Artigo Destaque dos editores

A responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios:

admissibilidade no direito brasileiro

Exibindo página 3 de 5
18/11/2005 às 00:00
Leia nesta página:

4 A QUEBRA DOS DEVERES ACESSÓRIOS NA FASE DAS TRATATIVAS: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL

4.1 A CONSTRUÇÃO DA RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL

Na tentativa de se consolidar qualquer instituto jurídico, é imprescindível que este esteja calcado em sólidos fundamentos, que lhe darão o subsídio necessário para que subsista de forma autônoma, enquanto objeto de análise da ciência jurídica. Tais pressupostos, além de lhe dar o sustentáculo necessário, tornam possível delimitar com exatidão seu âmbito de incidência, possibilitando assim distingui-lo dos demais institutos. Com relação à responsabilidade pré-contratual não foi diferente.

Vários foram os autores que ao se ocuparem do tema, trataram desta questão em especial. Assim o fizeram Antonio CHAVES [137], Carlyle POPP [138] e mais recentemente Regis Fichtner PEREIRA [139], dentre os mais importantes. Todavia, tendo em vista ter sido um dos primeiros a tratar do tema, bem como devido ao fato de adotar uma classificação diferenciada, com a subdivisão em pressupostos genéricos e específicos, este trabalho opta por adotar o raciocínio esboçado pelo professor Récio Eduardo CAPPELARI, em sua dissertação de mestrado. [140]

Para este autor, duas são as espécies de requisitos necessários para que ela esteja presente: os de caráter genérico, aplicáveis à responsabilidade civil em geral, e os específicos, próprios a cada uma de suas espécies - contratual, pré-contratual e pós-contratual -, segundo as particularidades de cada uma delas. Neste estudo, por óbvio, abordar-se-á os requisitos referentes ao período que antecede o momento da conclusão do negócio.

4.1.1 Dos Requisitos Genéricos:

a) Consentimento às negociações

É certo que, se ambas as partes não estiverem de acordo quanto ao início das tratativas negociais, não há como se cogitar do instituto em debate.

Embora o consentimento possa ocorrer de modo expresso ou tácito, certo é que o que realmente importa é a sua inequívoca existência, a qual precisa ser provada. Como se vê, isto nem sempre é uma tarefa simples.

Portanto, quando por exemplo, um comerciante aborda um transeunte que circula em via pública para que compre seus produtos, mas este o ignora, não há como se atribuir um eventual prejuízo àquele. Caso isso viesse a ocorrer, estaríamos diante de verdadeira hipótese em que a parte estaria agindo venire contra factum proprium. [141]

b) Dano patrimonial

Sendo outro pressuposto essencial da responsabilidade pré-contratual, é importante lembrar que não é todo o dano que admite ressarcimento. Ele deve ser, antes de mais nada, certo e atual. Certo, porque deve se pautar em um fato preciso, e não hipotético e atual porque no momento da propositura da ação já deve ter ocorrido.

Como é de se imaginar, a demonstração da ocorrência de prejuízo e a prova de início de negociações por vezes podem representar um trabalho de grande complexidade. No que tange a esta última, o TJSP já admitiu a possibilidade de que se faça pela via testemunhal, uma vez serem escassos os elementos em que se possa ampará-la. [142]

Vale dizer também que o dano [143] pode ter sido experimentado tanto pelo proponente, quanto pelo oblato, sendo mais usual esta última hipótese.

c) Relação de causalidade

Em relação a este pressuposto, ainda que em torno dele hajam sido feitas inúmeras construções doutrinárias, a própria norma legal se encarregou de discipliná-la. Assim já fazia o antigo art. 159 do CC/1916, cujas disposições a ele equivalentes na nova lei correspondem aos arts. 186 [144] e 927 [145], parágrafo único.

Assim, é necessário que entre o evento danoso, ainda que omissivo e seu resultado haja um nexo causal, quer dizer, aquele deve ser o responsável pela ocorrência deste. Em uma palavra: entre o fato e o resultado a ele atribuído deve haver um liame que torne possível o reconhecimento da relação de causa e efeito.

d) Inobservância do princípio da boa-fé

A importância de tal exigência para a configuração da responsabilidade pré-contratual se depreende até mesmo do conteúdo dos capítulos iniciais deste trabalho. Nos capítulos I e II fez-se uma abordagem do princípio, primeiramente de um modo mais genérico, para, à medida que fomos avançando em seu conteúdo, direcioná-lo para sua aplicação em meio ao contexto de casos em que se possa falar em responsabilidade pré-contratual.

De qualquer forma, vale dizer que a exigência de uma conduta em atenção aos ditames do referido princípio se manifesta com a observância dos deveres laterais, também conhecidos como "deveres acessórios de conduta." Estes, embora não constituam o cerne do contrato, garantem a sua execução de modo que a prestação possa ser cumprida de modo útil e satisfatório ao credor, o que não afasta seja observado por todos os contraentes. Isto porque, como bem lembrou Récio Eduardo CAPPELARI, "o importante, durante as tratativas, é justamente averiguar se a conduta das partes se houve com honestidade e lealdade, a fim de se apurar a existência ou não de motivo justo para abandonar as mesmas, tarefa que incumbe ao princípio da boa-fé na sua feição objetiva e não à culpa." [146]

Isto, contudo, não deve ser confundido com a adoção de um modelo objetivo de responsabilidade. Neste, não haveria a necessidade de comprovação de ter a parte agido com dolo ou culpa. Verdadeiramente não se pode admitir um modelo desta natureza nesta fase do negócio, uma vez que se fosse levada adiante, chegar-se-ía a um grau de segurança superior àquele existente no interior do próprio contrato, o que segundo este mesmo autor, poderia até mesmo "conduzir a uma diminuição acentuada das contratações." [147]

Vistos os requisitos genéricos, seguem-se os específicos.

4.1.2 Dos Requisitos Específicos:

a) Confiança na seriedade das tratativas

Opondo-se historicamente ao voluntarismo jurídico, a teoria da confiança, preconizada por Hugo Grotius, fornece-nos a base para a exigência deste requisito. Reflete, como dito, a mudança de paradigma da supremacia da autonomia da vontade para uma visão social do negócio jurídico, em especial do contrato.

De fato, à medida que as negociações vão avançando, é certo que também a confiança recíproca das partes aumenta. Na prática, caberá ao intérprete avaliar o grau de confiança lesado, isto é, em que momento da negociação as partes já se encontravam quando a ruptura injustificada ocorreu. Por óbvio, tanto maior será a indenização cabível quanto maior tiver sido o grau de confiança lesado, sobretudo nas fases mais adiantadas deste processo.

Sendo exigível dos indivíduos em todo o tráfego jurídico, também deve ser observada na fase preliminar à da conclusão do negócio.

Falou-se nos parágrafos anteriores em "ruptura injustificada." Isto porque, se a parte que se retira abruptamente das conversações preliminares o fizer em razão de motivo justo, não há que se falar em ruptura ilegítima. A delimitação do que seja propriamente uma causa injustificada só será possível analisando-se as circunstâncias do caso concreto.

b) Enganosidade da conduta

Antes de mais nada, cabe dizer que optou-se pela utilização da terminologia acima referida, porque, embora o estudo que serve de base para este ponto do trabalho tenha se referido à "enganosidade da informação", é possível se falar em muitos outros meios através dos quais a confiança é lesada. Assim, pode ocorrer que mediante uma conduta qualquer, não apenas mediante a veiculação de informação enganosa, se esteja ferindo a confiança de que se tratou no item anterior.

Para a melhor compreensão do que se pretende dizer, basta referirmos o exemplo em que o ofertante tenha marcado encontro com a contraparte em determinada data e local, para dispor acerca do negócio que este pretenda firmar. Suponha, porém, que na data estipulada, aquele não compareça. Neste mesmo exemplo, imagine que o oblato resida em localidade distante daquela em que se encontrará com o proponente. Na hipótese, por certo, o prejudicado dedicou tempo e recursos para se deslocar ao local do encontro, isto sem falar de outros gastos que podem estar presentes, tais como: alimentação, hospedagem e assim por diante.

Assim, é certo que embora a parte tenha feito com que a outra confiasse da realização do encontro, este na realidade não se concretizou, sendo enganosa a conduta do ofertante.

4.1.3.Do Conceito de Responsabilidade Pré-contratual

Dito isto, agora já é possível passar-se a uma tentativa na elaboração de um conceito para esta modalidade de responsabilidade.

