneiro tratamento [108] da relação obrigacional como processo - vale dizer, como uma seqüência encadeada de atos seqüencialmente dispostos tendentes a um mesmo fim - posteriormente outros autores [109] também incursionaram nesta questão.

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Assim, admite-se hoje que as obrigações compreendem deveres principais, deveres secundários, e os deveres acessórios.

3.2.2.1 Deveres principais de prestação

Haja vista o tratamento da mencionada "relação obrigacional complexa" ser recente na doutrina [110], o seu cumprimento se confundia - e aliás ainda é confundido por alguns, diga-se de passagem - com o da própria obrigação. Em uma palavra, os deveres principais de prestação integram o núcleo da relação obrigacional, definindo o tipo contratual.

Pode-se dizer que constituem o próprio cerne do negócio que se está firmando, uma vez que identificam a relação obrigacional. Alguns exemplos dão a exata noção do que se está a dizer. Quais os traços característicos de um contrato de compra e venda? Ora, de um lado, o pagamento do preço e de outro, a entrega da coisa, sendo que o devedor então lhe adquire a propriedade. De outro modo, em um contrato de locação tem-se que ao credor cabe disponibilizar a coisa locada ao devedor, e este, por seu turno, tem o respectivo dever de pagar o aluguel pela coisa locada.

Portanto, se está a falar dos deveres aos quais se pode, por assim dizer, resumir a obrigação.

3.2.2.2 Deveres secundários

Decorrendo diretamente da espécie anterior, acertada é a expressão empregada por Carlos Alberto da Mota PINTO [111], quando a eles se refere como sucedâneos [112] daquele primeiro tipo.

Ditos deveres subdividem-se, por sua vez, naqueles dotados de prestação autônoma - caso dos juros decorrentes pela mora no pagamento - assim como nos acessórios da prestação principal, a exemplo da exigência que determinada montadora de automóveis mantenha peças de reposição em número suficiente à frota dos veículos que produziu.

Os primeiros podem ser considerados autonomamente, de modo distinto do fato que lhes deu origem, mister quando se trata de quantificá-los através de um valor pecuniário. Visualizamo-nos na imposição do pagamento de perdas e danos ou, como dito, nos juros devidos pelo inadimplemento relativo.

Já os deveres acessórios, guardam íntima relação com o cumprimento satisfatório do dever principal, sendo que realmente não há como cogitar a sua existência, quando não se tem em mente o dever principal. Basta citar os exemplos do transporte da coisa vendida, bem como o seu devido acondicionamento em embalagem apropriada.

Antes de ingressar no ponto seguinte vale dizer que a adoção de uma classificação dos deveres obrigacionais em principais e secundários não representa qualquer novidade. O que ainda é visto com cautela por parte da doutrina é a inclusão de uma subcategoria, a dos deveres secundários ditos acessórios de conduta, os quais decorrem da observância ao mandamento da boa-fé objetiva.

3.2.2.3. Deveres acessórios de conduta

Embora a maior parte dos autores só passou a tratar da questão há bem pouco tempo, os deveres acessórios não constituem um assunto novo. Clóvis do Couto e SILVA foi capaz de entrevê-los há quase três décadas [113], quando já afirmava que "a prestação principal do negócio é determinada pela vontade. Para que a finalidade do negócio seja atingida, é necessário que o devedor realize certos atos preparatórios, destinados a satisfazer a pretensão do credor. Alguns destes atos constituem adimplemento de deveres que nascem da manifestação ou declaração de vontade jurisdicizada." [114]

Sem descurar do conteúdo dos festejados trabalhos de Antonio Menezes CORDEIRO [115] e de Judith MARTINS-COSTA [116], traz-se a conceituação de Jorge Cesa Ferreira da SILVA, que delimitou com exatidão o alcance destes deveres:

Toda relação expõe a pessoa ou os bens de uma parte à atividade da outra, que pode, com esta atividade, provocar danos a tais bens ou colocá-los em perigo. Incide então a boa-fé, a regular o comportamento dos sujeitos por meio da criação de uma série de deveres dedicados a evitar situações danosas. Esses deveres, assim, ao contrário dos anteriores, veiculam um interesse negativo: há que se fazer algo (ou que se tomar determinadas medidas) para que um determinado resultado não seja atingido. [117]

A principal característica comum a tais deveres é que, em função de sua acessoriedade, podem estar presentes antes mesmo do próprio negócio, bem como perdurar mesmo após o cumprimento da prestação principal, vez que ainda que modifiquem a natureza contratual, possuem regras próprias de extinção. [118] Um outro aspecto fala do sujeito que deva cumpri-lo: tanto pode ser o devedor quanto o credor. Daí porque se diz que os deveres acessórios têm íntima relação com o caráter dinâmico da relação obrigacional. Não se conectando a nenhum tipo de contrato específico, ligam-se ao conjunto de circunstâncias que integram o cumprimento satisfatório da obrigação vista como um todo.

Embora estejam ligados diretamente ao conteúdo do contrato envolvido, muitos deles não deixam de possuir uma eficácia protetora a terceiros, pessoas a princípio alheias ao objeto contratual em si, mas que de algum modo atuam dentro da contratação, sobretudo sob o viés da "formação de uma relação de confiança." Não se trata, contudo, de conclusão pacificamente aceita pela doutrina. [119]

Não obstante os autores terem formulado várias classificações a respeito, entende-se ser possível reduzir estes deveres [120] - mesmo porque é inviável tentar abranger, com uma classificação, a totalidade dos comportamentos humanos possíveis - a três classes principais, a saber: os deveres de informação, de lealdade e de proteção.

a)Informação

Referido por alguns como um dever de esclarecimento [121], encontram-se amplamente difundidos no âmbito das relações de consumo, [122] assim como nos contratos de prestação de serviços médicos, [123] possibilitando que as partes tenham a exata noção das circunstâncias que envolvem o contrato.

Dito desta forma se tem a impressão que tais deveres se assentam apenas em torno do dever principal. O que ocorre, contudo, é exatamente o inverso: na maior parte dos casos em que é violado, o contrato ainda está por ser firmado. É o que ocorre, v.g., em relação às informações sobre produtos e serviços veiculadas nos meios publicitários. Vale ressaltar que em tais hipóteses, pouco importa que o fornecedor não tenha sido avisado quanto ao conteúdo das informações que deva divulgar.

Na lição de Antonio Menezes CORDEIRO, tais deveres, a que prefere se referir como "de esclarecimento" são os que "obrigam as partes a, na vigência do contrato que as une, informarem-se mutuamente de todos os aspectos atinentes ao vínculo, de ocorrências que, com ele, tenham certa relação e, ainda, de todos os efeitos que, da execução contratual, possam advir." [124]

Não obstante seja mais comum presenciá-los durante a fase das negociações, isto não significa que não possam estar presentes após a conclusão do contrato. Nestes casos, mesmo após o cumprimento da prestação principal, tais deveres também ainda ser observados.

Dependendo da posição que a parte ocupa dentro da relação obrigacional, este tipo de dever assume uma importância diversa. Assim, certamente que a quantidade e a profundidade de informações exigíveis de um profissional é bem maior da que se espera de um leigo, que na maior parte das vezes não tem e tampouco tem a obrigação de possuir tais conhecimentos. Embora não o tenha feito especificamente quanto ao dever de informar, disso já cuidava Mário Júlio de Almeida COSTA, o qual, em estudo publicado há quase duas décadas, asseverava que:

Se as negociações dizem respeito a um contrato integrado no âmbito profissional de um dos participantes, a confiança criada no outro (...) é, sem dúvida, (...), mais forte do que a comum. (...) Daí que tenha justificação uma atitude de maior rigor a seu respeito, admitindo-se mais facilmente o caráter ilegítimo da ruptura de negociações que produza. (...) Quando, pelo contrário, as negociações se estabelecem entre dois profissionais, (...) a segurança comercial [existente entre ambos, confere uma feição diversa à relação que se estabelece entre ambos, dispensando, assim, o mesmo rigor do exemplo anterior]. [125]

Finalizando suas considerações a respeito, conclui que "contudo, integrando-se os profissionais em ramos diversos, justifica-se um critério da maior severidade a respeito do que actua no seu próprio campo especializado." [126]

Finalmente, vale referir que tamanha é a variedade de casos em que está presente, que alguns autores [127] admitem uma classificação específica do dever de informar. Tal divisão tem por critério sua profundidade, variando conforme a necessidade dos envolvidos. Assim, fala-se em um dever de conselho, de recomendação e do dever de informação propriamente dito. Veja-se que aconselhar envolve uma relação de confiança entre o que orienta e o que é orientado, e representa aquilo que ele próprio faria se estivesse no lugar do outro. Tem, portanto, uma maior intensidade. Recomendar pressupõe a "comunicação de boas qualidades" [128] de alguém ou de algo com o fito de que o envolvido possa contratar de modo mais sensato. Não tem, desta forma, a mesma veemência daquele primeiro. Já a informação propriamente dita compreende "a exposição de uma dada situação de facto." [129]

b)Proteção

Inicialmente, deve-se dizer que a significação pretendida com o emprego do termo neste momento do trabalho não é a mesma a que se referiu STOLL [130] ao se debruçar sobre o tema. À época, a intenção do autor era designar genericamente os deveres de conduta em geral. Isto porque é possível dizer que de algum modo, todos eles envolvem um sentido "protetivo". Veja-se, por exemplo, a confiança violada pela divulgação de informações sigilosas, a que hoje se denomina lealdade. A referência que aqui se faz diz respeito a certas condutas que denotam um sentido específico de proteção.