Uma definição que poderia ser mencionada novamente é aquela cunhada por IHERING na criação da teoria da culpa in contrahendo. Todavia entende-se hodiernamente que, uma vez o estudo inicial do autor alemão ter apenas previsto a ocorrência do instituto nos casos da não comunicação de circunstância invalidante do negócio pela parte que tinha ciência dela à outra inocente, optou-se por não reproduzi-la novamente.

Embora seja inviável formular uma definição totalmente abrangente de responsabilidade pré-contratual – isto porque inúmeros os casos e os deveres que surgem por ocasião da violação aos deveres que decorrem da boa-fé nesta fase negocial – traz-se duas importantes conceituações, que se entende sejam mais eficazes justamente por propugnarem conceitos mais abertos, permitindo abranger mais e mais condutas inadequadas.

A esse respeito, WESTERMANN assinala dizendo-nos que se trata de "uma sanção de obrigações que resultam do simples fato de se estabelecerem negociações contratuais. Deste próprio fato, origina-se conforme a opinião dominante, uma vinculação jurídica especial que mostra muitos traços da relação obrigacional e justifica uma responsabilização segundo as regras contratuais." [148]

Já para Carlos da Alberto da Mota PINTO, a espécie de responsabilidade em estudo nada mais é, em verdade do que "a verificação dos danos que por ocasião da formação do contrato tem lugar, dada a confiança depositada pelas partes na validade do negócio jurídico celebrado ou na sua celebração futura." [149]

Tendo sido declinados os pressupostos jurídicos para que possa ocorrer, bem como uma tentativa de se esboçar um conceito, será importante retornarmos às origens do instituto. Passa-se então, à uma breve demonstração de como e de que modo surgiu a discussão em torno da necessidade de se tutelar a responsabilidade pré-contratual.

4.2 IHERING E A TEORIA DA CULPA IN CONTRAHENDO

Foi na segunda metade do século XIX, mais precisamente no ano de 1861, a partir de uma situação ocorrida com ele próprio, que Rudolph von IHERING, insatisfeito com as possíveis soluções jurídicas que até então se apresentavam, passou a se debruçar sobre o problema. Após uma longa e trabalhosa investigação a que se dedicou, acabou por formular a teoria da culpa in contrahendo. Referido instituto foi, sem dúvida alguma, o embrião para o reconhecimento da responsabilidade pré-contratual.

É Judith MARTINS-COSTA quem nos fornece conceituação que embora breve, delimita com precisão os contornos do instituto. Diz ela que "incorre em responsabilidade pré-negocial a parte que, tendo criado na outra a convicção, razoável, de que o contrato seria formado, rompe intempestivamente as negociações, ferindo os legítimos interesses da contraparte. [150]

PONTES DE MIRANDA, com sua invulgar inteligência, também se debruçou sobre a questão, ao dizer que:

Culpa in contrahendo é toda infração do dever de atenção que se há de esperar de quem vai concluir o contrato, ou de quem levou alguém a concluí-lo. O uso do tráfico cria tal dever, que pode ser o dever de verdade, o dever de diligência no exame do objeto ou dos elementos para o suporte fático (v.g., não deixar que o documento caia da janela e se perca), exatidão no modo de exprimir-se, quer em punctuações, anúncios, minutas, ou informes. [151]

Basicamente a situação que o jurista alemão vivenciara foi a seguinte: sabendo da viagem iminente de um amigo seu à cidade de Bremen (Alemanha), encomendara junto a este um quarto de uma caixa de charutos. Ao receber seu pedido, IHERING verifica se tratar não de um quarto, mas de quatro daquelas caixas. Diante do equívoco ocorrido, indagou a si mesmo: a quem é possível atribuir o prejuízo havido? Mais do que isso: seria possível exigir o custeio pela devolução e reenvio da quantia correta do comerciante vendedor da mercadoria? Ou seria juridicamente mais razoável exigi-lo do amigo? Afinal, como fundamentar juridicamente a solução a ser buscada? [152]

Investigando a fundo as formulações existentes à época, IHERING concluiu que "da nulidade de um contrato, poderiam emergir, ainda, alguns efeitos. O escopo fundamental de um contrato é o cumprimento; mas existem, também, escopos acessórios, como a restituição da coisa, de sinal ou indemnização. Quando, pela nulidade, se frustre o escopo principal do contrato, não ficam, por necessidade, afectados os escopos secundários." [153]

De maneira que foi a partir da experiência romana em torno do contrato de compra e venda, que ele pôde extrair a seguinte solução:

A conclusão exterior de um contrato, a nulidade do mesmo, uma falha do vendedor, i. é, a ausência de uma qualidade que ele deveria contratualmente garantir, o desconhecimento, por parte do comprador, dessa falha e uma acção contratual de indemnização. Este poderia encarar ou o interesse do (autor) na conclusão do contrato e no seu cumprimento ou o seu interesse não na realização das despesas e outros custos ocasionados pela preparação e celebração; no primeiro caso, o interesse positivo do contrato e, no segundo, o negativo. [154]

Tendo despertado enorme interesse da comunidade jurídica da época, muitos foram os doutrinadores que, a partir da semente inicialmente lançada por IHERING, passaram a estudar a questão.

Retomando o ensaio deste autor, um ponto que não deve passar despercebido é o que diz respeito "ao ressarcimento dos danos causados pela parte que deu causa à invalidade do contrato." [155]

Antes de adentrar propriamente à questão, é imprescindível tecer algumas considerações em torno do que a doutrina convencionou chamar de interesses negativo e positivo. Pelo primeiro devemos entender ser conveniente fazer com que o prejudicado retorne ao status quo ante. Por outro lado, este último impõe a necessidade do cumprimento do que fora pactuado, ou dito de outro modo, "o direito à execução do contrato". [156] Embora se saiba que no interesse negativo não se acham inclusos os lucros cessantes, IHERING aventou a possibilidade de que em alguns casos, seria possível abrangê-lo. Isto fica ainda mais evidente naqueles casos em que, em função da não concretização do negócio, outros contratos deixem de ser realizados.

Quanto à necessidade de se encontrar um fundamento jurídico para o instituto criado, embora tivesse inicialmente cogitado em embasá-lo na boa-fé subjetiva - a mesma que detém, v.g., o possuidor que crê ser legítima a sua permanência no imóvel - IHERING acaba se convencendo de que tal hipótese deveria ser descartada, uma vez que a solução jurídica mais apropriada ao contraente lesado é a ação de indenização. A partir daí então, fica evidente a necessidade da prova da culpa para "a fundamentação do dever de indenizar." [157]

Uma última indagação ainda se apresenta: em que se deve amparar a solução por ele buscada: na vontade das partes ou na lei?

A princípio, o ensaio de IHERING, comportava ambas as saídas. Forçar o enquadramento da generalidade dos casos em uma ou em outra, no entanto, denota apenas que se quer "evitar que, graças aos esquemas da culpa in contrahendo, novas construções dogmáticas, com bitolas próprias de decisão, ganhem terreno no espaço jurídico." [158] Isto porque sempre é mais fácil, diante de qualquer novo acontecimento, quer pertença ele ao universo jurídico ou não, rotulá-lo dentro das classificações pré-existentes.

Constatou-se, contudo, que "a sua alternatividade é aparente", uma vez que inúmeros são os casos que escapam a essa dicotomia.

Assim, tendo sido demonstrada a impossibilidade de se proceder desta maneira, para Antonio Menezes CORDEIRO [159] a culpa in contrahendo adquire realmente status de instituto autônomo.

4.3 O ALARGAMENTO DA RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL À LUZ DA BOA-FÉ

Originalmente, tal como foi concebida por IHERING, a responsabilidade pré-contratual somente tinha lugar naqueles casos em que a parte que tinha ciência de uma causa de invalidade do contrato deixasse de comunicá-la à seu parceiro negocial, causando-lhe evidente prejuízo.

Sem tirar o mérito do ensaio do referido autor, que sem dúvida foi de grande importância para que o instituto atingisse seu atual estágio, outros civilistas, notadamente FAGELLA [160] na Itália, SALEILLES [161] na França e LEONHARD [162] na Alemanha, a partir do ensaio pioneiro daquele autor, passaram a se debruçar sobre outras hipóteses em que fosse possível se cogitar da responsabilização por fato ocorrido em fase anterior à do contrato propriamente dito.

Assim, embora IHERING estivesse correto quanto ao cabimento da responsabilização na hipótese acima levantada, as idéias de Gabrielle FAGELLA, posteriormente aperfeiçoadas por SAILELLES, construídas a partir daquele estudo inicial, constituíram uma das mais valiosas contribuições no campo do Direito contratual contemporâneo: "a inclusão do elemento da boa-fé como fonte da responsabilidade pré-contratual". [163] Do mesmo modo, na Alemanha, LEONHARD afirmava que não era justo que incidisse "apenas quando tivesse agido com dolo, ou quando houvesse assegurado a qualidade em causa." [164] Era preciso que respondesse, "também, por negligência." [165] Assim imaginara que sua incidência merecesse ser ampliada, isto porque "o dever de cuidado exigido na efetivação da prestação concretizar-se-ia logo nas negociações." [166]

De modo que, se por um lado IHERING havia fundado sua teoria apenas na vontade, tendo lugar unicamente quando da nulidade do contrato (natureza contratual), FAGELLA e SAILLELES passaram a considerar que "uma ruptura intempestiva das tratativas negociais [também] poderia gerar responsabilidade quando verificado um dano específico." [167] LEONHARD, por sua vez, circunscreve a responsabilização aos casos em que esta tem origem na quebra de deveres pré-existentes. Fala-se aqui daqueles casos em que a conduta empreendida pela parte faça surgir uma série de deveres acessórios, em razão das legítimas expectativas criadas no outro em relação à conclusão do negócio.

Dessas hipóteses, porém, pelo peculiar interesse que despertam, se irá tratar especificamente mais adiante.

Com isso, o caráter do instituto, que em IHERING tinha origem direta no contrato em questão, passou a admitir também mais uma fonte: a que se impõe a toda uma coletividade de não invadir ilicitamente a esfera jurídica de outrem e que está presente em grande parte dos ordenamentos, a exemplo do art. 186 [168] do Código Civil brasileiro. Tal difusão mereceu por parte da ciência jurídica a caracterização de um instituto próprio, denominado neminem laedere ou a ninguém lesar.

4.3.1 Natureza Jurídica

Não é recente a problemática existente na tentativa de se apurar a natureza jurídica da responsabilidade pré-contratual. Tal impasse se justifica em razão de que sendo muitas as hipóteses em que ela pode incidir, a partir de cada uma delas é possível extrair elementos que se prestam a reforçar ora o entendimento daqueles que a têm por contratual, ora o posicionamento dos que a têm por aquiliana.

Há ainda aqueles que crêem se tratar verdadeiramente de uma espécie à parte, uma nova classificação, um tertium genus.

Na verdade esta dicotomia não está presente em todos os ordenamentos. Isto porque a maior parte destas diferenças, em verdade, "não encontra justificação prática ou lógica" [169], uma vez que "(...) essa vinculação (...) desejável em sentido genérico, sucumbe freqüentemente na prática do foro, onde os interesses protegidos são visualizados particularizadamente e nos limites do caso." [170] De qualquer modo, cabe abordar este ponto que tanto tem despertado a atenção dos que se ocuparam do tema.

Mario Júlio de Almeida COSTA [171] após ter discorrido vastamente sobre o assunto, tendo demonstrado o posicionamento de diversos autores, acaba concluindo se tratar de instituto de natureza aquiliana. E o faz com base na doutrina italiana em torno do art. 1337 daquele Código [172], bem como nos princípios que se inserem nos art. 186 e 927 [173] da lei brasileira [174] (neminem laedere). Posicionam-se no mesmo sentido Alexandre Tavares GUERREIRO [175] e com maior peso, Clóvis do Couto e SILVA. [176]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Contrariamente, o professor Carlyle POPP defende a tese contrária, entendendo realmente que se trata de questão de natureza contratual. Isto porque, segundo ele "o contato social propicia o surgimento de deveres de conduta, fundamentados no princípio da boa-fé objetiva, mas cuja situação jurídica tem índole relativa. A relação jurídica não nasce do ilícito, mas é a ele preexistente". [177] De maneira que, em seu entendimento, a relação jurídica tem origem no "conteúdo das tratativas e da conduta das partes." [178]

Já para Antonio CHAVES, mais apropriado é admitir que o instituto possui natureza própria. A ele se filiou, mais recentemente, Regis Fichtner PEREIRA. Segundo este último autor "o fato de entrar em negociações não deixa mais indene a situação respectiva das partes, e que é suscetível de acarretar, em certos casos e sob determinadas condições, sua própria responsabilidade." [179] (grifos nossos)

E conclui o seu posicionamento, com apoio em SAILELLES, asseverando que "existe (...) como que uma espécie de responsabilidade virtual, implícita em toda contratação começada de comum acordo. Haveria algo de artificial e de insuficiente em não atribuir valor jurídico senão ao ato jurídico propriamente dito." [180]

Esta discussão em torno da natureza presente no instituto em análise adquire extrema relevância [181] na medida em que dependendo da feição que a ele se reconheça, diversas serão as conseqüências quanto à abrangência da reparação a ser efetuada. Isto porque, caso se a considere contratual, a culpa (lato sensu) será presumida. Do contrário, estes elementos carecem de prova específica.

Assim também ocorrerá em relação aos danos emergentes e os lucros cessantes. Se tomarmos por base o contrato que estava em jogo, estes devem se subsumir ao lucro não percebido "por efeito dela direto e imediato". [182] Diferentemente do que ocorrerá se tiver lugar o reconhecimento de seu caráter aquiliano, hipótese em que se admite o ressarcimento em relação a qualquer espécie de lucro. Idêntico raciocínio se aplica para a capacidade daquele que ingressa com o pedido indenizatório: contratual ou delitual. [183] Por fim, vale dizer que diversos também são os prazos para o exercício do direito. Como se vê, muitas são as implicações que a distinção acarreta, não cabendo por ora se estender demasiadamente.

Não podemos esquecer, contudo, que originariamente, tal como foi concebida, IHERING concluíra possuir sem dúvida uma feição contratual. Isto porque, segundo ele "este vínculo entre a culpa e a relação contratual podemos concebê-la como puramente exterior." [184] E ainda que a culpa, de per si, possua um caráter "puramente exterior", "este vínculo é, na realidade, um vínculo interno; a culpa que aqui se apresenta é exatamente da mesma espécie daquela que nós encontramos somente nas relações contratuais." [185]

Pensa-se que dentre as espécies de natureza do instituto aqui referidas, a mais adequada é a que por último se referiu, ou seja, a natureza contratual. Isto porque, conforme a fundamentação expendida, é aquela que possui, em nosso entendimento, os melhores argumentos.

Não obstante isso, não há realmente como equiparar a responsabilidade da coletividade em relação a um dado indivíduo, com aquela que decorre especificamente da situação em que se encontram sujeitos que após iniciarem tratativas, já estão determinados.

Hodiernamente, a questão parece estar, senão pacificada, ao menos minimizada. Antes de se filiar à esta ou àquela natureza, deve-se salientar que na verdade, a responsabilidade pré-contratual tem suas raízes no princípio da boa-fé objetiva [186], embora, como fora dito, não há como negar que as razões propugnadas pelos defensores da natureza contratual sejam de fato as mais coerentes. Fica evidente a importância da atividade jurisdicional especificamente quanto a este aspecto: novamente, caberá apenas ao intérprete a determinação, diante de cada caso, de quantum indenizatório compatível com os elementos que de cada lide seja possível extrair.

4.4 A RUPTURA DAS TRATATIVAS: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL

Viu-se logo na primeira parte deste estudo que a ampla e irrestrita liberdade contratual então vigente no séc. XIX, calcava-se no dogma da autonomia da vontade. Na mesma oportunidade demonstrou-se também que com o advento dos meios de produção de massa e o reconhecimento da supremacia das normas de ordem pública no bojo das principais Constituições democráticas acabaram por impor significativas restrições àquele princípio. Isto porque, como bem anotou Judith MARTINS-COSTA, "a tutela da confiança [avançou] no sentido da superação da mitologia da vontade." [187]

A retomada de tais aspectos anteriormente considerados mostra-se relevante na medida em que também traz importantes reflexos no campo da responsabilidade pré-contratual.