Como os deveres acessórios de um modo geral, podem estar presente tanto em momento que antecede o dever principal quanto após o seu cumprimento. Ocorre, porém, que é mais comumente verificado na fase das tratativas, uma vez que através dele se busca resguardar a parte e seu patrimônio com vistas a que ela venha de fato celebrar um dado contrato.

Ao tratar do tema, Antonio Menezes CORDEIRO esclarece que "os deveres acessórios de proteção constituem a versão actuante na vigência de um contrato das adstrições pré-contratuais (...) Por ele, considera-se que as partes, enquanto perdure um fenômeno contratual, estão ligadas a evitar que, no âmbito desse fenômeno, sejam infligidos danos mútuos, nas suas pessoas ou nos seus patrimônios." [131]

Como visto, não obstante possa envolver tanto a pessoa do contratante em si, isto é, sua integridade física e psíquica como também seus bens, seu patrimônio, pode operar ainda em relação a outros sujeitos, que alguma forma atuam na relação contratual.

Já se afirmou que o fato de haver certa resistência doutrinária quanto ao reconhecimento da gênese obrigacional do dever de proteção se deve à circunstância de que às vezes não é possível conectá-lo apenas à disciplina do contrato principal, mas também à de outros negócios. Hodiernamente, porém, acredita-se que este ceticismo esteja ligado à extensão de seus efeitos sobre terceiros, como no caso do mandato, do seguro e de outras espécies contratuais revestidas desta característica.

c)Lealdade

Dissemos que qualquer tentativa de classificação dos deveres acessórios não pode ter a pretensão de esgotar seu âmbito de incidência. Em relação ao dever de lealdade, isto é ainda mais perceptível. Tanto que há autores que quando a ele se referem, fazem-no conjuntamente com o dever de cooperação. [132]

Amplamente difundidos no âmbito das relações trabalhistas [133], quer significar o mandamento que se impõe às partes para que se abstenham da prática de determinadas condutas, prejudiciais à efetivação do contrato. Nesse sentido, Antonio Menezes CORDEIRO anota que estes "obrigam as partes a, na pendência contratual, absterem-se de comportamentos que possam falsear o objectivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações por ela consignado." [134]

É recorrente sua violação pela revelação de fatos, informações e quaisquer outras circunstâncias de que as partes tenham tomado conhecimento em razão dos contatos realizados durante a fase das tratativas. Basta referir o exemplo em que a divulgação de informações sigilosas conhecidas a partir das negociações vem a frustrar o interesse do outro contratante na concretização do negócio.

Quanto ao dever de cooperação, por sua vez, o que ocorre é justamente o inverso, ou seja, deve-se ter em mente a idéia de colaboração, de participação efetiva das partes para que qualquer circunstância prejudicial à concretização do negócio possa ser afastada. De acordo com as lições do professor Carlyle POPP:

pode distinguir-se [do dever de lealdade] pela obrigação do cliente de informar e auxiliar em tudo o que for necessário para que o advogado possa cumprir seu mister a contento; do paciente em seguir as recomendações médicas; no âmbito das relações de consumo, deve o fornecedor se abster de criar embaraços para que o consumidor exercite plenamente seus direitos, entre outros. [135]

Dentre as três espécies de deveres trazidas pelo trabalho, esta é a que se liga à prestação principal com maior intensidade. Segundo Jorge Cesa Ferreira da SILVA, isto se deve ao fato de que representam "situações estabelecidas para as prestações-fim do contrato". [136]

Em que pese a enumeração destas condutas não ser exaustiva, o mais importante é dizer que o reconhecimento da existência de todos estes deveres no desenrolar da relação jurídica obrigacional faz nascer novos caminhos para o estudo responsabilidade civil, uma vez que sua transgressão pode-se se dar não apenas durante a fase contratual (violação positiva de contrato), mas também após o cumprimento da obrigação principal (culpa post pactum finitum) e até mesmo antes de formalizado o acordo de vontades.

Neste particular, estes deveres podem estar presentes desde o mais tênue instante em que as partes interessadas passam a negociar em torno de um objetivo comum. E a considerar as hipóteses em que os mesmos são violados nestes limites, é possível falar-se então em verdadeiros casos de responsabilidade pré-contratual. É o que se passará a abordar na última parte deste trabalho.

Nela, procurar-se-á comprovar a importância que estes deveres assumem durante a fase pré-contratual, para, mais ao final, trazer-se algumas das decisões que comprovam o acolhimento do instituto pelas Cortes de alguns países, especialmente em Alemanha e Portugal, países em que se deu uma maior importância ao problema, para que só então se possa demonstrar a evolução da jurisprudência brasileira no tratamento destas questões.

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Sobre o autor
Igor Mori

bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Curitiba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORI, Igor. A responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios:: admissibilidade no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 868, 18 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7598. Acesso em: 2 mai. 2024.

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