Como também já foi dito, plúrimas são as categorias de negócios jurídicos nas quais é possível falar-se em responsabilização por fato ocorrido durante a fase das tratativas. Assim, há certos tipos de negociação - como as que se dão no âmbito do comércio internacional, assim como aquelas que envolvem grande monta de recursos financeiros - nas quais, justamente por reclamarem um período de negociações mais extenso e detalhado, torna-se mais freqüente a visualização da responsabilidade pré-contratual, em oposição àqueles casos em que o contrato é concluído de forma instantânea, como, v.g., na hipótese de venda de periódicos em banca de revistas, assim como naquelas relativas a bens não-duráveis em geral. [188]

A análise doutrinária em torno do tema acabou por concluir que é possível decompor o período que antecede a conclusão do negócio - ou seja, aquele que vai do momento em que há a aproximação entre as partes até o imediatamente anterior à aceitação [189] - em pelo menos duas fases internas: a de meras conversações preliminares, em que não é possível admitir qualquer responsabilização e aquele que vai do momento em que se iniciam os atos preparatórios - nos quais muitas vezes, já há o emprego de esforços e recursos no sentido de se alcançar o negócio juridicamente considerado - até o instante imediatamente anterior ao de sua conclusão. É precisamente no curso deste segundo momento, em que já é possível se atribuir "conseqüências jurídicas [pela] interrupção ou cessação das negociações preliminares", [190] que a responsabilidade pré-contratual tem seu lugar assegurado. [191] Isto porque, já nesta fase, embora ainda não seja possível se falar em contrato, não há como não negar a existência de uma "vinculação jurídica." [192]

Retomando-se a sistemática adotada por este estudo, traçou-se em um primeiro momento o caminho percorrido pelo princípio da boa-fé objetiva que pouco a pouco foi adentrando no rol dos princípios contratuais civis. Em seguida, demonstrou-se a operatividade deste vetor no âmbito da relação obrigacional. Neste último capítulo, busca-se justificar a ocorrência de responsabilidade pré-contratual através da quebra dos deveres acessórios que decorrem da boa-fé objetiva.

Sabe-se também que ocorrido um dado fato em que tenha lugar a responsabilidade pré-contratual, nasce imediatamente um dever de reparação, um dever de indenizar. A conjugação de boa-fé e responsabilidade pré-contratual se expressa com singular precisão através das palavras de Maria Cláudia CACHAPUZ: "a origem de tal dever parte do princípio de que da obrigação pré-contratual de boa-fé decorre o dever de não interromper as negociações preliminares sem justa causa." [193]

E é justamente o descumprimento deste dever de não interrupção que torna possível reconhecer a violação aos deveres acessórios, os quais, diga-se de passagem, já foram objeto de análise em momento anterior. Tais deveres, a partir de agora, passam a ser novamente o foco principal das atenções, com a ressalva de que agora a analisaremos sob o viés da responsabilidade pré-contratual. Isto porque, "com efeito, a consideração da boa fé nas negociações preliminares encerra vasta gama de preocupações, determinando efeitos concretos no tocante ao comportamento das partes, em seu relacionamento pré-contratual." [194]

Vários são os autores que mais recentemente têm se preocupado com a questão, destacando-se os trabalhos de Judith MARTINS-COSTA, [195] Regis Fichtner PEREIRA [196] e o do professor Carlyle POPP. [197] Como já dissemos ao tratarmos dos deveres acessórios de um modo geral (Cap. III), qualquer tentativa em delimitá-los acaba revelando deficiências.

Por questões metodológicas, contudo, utilizar-se-á a tripartição em deveres de informação, proteção e lealdade, até porque é possível reduzir as classificações anteriores nestes três deveres principais. Deste modo, o dever de informação compreende também o dever de clareza, pois admitir que se faça uso de informações obscuras, seria o mesmo que violar o dever de informar. Ora, a informação só é satisfatória se for clara o bastante para não deixar dúvidas na pessoa de quem dela necessita.

Já o dever de sigilo e o de segredo não se afastam de idéia de lealdade e de correção. Finalmente o de guarda e restituição, assim como o de cuidado podem se somar aos de proteção e conservação, uma vez que, em última análise integram uma mesma conduta.

Vejamos então, um a um, os três principais comportamentos que ensejam a aplicação do instituto.

4.4.1 Informação

A exemplo do que foi falado quando de sua manifestação dentro do fenômeno da complexidade intra-obrigacional, tal dever pode variar conforme a posição da parte dentro da relação contratual, sendo maior quando não desfrutem da mesma condição jurídica. Assim, em relação aos fabricantes, fornecedores, distribuidores, prestadores de serviço e vendedores é natural a exigência que forneçam informações não apenas em maior número, como também mais detalhadas, sobretudo quando o contrato estiver sendo travado entre estes e um leigo que não detenha tais conhecimentos.

Disse-se que as informações aqui referidas são aquelas que envolvem as condições específicas de cada negócio [198]. Na prática, estas podem se apresentar sob as mais diversas formas, tais como: prazos de entrega e para pagamento, instruções de uso, informações básicas do produto na embalagem, dentre outros.

A partir da edição da lei 8.078/90, foi possível notar um grande avanço na tutela jurídica deste dever. Isto porque o Código de Defesa do Consumidor contém disposição situada no âmbito da responsabilidade pré-contratual. A partir do art. 46 [199] é possível afirmar que a ausência das informações necessárias implica na própria inexistência de vínculo contratual. [200]

Outra disposição de grande importância é a do art. 6º, III [201], que ao enumerar como direito básico do consumidor o acesso às informações claras e adequadas traz consigo o dever genérico de informar do fabricante. Vale referir ainda o art. 30, que dispõe sobre o efeito vinculativo da oferta [202].

Doutrinariamente, tem-se admitido que a partir da previsão normativa do dever de informar não se admite mais que a parte aja com dolus bonus. Sua importância refere-se àqueles casos que não há propriamente a violação de tal dever, mas a ocultação de certas informações desfavoráveis acerca do objeto.

Concluindo, cabe salientar que ressalvadas as hipóteses de oferta pública, tem-se entendido que o dever de informar implica em exclusividade de negociação. Assim, uma vez iniciadas as conversações com vistas à conclusão de um contrato presume-se que as partes não devem prosseguir com outros contatos simultâneos, de modo a não frustrar o interesse da contraparte na celebração. [203]

4.4.2 Proteção

Reiterando o que já dissemos no tópico relativo aos deveres decorrentes da complexidade intra-obrigacional, interessa o comentário exarado por Ana PRATA. [204] Aventando a possibilidade na qual determinado bem ou documento que fora entregue a certa pessoa ser confiado a terceiro sujeito - um perito, por exemplo -, dita autora lusitana propugna pela necessidade de que o dever a ser observado por parte daquele que efetua tal repasse é ainda maior, dele podendo surgir o dever de indenizar ainda que não tenha procedido com culpa.

Tem-se levantado discussões quanto à dificuldade em se determinar-se com precisão o exato momento em que, na violação de tal dever, tem origem a responsabilidade pré-contratual. Novamente a mesma autora, ao se debruçar em torno do problema, cita que, num primeiro momento - a exemplo do que ocorrera no célebre caso do linóleo, do qual falaremos logo a seguir - não é possível cogitar-se desta espécie de responsabilidade pela simples entrada do cliente no estabelecimento, mas somente a partir do instante em que solicita auxílio ao vendedor para que possa proceder ao "exame de certas mercadorias." [205]

A evolução jurisprudencial que se seguiu, contudo, acabou por ampliar significativamente o âmbito de incidência do instituto, tendo se reconhecido que - fazendo um paralelo com a referida decisão -, bastaria a entrada do cliente no interior da loja, somada à ocorrência do respectivo prejuízo decorrente desta condição, para a configuração do dever de indenizar.

Os tribunais alemães, em uma terceira etapa, chagaram a admitir até mesmo a possibilidade de que tais deveres se projetem sobre terceiros, "alheios à relação pré-negocial." [206]

4.4.3 Lealdade

Já referimos mais de uma vez que a adoção por uma classificação tripartida deve-se mais a uma questão metodológica do que a qualquer outro motivo. Isto porque inúmeras são as condutas empreendidas que podem dar ensejo à configuração da responsabilidade pré-contratual.

É o que ocorre especificamente quanto a este comportamento. Doutrinariamente tem-se admitido que referida categoria compreende tanto uma conduta omissiva quanto uma atuação positiva.

No primeiro caso fala-se em um dever de sigilo ou conforme a denominação que tem sido mais utilizada, um dever de segredo. [207] De qualquer modo importa dizer que esta imposição se estabelece tanto em relação a dados e informações, quanto ao conhecimento de certos objetos e documentos com os quais os sujeitos tenham tido contato por efeito direto e imediato das conversações. [208]

Quanto às hipóteses em que mais comumente é verificado, adquirem uma importância fundamental aquelas em que o negócio, por qualquer motivo, não vem a se realizar. A partir daí, embora seja normal que as pessoas entabulem novos contatos, subsiste o dever de segredo quanto aos dados obtidos em conversações anteriores, sobretudo com vistas a se evitar que alguém venha a auferir lucros em seu próprio proveito em decorrência de tais circunstâncias [209] o que se coloca como algo manifestamente inadmissível.

Sintetizando objetivamente a questão o professor Carlyle POPP elenca três requisitos básicos para a configuração de sua violação: a) o recebimento de informações ou conhecimentos de fatos da outra parte; b) que tal circunstância tenha sido motivada pela existência de tratativas entre as partes e, finalmente; c) que a transferência destas informações a si próprio ou a terceiros tenha como escopo a obtenção de algum tipo de benefício. [210]

De modo diametralmente oposto, encontram-se os deveres de lealdade propriamente ditos. Originalmente, é possível afirmar que toda e qualquer retirada arbitrária da fase negociatória representa, de algum modo, a quebra de um dever de lealdade. [211]

Uma dificuldade que se afigura para o julgador em relação a este dever é a de se quantificar os danos a serem indenizados. Isto porque a linha divisória entre o quantum a ser suportado pelo próprio prejudicado, do prejuízo que a ele deva ser ressarcido é sem dúvida algo muito tênue. [212] Na prática, é muito comum que alguém, provavelmente interessado nas informações que possa vir a adquirir, inicie negociações com o único propósito de as romper posteriormente [213] e neste caso não haverá qualquer duvida quanto à sua responsabilidade.

Há um traço característico que muito o distingue dos demais deveres: o de que, à medida que as conversações vão avançando, há também um aumento gradual de sua intensidade, devendo ser mais fortemente observado no momento em que o grau de confiança atingido vá se aperfeiçoando. [214] Em uma última etapa, pode ensejar até mesmo a obrigatoriedade de contratação. [215]

O professor Carlyle POPP enumera dois pressupostos, os quais, segundo ele, põem-se como indispensáveis na sua averiguação: a) a existência de efetivas negociações, bem como que elas tenham gerado razoável confiança na outra parte e; b) que a ruptura tenha ocorrido de forma ilegítima.

Uma última observação a seu respeito é a de que, embora não seja possível afirmar tratar-se de algo inusitado - mas sem dúvida bem menos usual -, pode ocorrer que a parte a ser ressarcida seja a mesma que tenha se retirado abruptamente das negociações. Basta imaginar a hipótese em que, já tendo sido atingido um grau avançado nas negociações, alguma das partes descubra que a outra tenha ocultado, durante todo o tempo, a existência de circunstância essencial à conclusão satisfatória do projeto a ser firmado. Nesta hipótese, visualiza-se, de modo claro, a possibilidade de que a parte que desconhecia tais circunstâncias possa experimentar prejuízos.

Tendo sido estudado os deveres acessórios de conduta especificamente na fase que antecede à do contrato propriamente dito, atingimos a última etapa deste trabalho. Nela, procurar-se-á analisar as principais decisões judiciais que deram origem às discussões em torno do tema, para ao final, conectá-las à possibilidade de incidência da responsabilidade pré-contratual no âmbito do Direito brasileiro.

4.5. A RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL PELA QUEBRA DOS DEVERES ACESSÓRIOS: ANÁLISE À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

4.5.1 A Experiência Européia

Ao contrário do que até bem pouco ocorria no âmbito do Direito brasileiro, em que ausência de uma cláusula geral como a prevista pelo art. 422 do atual Código Civil trazia inegáveis prejuízos, alguns países convivem, já há algum tempo, com disposições que acolheram expressamente a possibilidade de responsabilização pela quebra dos deveres acessórios que decorrem da boa-fé. É o que acontece, mais nitidamente, em algumas nações européias.

Dentre aquelas que merecem destaque, podemos citar, além de Alemanha e Portugal, a Itália [216], a Espanha [217], a Grécia, entre outros.

Por uma questão metodológica, contudo, este estudo irá se ocupar mais detidamente da experiência obtida por Alemanha e Portugal, países em que a legislação e a jurisprudência foram capazes de dar à responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres que decorrem da boa-fé o tratamento devido.

Antes de seguir-se à análise dos casos mais célebres, deve-se esboçar os respectivos fundamentos legais sobre os quais se amparou a jurisprudência destes países.

4.5.1.1 A grande contribuição alemã

É indubitável a contribuição do BGB de 1896 dentro das grandes codificações contemporâneas. Calcado em alguns pilares fundamentais [218], um deles é sem dúvida o princípio da autonomia da vontade. Dentro da temática em estudo, porém, adquire grande importância a denominada "Teoria da Confiança", a qual, tendo sido construída a partir de inúmeros dispositivos de lei, está fortemente ligada à idéia de boa-fé objetiva.

Referida teoria traduz-se essencialmente através da necessidade de se conferir segurança ao tráfego jurídico, uma vez que à época em que o BGB foi elaborado era interessante à nação alemã, em vista da relação que travava com outros países, "dotar (...) seu sistema de elementos atrativos ao comércio." [219]

Diversamente do que ocorre em Portugal, onde, conforme se verá a seguir, a responsabilidade pré-contratual obteve expresso tratamento legal, o amplo desenvolvimento que o instituto alcançou na Alemanha, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, está baseado na cláusula geral da boa-fé, conforme previsão do § 242 de seu Código. [220] Na realidade, a lei apenas recepcionou o que a prática comercial daquele país já consagrava [221]. Neste sentido, de grande clareza as palavras de Maria Cristina Cereser PEZZELLA [222]

A evolução da jurisprudência civilística alemã (...) a partir de 1900 torna-se cada vez mais vivaz e elástica, pois mesmo com o caráter acentuadamente positivista do BGB "procurou manter-se a par das transformações econômicas e sociais que começaram a inundar a Alemanha" logo após a entrada em vigor do BGB. A jurisprudência encontrou novas soluções para situações também novas, de modo que o direito privado "de fato vigente", em particular a teoria geral e o direito das obrigações, já não podia ser deduzido somente do texto de lei.

Outro aspecto relevante que contribuiu ainda mais para que seu âmbito de incidência fosse ampliado, deve-se ao fato de que sua aplicação independe de ser argüida por qualquer dos litigantes, permitindo ao magistrado aplicá-la de ofício. [223]

Dentre os muitos momentos em que a lei alemã se refere à boa-fé objetiva, cumpre também destacar o imperioso papel que desempenha o § 157 no ordenamento germânico. De fato, este dispositivo, combinado com o anterior, mostraram-se hábeis a proporcionar o avançado desenvolvimento que a responsabilidade pré-contratual atingiu na Alemanha. Dispõe o referido dispositivo que "os contratos serão interpretados como exigem a fidelidade e a boa-fé em atenção aos usos do tráfico". Esta atuação conjugada destes dois referenciais é de grande importância, uma vez que "o § 157, BGB, estabelece o conteúdo da dívida e o § 242 (...) regula a maneira da prestação." [224]

No que atine aos limites da indenização admitidos permitidos pelo respectivo ordenamento, na visão do professor Carlyle POPP, este se restringe ao interesse negativo. Embora admitindo que a questão seja bem controvertida, sua conclusão deflue-se da "interpretação do § 307 [225] do BGB." [226]

Feitas estas considerações em torno da previsão legal reservada ao tema dentro do ordenamento alemão, passa-se agora a trazer alguns exemplos que evidenciam o amplo alcance que os tribunais daquela nação proporcionaram à questão.

O primeiro deles e certamente o mais famoso dentre todos os casos de responsabilidade pré-contratual corresponde à decisão proferida já no ano de 1911. Trata-se do célebre "caso do linóleo", cuja descrição se vê logo a seguir

A autora realizara determinadas compras num estabelecimento e pretendeu, depois, adquirir um tapete de linóleo; dirigiu-se, para tanto, com um empregado, ao sector de linóleos, onde, por negligência dele, foi colhida, conjuntamente com a criança, por dois rolos que caíram. O RG julgou que, tendo ocorrido os factos numa seqüência em que se visava um efeito contratual, havia, entre as partes, uma relação preparatória, de natureza semelhante a uma relação negocial. A esta relação dever-se-ía aplicar a idéia, comum aos vínculos contratuais e negociais,segundo a qual destes podem resultar deveres de cuidado com a vida e a propriedade do parceiro. Estes deveres haviam sido violados. [227]

Assim, entendeu o tribunal germânico que o fato do cliente já se encontrar no interior do estabelecimento com o propósito deliberado de adquirir tais mercadorias faz nascer para o lojista o dever de diligência para com o possível cliente. Isto porque, como bem assinala a professora Rosalice Fidalgo PINHEIRO "há certos contratos que se subordinam a uma série de atos preparatórios", [228] dentro dos quais já há de se impor às partes alguns deveres de conduta em geral, como por exemplo, os de lealdade e probidade, ou, neste caso específico, o de proteção do cliente, no que diz respeito à sua integridade física e segurança.

Contudo, ao contrário do que possa parecer, nem sempre a observância de tais deveres é de se exigir apenas da parte mais forte na relação. Embora seja mais comum que ele seja violado pela parte se coloca de modo mais robusto em face da relação, tudo dependerá da apreciação do caso concreto. É o que ocorre, aliás, na decisão a seguir transcrita.

Em BAG 7-Fev.-1964 entende-se que uma trabalhadora, escolhida em concurso para ocupar determinado posto, é responsável quando, estando doente e carecendo de um período longo de convalescência, cala esse aspecto na entrevista de selecção e, de seguida, falta sucessivamente a várias convocatórias para iniciar funções, acabando por comunicar a sua impossibilidade para celebrar o contrato de trabalho encarado: inutilizou, com isso, todo um processo de selecção para preenchimento de um lugar. [229]

Viu-se aqui, especificamente, a transgressão de um dever de informar, ou como prefere a professora Ana PRATA, de um dever de esclarecimento. Reiterando o comentário exarado anteriormente à transcrição dos fatos, nota-se que, a trabalhadora, embora aparentemente hipossuficiente frente à organização responsável pelo processo seletivo, foi capaz de causar-lhe inegável transtorno, daí porque ser evidente o seu dever de ressarcir os prejuízos experimentados, comprovando o que se acima se afirmou.

Finalmente, Antonio Menezes CORDEIRO nos traz ainda um exemplo relativo à quebra do dever de lealdade no iter das negociações preliminares.

Um caso de deslealdade simples é o figurado em BGH 19-Out.-1960. No decurso das negociações preliminares para a locação produtiva de um prédio danificado pela guerra, a entidade pública titular criou, no futuro locatário, a idéia justificada de que o clausulado contratual seguiria um determinado modo. Mudou, depois, de linha. O BGH entendeu que, segundo a boa-fé, haveria que ter em consideração os interesses da outra parte, modelados pela confiança provada. [230]

Vê-se, com isso, que a confiança havida entre as partes, a partir de uma convenção fixada, ainda que meramente verbal, foi violada, ensejando, segundo a sábia decisão proferida pela corte germânica, o dever de reparar.

Por fim, vale referir ainda, uma decisão proferida neste mesmo país no ano de 1976, em que o proprietário de um iate leva sua embarcação a uma oficina para que esta engendre alguns consertos. Embora o conserto não tivesse sido combinado, uma vez que o dono hesitava quanto à possibilidade de vendê-lo, o barco permaneceu no estabelecimento. Ao remover a embarcação de modo inapropriado, produziu-se danos substanciais, de maneira que os deveres de cuidado e conservação foram infringidos. [231]

Como dito, estes são apenas alguns dos exemplos mais representativos que o instituto tornou possível naquele país. A partir da experiência alemã, inúmeros outros países, mutatis mutandis, passaram a proceder de modo similar. Foi o que ocorreu também em Portugal, conforme a seguir passamos a demonstrar.

4.5.1.2 Da lei à doutrina: a trajetória do instituto em Portugal

Fortemente influenciado pelo acolhimento do instituto em outros países europeus [232], sobretudo em Grécia [233] e Itália, o Código Civil português de 1966, atualmente em vigor, distinguiu-se dos demais por ter recepcionado a responsabili-dade pré-contratual de forma expressa.

Reza o referido Código em seu art. 227:

"Art. 227º (Culpa na formação dos contratos):

1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato, deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.

2. A responsabilidade prescreve nos termos do art. 498º." [234]

Ponderando sobre o tratamento que o dispositivo conferiu ao instituto, Judith MARTINS-COSTA anota que "embora a doutrina anunciasse que o fundamento da norma aí posta reside nos cânones da lealdade e probidade, (...) a aludida cláusula geral esteve, até os anos oitenta, como que sem voz". [235] Foi então que em 1981, o Superior Tribunal de Justiça daquele país pronunciou-se neste sentido, em paradigmática decisão:

CULPA IN CONTRAHENDO. INDEMNIZAÇÃO. FACTO IMPEDITIVO. ÔNUS DA PROVA. BOA-FÉ. MÁ-FÉ.

I - Quem, ao negociar um contrato, (formal ou não), deixar de proceder com honestidade, incorre no dever de indemnizar os prejuízos que daí advinham, para a contraparte. II - É ao contraente que interrompeu as negociações que compete provar ser isto devido a impedimento relevante. III - A boa fé ou má fé não se provam directamente; inferem-se do comportamento das pessoas. [236]

Em suma, os fatos que embasaram o caso foram os seguintes: as partes, com vistas à viabilizar a transferência de um estabelecimento comercial destinado à venda de tecidos, acordaram verbalmente a cessão das quotas da referida sociedade, na qual laboravam treze costureiras.

Com isso, a adquirente resolveu inclusive cancelar uma série de encomendas que já haviam sido feitas, embora ainda não houvessem sido entregues. Desta forma, os cessionários adquirentes, aos olhos de quem os via, atuavam como verdadeiros donos: davam ordens às empregadas, contactavam fornecedores, etc.

O problema, porém, residiu em circunstância diversa, porém fundamental: não obstante o estágio em que as negociações já se encontravam, os ainda proprietários recusavam-se a conferir a outorga da escritura de compra e venda do estabelecimento. Referida atitude, por óbvio, acabou violando claramente os ditames de lealdade e boa-fé na fase das tratativas negociais, ensejando a que os adquirentes ingressassem em juízo para resolver a questão.

Retomando a análise do dispositivo legal responsável pelo reconhecimento da responsabilidade pré-contratual em Portugal, ou seja, o art. 227 do CC de 1966, deve-se fazer alusão à extensão do quantum indenizatório admitido naquele país. No texto de lei, não há qualquer referência quanto à limitação da indenização ao interesse negativo.

Embora textualmente o dispositivo se refira a "contrato", há quem defenda que não há nada que obste que o julgador, quando for aplicá-lo, mediante interpretação extensiva, considere-o válido também diante de negócios jurídicos unilaterais. Isto porque, no entender de Ana PRATA, "basta (...) que tais atos possuam um destinatário". [237]

Dentro da amplitude conferida ao instituto através deste dispositivo legal, deve-se fazer alusão à extensão do quantum indenizatório admitido naquele país. No texto de lei, não há qualquer referência quanto à limitação da indenização ao interesse negativo.

Desta forma, diversamente da postura adotada pelo BGB germânico, não há a necessidade de que tais prejuízos fiquem adstritos àqueles "decorrentes da confiança que a outra parte depositou na constituição, na validade ou na plena eficácia do contrato." [238]

Outro é o entendimento do professor Carlyle POPP. Segundo ele, de acordo com a previsão deste artigo, o prejuízo indenizável está adstrito tão somente ao interesse negativo, ou seja, "à perda patrimonial que não teria tido se não fosse a expectativa na conclusão do contrato frustrado ou a vantagem que não alcançou por causa da mesma expectativa gorada (teria vendido a terceiro por melhor preço ou teria comprado por melhor preço a terceiro)." [239]

Dito autor sustenta seu posicionamento pautado no entendimento doutrinário e jurisprudencial daquele país, assim como em uma compreensão sistemática do assunto, propiciada por uma leitura atenta dos artigos 898 [240] e 908 [241] do Código Civil português.

Data vênia, a determinação dos limites da indenização, acertadamente a nosso ver, deve ficar a cargo do julgador, o único capaz de determiná-lo a partir das peculiaridades do caso concreto.

Tanto é assim, que o Supremo Tribunal de Justiça português já se posicionou no seguinte sentido:

RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL. DANO EMERGENTE. LUCRO CESSANTE.

I – As partes, no decurso das negociações de um contrato, devem actuar de boa fé, isto é, devem agir segundo um comportamento de lealdade e correcção que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com a celebração do contrato – princípio que tem a sua confirmação no estatuído no n. 2 do artigo 762 do Código Civil – e, se as partes assim não procederem, terá que faltar a essa conduta de arcar com a responsabilidade pelos danos ocasionados à contra-parte, nisto consistindo a chamada responsabilidade da culpa "in contrahendo" que se acha estabelecida na norma do artigo 227, n. 1 do Código Civil. II – Tanto nos preliminares (danos emergente e lucros cessantes), como os danos patrimoniais, desde que, é claro, estejam, relacionados por um nexo de causalidade do facto causador da responsabilidade, são indemnizáveis. III – Os lucros cessantes compreendem os benefício que o lesado, com fundada probabilidade, teria obtido se não houvesse iniciado as negociações frustradas e, sem culpa sua, confiado na boa fé da contraparte, máxime quanto à válida conclusão do negócio. IV – Provado que existiram efectivas negociações entre o Autor e o pai dos Réus, propostas por este, tendentes à realização de um contrato de compra e venda de um imóvel, identificado no processo, e que tais negociações ultrapassaram a fase negociatória e se situaram no período decisório, já que ambas as partes acordaram na compra e venda do prédio pelo preço de 900 contos; o Autor se prontificou a entregar o sinal, que não foi aceite, e procedeu seguidamente a determinadas demarches com vista a constituição do prédio em propriedade horizontal, pagando as respectivas despesas, tendo o procurador do pai dos Réus assinado os documentos necessários para tal fim; a ruptura, por parte dos Réus, configura-se como ilegítima, desrespeitando a confiança que nele depositava o Autor, pelo que lhe cumpre reparar os danos que, porventura, hajam causado ao Autor com a sua conduta ilegítima. V – Pretendendo o autor ser indemnizado pelos lucros cessantes, consubstanciados no facto de, por via da ruptura, terem deixado de poder vender um dos andares pela quantia de 1000000 escudos, tal dano não passa do mundo das conjecturas e daí não possa ser esperado com alto grau de verossimilhança, exigível para poder vir a ser ressarcido. [242]

Não obstante a corte lusitana ter decidido pela improcedência do pedido, da simples leitura da ementa se pode inferir que não apenas os danos compreendidos no interesse negativo podem ser ressarcidos. Tanto é assim que avultou, in casu, a necessidade de que o réu pague também os lucros cessantes, uma vez que estes, na hipótese, estavam diretamente ligados ao ato ilícito por ele cometido.

4.5.2 A Admissibilidade da Responsabilidade Pré-contratual no Direito Brasileiro

Conforme veremos, embora muitos sejam os casos em que a responsabilidade pré-contratual tenha lugar - vez que hodiernamente múltiplos são os meios de contato social através dos quais o instituto pode estar presente – ainda é possível dizer que os precedentes jurisprudenciais de nosso país constituem situações esparsas.

A propósito, este aparente desinteresse pelo estudo do problema não possui uma única justificativa. [243] Isto porque, na prática, verifica-se que tanto os prejudicados e mesmo seus próprios procuradores muitas vezes desconhecem a possibilidade de obtenção da tutela jurídica adequada. Some-se a isso fato, não pouco comum de que na maioria das vezes é mais vantajoso que este permaneça inerte do que vá buscar a resposta em nosso moroso Poder Judiciário.

Cientificamente, o sistema jurídico em que se funda o Direito brasileiro – civil law – também tem certa influência nesta constatação. Mais do que propriamente em função dele, mas sobretudo devido ao fato de a literalidade das leis ainda preponderar em nosso país, a tendência consolidada através dos tempos demonstrou a preferência por um sistema fechado [244], no qual se verifica uma enorme dificuldade em se recepcionar conceitos e institutos jurídicos novos sem que seja necessário alterar as disposições legais.

De qualquer modo, não obstante todas as dificuldades encontradas para que a responsabilidade pré-contratual fosse reconhecida no Brasil, a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, no início da última década, contribuiu substancialmente para que este quadro começasse a mudar. Isto porque o referido diploma, ao tutelar separadamente o dever de informar do fornecedor, previu expressamente a necessidade de o fazê-lo desde o momento em que a oferta é veiculada. [245]

Como bem anotou Maria Cristina Cereser PEZZELLA anteriormente à entrada em vigor do atual Código Civil, "pelo fato da boa-fé objetiva estar contida expressamente em lei [apenas] para as relações de consumo, isto não significa que o princípio [devesse] ser aplicado apenas no âmbito restrito destas relações, pois ele estende-se para todos os setores do ordenamento jurídico." [246]

Disto é possível concluir, conforme já foi dito, a posição de destaque que o intérprete passa a ocupar na concretização do princípio da boa-fé, sobretudo na fase pré-negocial.

Não se pode negar, contudo, que o amplo desenvolvimento jurisprudencial alcançado pela matéria em alguns países, sobretudo em Alemanha e Portugal, não tenha repercutido em nossos tribuanais, ainda que os casos que envolvam a responsabilidade pré-contratual representem uma fraca tendência em nossas Cortes.

Assim, como bem anota a professora Rosalice Fidalgo PINHEIRO: "Nosso Direito não se manteve alheio a essa mudança metodológica, ao contrário, tratou de recepcioná-la, não obstante as resistências verificadas, por vezes, em nossos tribunais. Muitas das decisões proferidas por estes últimos, testemunham o sentido dessas transformações, que delineiam os princípios contratuais." [247]

Entretanto é possível que com a inclusão da claúsula geral da boa-fé no art. 422 do atual Código Civil este quadro, felizmente, possa ser alterado. Não nos esqueçamos porém que, do modo como foi redigido - mal redigido, diga-se de passagem - muitos poderão se levantar contra uma aplicação do instituto que esteja fora dos momentos de conclusão e execução do contrato. Todavia, é possível também que, pelo fato de a boa-fé - através de sua previsão em uma cláusula geral - permitir ao julgador a criação da norma mais adequada ao caso concreto, ainda haja alguma esperança de que seja aplicada desde o início das primeiras conversações entre as partes. Resta-nos, por ora, aguardar as primeiras decisões neste sentido.

Vejamos então, a partir de agora, o desenvolvimento jurisprudencial que o instituto alcançou em nosso país.

O primeiro dos casos que vale destacar refere-se a fato levado aos nossos tribunais já no ano de 1959, cuja ementa segue abaixo transcrita:

RESPONSABILIDADE CIVIL.

Ato ilícito. Inexistência. Artista convidada a participar do elenco de certo filme. Contrato que não chegou a ser concluído. Pretendida indenização pelos gastos que teria tido com preparativo de vestuário. Lucros cessantes. Inadmissibilidade. Ação improcedente. [248]

Da leitura da íntegra desta decisão - que por razões práticas preferiu-se não transcrever - infere-se que já havia sido estabelecido, inclusive, o papel a ser desempenhado pela artista, bem como a respectiva remuneração. Deste modo, a autora passou a iniciar, por sua própria conta, despesas com vistas a aquisição de seu figurino. Às vésperas de iniciar os trabalhos, contudo, alegou-se que ela não possuía o tipo físico adequado para representar o personagem.

A decisão não reconheceu a possibilidade de indenização por inadimplemento contratual, tampouco a existência de culpa stricto sensu, uma vez que segundo o raciocínio expendido pelo relator do caso, não ocorrera qualquer ato ilícito. Vê-se assim, que sua tese foi mal fundamentada, uma vez que em verdade não se tratava de mero ressarcimento por gastos realizados, mas sim de negociação preliminar com natureza contratual, não havendo portanto nenhum motivo a justificar a ruptura posterior do acordo.

Comentando este caso, Regis Fichtner PEREIRA ressalta que:

A decisão (...) efetivamente não julgou bem a causa. Os réus criaram no espírito da autora a confiança de que o contrato iria se realizar, a ponto de ela recusar outros trabalhos e realizar despesas de compra de vestuário apropriado. A não-conclusão do contrato, tendo em vista o grau de expectativa criado na autora da ação, somente poderia ocorrer caso surgisse um motivo justo para a ruptura das negociações. [249]

Assim, sendo conhecido de antemão o tipo físico da autora, nenhuma razão havia para que os produtores procedessem desta forma. Vê-se, portanto, que "a improcedência da ação foi decidida ao arrepio dos princípios que regem a responsabilidade in contrahendo". [250]

Provavelmente influenciado pela experiência havida a partir do julgado anterior, no mesmo ano de 1959, questão envolvendo a responsabilidade pré-contratual chegou à apreciação do STF em acórdão da lavra do Min. Villas Boas, cuja ementa se vê a seguir:

CULPA IN CONTRAHENDO. CONCEITO. A verificação de responsabilidade dela derivada se faz pela soma dos prejuízos efetivos, diretamente emanados da sua ocorrência, excluídos os lucros cessantes e outras parcelas não compreendidas no denominado "interesse negativo." Recurso não conhecido, sem embargo do provimento do agravo para a subida dos autos. [251]

Nesta decisão vê-se, pela primeira vez, que a delimitação do quantum indenizatório refere-se apenas ao interesse negativo, de que já tratamos em momento anterior [252]. Apenas relembrando o que já dissemos, por meio dele deve-se entender não como o direito ao cumprimento do contrato, mas tão somente o de não ter o seu patrimônio diminuído por gastos inúteis quanto à um negócio que não irá se realizar.

Daí em diante houve diversos outros julgados envolvendo este assunto. Por razões de ordem prática, todavia, ficaremos adstritos apenas quanto àqueles de maior importância, como é o caso do que passamos a descrever na seqüência.

Mais de trinta anos após a apreciação inaugural pelo Supremo Tribunal Federal acerca da extensão do quantum indenizatório, os tribunais paranaenses também pronunciaram-se no mesmo sentido. O TJ deste Estado, no ano de 1993, decidiu nos seguintes termos:

CONTRATOS. NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES. ABANDONO INJUSTIFICADO DOS NEGÓCIOS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. RECURSO DESPROVIDO

. Indenizável em decorrência da culpa aquiliana as despesas de trabalho e material, ainda nas negociações preliminares, quando um dos contraentes criar no outro a expectativa de que o contrato seria celebrado. [253]

Como nos casos anteriores, admitiu-se também a responsabilização pela retirada arbitrária na fase das negociações, bem como o ressarcimento das despesas realizadas com vistas à conclusão do negócio. Aqui, todavia, vislumbra-se com maior evidência a questão referente à sua natureza jurídica, e a conclusão do Tribunal paranaense de que possui uma feição aquiliana, ou seja, extracontratual. Apenas rememorando, é a que se encontra consagrada pelo art. 186 [254] da lei civil, segundo o qual todos devem respeitar a esfera jurídica de outrem, cuidando para que esta não seja violada de forma culposa, ainda que se trate de prejuízo referente tão apenas quanto aos aspectos moral e psíquico do indivíduo. A exemplo do que já foi dito, [255] tal assertiva fica bem resumida pela expressão latina neminem laedere, ou, em vernáculo, o dever de "a ninguém lesar".

Três anos mais tarde, levou-se à apreciação pelo STJ uma outra controvérsia, muito freqüente nos dias de hoje, [256] da qual sobrevêm a seguinte indagação: o estabelecimento comercial é ou não responsável pelo veículo do cliente estacionado em local destinado para este fim no interior de suas dependências? Como lhe é próprio nestas ocasiões, o Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, oriundo do TJRS, decidiu, com evidente lucidez, no seguinte sentido:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ESTACIONAMENTO. FURTO DE VEÍCULO. DEPÓSITO INEXISTENTE. DEVER DE PROTEÇÃO. BOA-FÉ.

O cliente do estabelecimento comercial, que estaciona o seu veículo em lugar para isso destinado pela empresa, não celebra um contrato de depósito, mas a empresa que se beneficia do estacionamento tem o dever de proteção, derivado do princípio da boa-fé objetiva, respondendo por eventual dano. Súmula 130. [257] Ação de ressarcimento da seguradora julgada procedente. Recurso não conhecido. [258]

No aresto sobressai com maior evidência que nos demais até aqui colacionados, alguns deveres que exsurgem de uma conduta social típica, a qual, segundo construção operada pela doutrina alemã de 1940 [259], denomina-se "relação contratual de fato" [260]. Em hipóteses como esta, a vinculação que se estabelece tem por escopo "o cumprimento efectivo de uma operação econômica" [261]. Assim, embora não seja possível falar em uma declaração de vontade contratual válida, não há como negar que o contato social havido entre os sujeitos venha a ser reconhecido e tutelado pelo Direito.

Encaminhando-nos para a conclusão deste trabalho, merecem destaque duas decisões prolatadas pelo TJRS, a primeira delas com a seguinte ementa:

CONTRATO. TRATATIVAS. CULPA IN CONTRAHENDO. RESPONSABILIDADE CIVIL.

Responsabilidade da empresa alimentícia, industrializadora de tomates, que distribui sementes, no tempo do plantio, e então manifesta a intenção de adquirir o produto, mas depois resolve, por sua conveniência, não mais industrializá-lo naquele ano, assim causando prejuízo do agricultor, que sofre a frustração da expectativa da venda da safra, uma vez que o produto ficou sem possibilidade de colocação. Provimento, em parte, do apelo, para reduzir a indenização à metade da produção, pois uma parte da colheita foi absorvida por empresa congênere, às instância da ré. Voto vencido, julgando improcedente a ação. [262]

Sinteticamente, os fatos podem ser assim esboçados: a CICA, conhecida empresa do setor alimentício tinha como prática habitual distribuir sementes, na época do plantio, aos agricultores da região de Canguçu, localizada na parte sul do Estado do Rio Grande do Sul. A empresa, assim, na época oportuna, adquiria a produção obtida a partir daquelas sementes. Na safra de 87/88, porém, após a distribuição das mesmas e o respectivo plantio, a CICA se negara a comprar-lhes a produção, alegando excesso de mercadoria naquele ano. Tendo transcorrido um certo lapso de tempo durante a discussão, os produtores não tiveram mais como repassar a colheita para outros compradores, o que lhes acarretou evidente prejuízo. Felizmente, tal atitude foi veementemente repelida pelo órgão judicante.

Embora não houvesse nenhum instrumento formal capaz de demonstrar a promessa de que a compra da produção se concretizaria mais uma vez naquele ano, o TJRS entendeu tratar-se de atitude verdadeiramente arbitrária, uma vez que esta prática já se prolongava por vários anos. Sendo assim, foi possível afirmar que a empresa incorreu em responsabilidade pré-contratual. Some-se a isto o fato de que os agricultores, em sua evidente situação de hipossuficiência, encarnavam homens de pouco estudo, rudes por sua própria condição de pessoas do campo.

Outro não foi o entendimento em um segundo aresto da lavra do mesmo tribunal. Neste caso porém, a decisão considerou ser legítimo o rompimento das negociações, ao contrário do que se possa pensar. Eis a ementa do último julgado a que nos propomos a analisar:

RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL. CULPA IN CONTRAHENDO.

Alienação de quotas sociais. É possível o reconhecimento da responsabilidade pré-contratual, fundada na boa-fé, para a indenização das despesas feitas na preparação do negócio que não chegou a se perfectibilizar por desistência de uma das partes. No caso, porém, o desistente agiu justificadamente. Cessão da totalidade das ações por quem apenas detinha parte do capital. [263]

Em síntese os fatos que circundam o decisum passaram-se nos seguintes termos: após iniciar negociações com vistas à aquisição de um posto de gasolina e já tendo entabulado diversos aspectos referentes à essa operação, o pretenso adquirente desiste de prosseguir no negócio. A hipótese, porém, se presta perfeitamente a demonstrar que nem sempre uma ruptura no período das negociações enseja o dever de indenizar. Há sempre que atentar aos cânones da razoabilidade e das circunstâncias que norteiam o caso.

Isto porque, na hipótese, o suposto comprador veio a saber que o outro interessado não era, na verdade, o detentor de todo o capital social, embora se apresentasse como tal. Afastada, assim, qualquer possibilidade de responsabili-zação pela retirada imediata da fase de negociações, vez que estava presente circunstância que evidentemente justificava uma atitude neste sentido.

Embora em um dado momento da demanda o réu tenha alegado estar convicto de que demais proprietários não haveriam de se opor na realização do negócio, a interrupção das negociações pela outra parte mostrou-se legítima, uma vez que não havia, de fato, nenhuma prova concreta de que isto realmente iria acontecer.

Feitas estas considerações, alcançamos assim o ponto final de nosso estudo. Certo de que a questão está longe de envolver uma solução pacífica, nem por isso devemos descurar de analisá-la. Passa-se, a seguir, às principais conclusões alcançadas pelo presente trabalho.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Igor Mori

bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Curitiba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORI, Igor. A responsabilidade pré-contratual pela quebra dos deveres acessórios:: admissibilidade no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 868, 18 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7598. Acesso em: 17 mai. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos