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O STF, o modismo da má consciência jurídica e a tirania da vontade

04/09/2019 às 16:16
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Quando se faz uma análise mais contemporânea dos temas do direito, passa-se a encontrar fenômenos como o da pós-repressão, ou o das decisões deformadas por tendências mutantes, e o da tirania da vontade, negligenciando-se o uso dos critérios jurídicos.

Para bem entender como o fim se prende ao começo

O escritor austríaco Stefan Zweig deixou um registro importante sobre as noções de fim e de regresso ao começo, que envolvem dois outros importantes autores russos. Em 1883, mesmo ano do falecimento de Karl Marx, Ivan Turgueniev padecia de um mal incurável e, em seu leito de morte, escreveu para Leon Tolstoi seu último apelo: “Regresse à literatura! Ela é o seu verdadeiro campo de atividade. Grande poeta da terra russa, escute o meu pedido!”. (Fonte: Stefan Zweig, Obras Completas, “A Marcha do Tempo”, capítulo “Tolstoi – religioso e sociólogo”)

Zweig anotou que “Tolstoi não deu resposta imediata e, quando, enfim, resolveu responder, já era tarde demais.” De todo modo, o apelo não foi atendido. O autor de “Guerra e Paz”, então no auge da sua maturidade aos 55 anos, estava em ‘guerra’ consigo mesmo desde os anos 1870, quando enveredou por crenças místicas ligadas ao cristianismo primitivo, ao pacifismo (que indicou como caminho para Mahatma Gandhi, com que se correspondia) e à autenticidade que via no espírito camponês, inspirações estas que associou ao anarquismo e à defesa da propriedade coletiva da terra.

Tolstoi deixou sua literatura em segundo plano, dedicando-se a expor a doutrina eclética que adotou, amparada em prescrições do Evangelho, de Schopenhauer, de Proudhon e de um tal de Henry George, economista americano criador do georgismo, uma teoria hoje irrelevante sobre o imposto único sobre a exploração da terra. Com esse ecletismo excessivo, Tolstoi não encontrou a ‘paz’. Em 1901 foi excomungado da Igreja Ortodoxa Russa. Seu desprendimento dos bens materiais levou-o a conflitos familiares. Após sua morte em 1910, sua viúva teve de empreender ações judiciais para recuperar as propriedades doadas e os direitos autorais, o que só veio a ser reconhecido já perto da Revolução de 1917.

Lenin escreveu ensaios sobre Tolstoi, admitindo que ele introduziu o camponês na literatura russa, deu-lhe presença social e, embora não tenha reconhecido no proletariado o agente da transformação, fez o suficiente para estigmatizar a sociedade de classes e o grande infortúnio que era o sistema político na Rússia.

Zweig está de acordo: para ele, Tolstoi foi o grande agente moral da recusa ao modo de vida sob os czares, que associava uma aristocracia fútil e autoritária à exploração da massa de deserdados da terra, de tal modo que os bolcheviques se concentraram na ação política para depor uma ordem que, sob um sistema de valores, já estava condenada – e condenada a um impositivo fim.

Mesmo assim, talvez repercutindo o apelo de Turgueniev, Tolstoi ainda produziu algumas obras literárias, entre elas aquela que é considerada a novela-modelo universal, “A Morte de Ivan Ilitch”, que trata da última consciência de um juiz: ao se despedir da vida, diante de uma doença de progressão irremediável, ele vê seus colegas especularem sobre sua vaga no tribunal e seus familiares sobre os bens e a pensão que a viúva irá receber do Tesouro. De tal modo que o juiz, que tivera uma existência e uma atuação funcional terrivelmente medíocres, desperta para as ilusões dessa existência e, no seu leito de morte, iluminado pela consciência de seu fim, sente sincera pena dos seus circundantes, que continuam irremediavelmente presos a elas.

Então, em novembro de 1910, dias antes de iniciar oficialmente o rigoroso inverno russo, Tolstoi resolveu morrer. Aos 82 anos, fugiu de casa de madrugada, tomou um trem sem calefação na direção da Geórgia. Viajou durante um dia inteiro. Ao fim, na estação ferroviária da pequena localidade de Astapovo, expirou em consequência de uma pneumonia.

Há um relato intenso sobre os dias finais do grande russo no filme “A Última Estação”, dirigido por Michael Hoffman, com uma interpretação exuberante de Christopher Plummer, que, rodado em 2008, estreou no circuito comercial exatamente quando a morte do escritor completou cem anos, em 2010.

O destino de Tolstoi como ficcionista e como místico já foi muito estudado. É objeto de ensaios e trabalhos acadêmicos. Não sem motivo, pois é difícil entender como aquele que reúne o consenso de ser o maior escritor russo tomou esses caminhos, o do misticismo e o de Astapovo. Talvez nem mesmo o indiano que então advogava na África do Sul e que viu seu nome Mohandas ser depois substituído por Mahatma (Grande Alma), tendo assimilado de Tolstoi o espírito de resistência fundado exatamente na alma solidária, rebelde e pacífica, pudesse entender porque o velho conde fugiu de sua propriedade em Yasnaya Polyana, ao invés de ao menos tentar -  como Gandhi o fez exitosamente na Índia colonizada, embora acabasse tendo logo a vida ceifada em um atentado -, a Satyagraha, a revolução pela resistência pacífica.

Mas o idoso Liev Nikoláievitch Tolstoi estava cansado da literatura, da instrumentação de sua doutrina, da família e da própria Rússia irremediável. Talvez, como seu personagem Ivan Ilitch, tivesse sincera pena de seus circundantes. Talvez ainda soubesse que Satyagraha não é uma palavra mágica. Ela comporta muitas inspirações e exige a existência de condições externas para dar certo. Exatamente um século depois da morte de Tolstoi, em um país que ele não conheceu, uma “Operação Satyagraha”, que se destinava a extirpar judicialmente uma formidável rede de crimes econômicos praticados por operadores financeiros de colarinho branco, soçobrou nas mãos de juízes tão medíocres quais Ivan Ilitch e seus colegas, que a anularam como autoproteção das elites. Entre essas duas datas, a morte do conde russo em 1910 e a anulação do processo pelo Superior Tribunal de Justiça da Satyagraha brasileira em 2011, a velha Rússia experimentou todas as provações políticas que a espécie humana pode conceber, de tal modo que não serão novos ensaios ou estudos acadêmicos que irão esclarecer sobre as errâncias de Tolstoi, mas elas foram muito bem compreendidas aqui por Mário Quintana, com o lirismo que nos resta e nos enleva, colocando sob o seu singular sentimento poético uma análise digna de Freud:

“Poema da Gare de Astapovo”  

“O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos 
E foi morrer na gare de Astapovo! 
Com certeza sentou-se a um velho banco, 
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso 
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo 
Contra uma parede nua... 
Sentou-se ... e sorriu amargamente 
Pensando que 
Em toda a sua vida 
Apenas restava de seu a Glória, 
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas coloridas 
Nas mãos esclerosadas de um caduco! 
E então a Morte, 
Ao vê-lo tão sozinho àquela hora 
Na estação deserta, 
Julgou que ele estivesse ali a sua espera, 
Quando apenas sentara para descansar um pouco! 
A morte chegou na sua antiga locomotiva 
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...) 
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho, 
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu... 
Ele fugiu de casa... 
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade... 
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!” 

O mal estar no Direito como parte do descontentamento com a civilização

Em 1930, Sigmund Freud publicou um de seus textos mais ambiciosos e que propõe desdobramentos até hoje, pois – passados noventa anos  – a trama civilizatória só se tornou mais densa e, portanto, mais pesada. As conquistas obtidas desde então se sofisticaram de um modo que é mais difícil entende-las só pelo uso dos sentidos, pois também ocorreram guerras avassaladoras ou localizadas, umas disputando às outras o volume e a crueldade com suas vítimas, e o tema do descontentamento se tornou permanente, ainda que multiplicado em formas culturais, busca por identificações sexuais diferenciadas, reivindicação de status jurídico e de condição social singular, ou pela confissão mística e religiosa ou ainda de ‘militância’ com caráter impositivo, em  uma variedade que jamais existiu.

Mesmo os postulados mais sofisticados da ciência relacionados, por exemplo, com a mecânica quântica e seus princípios da complementaridade e da incerteza, a antimatéria, os buracos negros, o bóson de Higgs, a matéria escura ou os supercolisores de partículas, suscitam todos – sem qualquer comando dos que os investigam nos laboratórios ou na teoria – novos misticismos. E eles avançam especulando sobre a ‘teoria das cordas’, o ‘desenho perfeito’ e os ‘buracos de minhoca’.

O mal estar, portanto, tem de ser considerado como uma contingência, além de tudo, mutante. O livro de Freud foi chamado de “O Mal Estar na Cultura”, na publicação alemã. Na edição inglesa, recebeu o título de “A Civilização e Seus Descontentes”, de modo que é conhecido por ambas as denominações. No que interessa a esta abordagem, o autor diz que “a primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo.” Essa afirmativa contém uma suposição que se faz necessário registrar: se o homem construiu a ideia de justiça é porque conheceu, antes, a injustiça.

A outra suposição, Freud mesmo registra: “a liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização...”. É verdade que então essa liberdade não se apresentava como um valor e, assim, não podia ser reivindicada. De qualquer forma, a abordagem do pai da psicanálise mostra algumas das ilusões que consistem em dizer que o sentimento de justiça é inato e que o exercício da liberdade é obra da civilização, quando esta o reconheceu bem tardiamente. (Fonte: Sigmund Freud, Obras Completas, Volume XXI, “O Mal Estar na Civilização”).

Contra tais ilusões, Freud adverte que “não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo que sérios distúrbios decorrerão disso”. Em face do que ele acrescenta: “Sei apenas que (...) os juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões.”

Portanto, o pensamento freudiano sustenta que a construção civilizatória encerra, necessariamente, ilusões. Sem perceber isso, não se consegue entender o mal estar do ‘civilizado’. Quer ele reprima sua libido, quer a sublime, quer ainda a abandone diante de circunstâncias da vida ou seja privado da satisfação oriunda do princípio do prazer, quer – por fim – seja compensado por conquistas civilizatórias ou econômicas, a perda da ilusão será sempre uma fonte de descontentamento.

Talvez por isso, Hans Kelsen (um dos três checos com nacionalidade do império autro-húngaro que foram contemporâneos e escreveram em alemão suas obras de alcance universal, na primeira metade do Século XX, os outros foram o próprio Freud e Franz Kafka) haja titulado um de seus livros mais eruditos como “A Ilusão da Justiça”.

Ali são estudados alguns filósofos pré-socráticos e depois, principalmente, Platão. O sistema das ideias desse grande grego, que se projeta até hoje nos corações e mentes dos fabricantes de ilusões, está baseado na dualidade (bem e mal) e nos valores. Ele nega a elevação pelo instinto e não reconhece o inconsciente (Kelsen atribui isso às paixões de Platão e ao seu desejo percebido por ele como daimonium), conforme se vê nesta bela passagem em que expõe o ensinamento de Sócrates sobre o saber filosófico libertador: “É conhecido dos amantes da sabedoria que sua alma, antes que a filosofia a tomasse sob seus cuidados, encontrava-se totalmente acorrentada ao corpo, como que soldada a ele; era obrigada a contemplar as coisas através dele, como que através de um cárcere, e não por seus próprios meios, sendo, pois, compelida a vagar em meio às trevas da mais completa ignorância; somente a filosofia percebeu a terrível pressão exercida por esse encarceramento, qual seja a de que, pelo poder dos desejos, o próprio acorrentado torna-se, de certo modo, carcereiro de si mesmo.” (Fonte: Hans Kelsen, “A Ilusão da Justiça”)

O entendimento do ser, para Platão, é crescente, em direção ao bem, à ideia, ao valor, de modo que as percepções da verdade através da doxa (opinião) sempre serão “uma espécie de saber incompleto”, pois os “tipos ideais lhes têm precedência” e “o saber não é um fim em si”. Kelsen observa então que, no pensamento platônico, “tal é o ‘ser’ das ideias, o valor moral hipostasiado numa entidade transcendente, o ser metafísico do dever-ser, ou a ideia como norma”.

Ao abordar a famosa “Alegoria da Caverna” (que já havia sido explorada de um modo diferente por Empédocles), Platão reproduz o pensamento socrático a propósito do que seja a verdadeira justiça, e o faz segundo esta percepção de Kelsen: “Se a ordem social que se efetiva é uma ordem jurídica, sendo, enquanto tal, de algum modo justa, essa justiça só pode ser relativa – isto é, apenas uma sombra da justiça absoluta, que tem sede no mundo das ideias. Isso é o que, de fato, se deve concluir da alegoria da caverna, na qual Platão apresenta sua metafísica do direito. São as ‘sombras da justiça’ o que vê quem afasta o olhar da ideia para a realidade social, e são as ‘sombras da justiça’ aquilo pelo que se luta nos tribunais.”

A ‘Alegoria da Caverna’ resulta de um diálogo instigante entre Sócrates e seu discípulo Glauco que atravessa os tempos sob interpretações que se mostram surpreendentemente variadas. Kelsen nela enxerga a ocultação da justiça, quando o personagem está na caverna, e o seu desvelamento, quando ele consegue escalar a pequena abertura e encontrar a luz solar, porque considera mais a esfera pública da convivência forçada que ele abandona (aquela que tinha com outros prisioneiros) e a que passa a ter, autêntica, com as figuras reais, de quem a iluminação projetava as sombras na caverna.

Mas a lição de Sócrates também se destina a encontrar a sabedoria na vida pessoal, a partir das escolhas que são feitas. Tanto que há uma fecunda hesitação do personagem liberto quando se questiona sobre retornar à caverna para esclarecer aos demais. “Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale ‘viver como escravo de um lavrador’ e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?”

Porém, os cativos quereriam mesmo se libertar? Teriam o mesmo encantamento com a luz verdadeira? Ou prefeririam manter os laços com o mundo a que afinal já estavam acostumados, ainda que tivessem que matar o liberto, pois ele queria levá-los ao desconhecido? Tais são as indagações finais que Sócrates lança no ar ao encerrar o seu diálogo.

Estas questões de caráter ontológico foram deixadas de lado na interpretação de Kelsen, que focou mais na ideia da justiça relutante, que tanto quanto é percebida pode ser perdida de novo, que se guia pela luz e pela sombra e por isso guarda o sentido do ilusório. Mas não é exatamente assim na abordagem desse tema por Martin Heidegger, que realizou um seminário inteiro sob o título “Verdade e Liberdade. Uma interpretação da Alegoria da Caverna na Politeia de Platão”. Heidegger revela que o pensamento de Platão situava na filosofia o papel libertador e não na fugidia justiça, como pareceu a Kelsen, mas concorda com este no papel ilusório da libertação. Isto porque, mesmo com a percepção verdadeira das coisas sob a luz, acessada pelo liberto, “na presença de todo dia nós estamos entregues às coisas e nos comportamos na pretensão de que, para ver uma coisa, basta apenas abrir os olhos. E, ao fazê-lo, nada sabemos do fato de, em toda experiência de uma coisa, já de antemão termos de saber algo sobre a essência das coisas.” (Fonte: Martin Heidegger, “Ser e Verdade”).

Portanto, a ilusão dos sentidos se agrega a uma ilusão maior de que a ideia do justo ou da razão libertadora, do bem ou do valor, padece de uma perda da percepção de que “o homem é um ‘sendo’ cuja história apresenta e expõe o acontecimento da verdade”, nas palavras de Heidegger. E se há alguma verdade irredutível a respeito do acontecimento histórico da verdade é a de que se trata de algo conflituoso, que se estabelece ante resistência e seu reconhecimento cobra algum preço, pois se trata de uma nova imposição, que exige mudanças.

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Por isso, Freud escreveu na obra já citada: “Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles.” Pouco antes de “A Civilização e seus Descontentes”, Freud havia escrito “O Futuro de uma Ilusão”, onde propôs-se a fazer uma crítica psicanalítica do fenômeno religioso, que tem relação com os temas relacionados com o resgate e mesmo a redenção que são seguidamente atribuídos à justiça e ao saber. Não há, portanto, como separar novos padrões civilizatórios das ilusões que eles causam e a sofisticação dos processos de conhecimento não é bem o caminho exato para evitar o mal-estar na cultura.

Como se vê, a descoberta da verdade não desvela o contentamento. Quanto mais for elevada a ideia do platonismo, eleita como medida do bem, do justo e do valor, mais o  conhecimento aperfeiçoado das coisas exigirá a expansão em novos descobrimentos, tensionantes e contraditórios que sejam, de maneira que o liberto das sombras, impossibilitado de retornar – porque não pode mais se acostumar com elas ou porque será hostilizados por aqueles que nelas ainda vivem, conformados com o mundo que já conhecem -, será levado agora a descobrir o desconcertante e mais conflitos surgirão com os que resistem. Assim, não é surpreendente que Kelsen sustente que “são pelas sombras da justiça aquilo pelo que se luta nos tribunais”.

Tanto a busca do saber filosófico da verdade como a luta nos tribunais são conduzidas e esta é a cruz escatológica que leva ao embate do aprendizado e da prática emancipatória, com seus dados inescapáveis que dizem respeito às necessidades, às diferenças e à força impositiva que se revelam no trâmite histórico dessa aprendizagem e dessa emancipação, as quais são buscadas no processo civilizatório. Por isso, Freud acrescenta com crueza: “o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’. Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau.” (...) “O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. É por isso que, como fecho de seu argumento, Freud cita um de seus autores preferidos, o filósofo e poeta alemão Heinrich Heine, nesta sugestão que lhe pareceu jocosa mas melhor seria classificar como cínica: “Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos – mas não antes de terem sido enforcados.”

A ilusão de que haja uma suprema corte no Brasil ou quando a evolução ruma para o desastre

O Supremo Tribunal Federal é a corte civil mais antiga do país, criado quando a Relação do Rio de Janeiro foi transformada em Casa de Suplicação do Brasil, em 10/05/1808, por Dom João VI. Pouco antes, em 1º de abril do mesmo ano, havia sido instituído o Conselho Superior Militar, que hoje é o STM.

Mesmo desconsiderados os períodos das Relações de Salvador e do Rio de Janeiro, pouco decisivas para a formação de um judiciário nacional, pois estavam integradas ao sistema colonial português, o Supremo conta hoje com mais de duzentos e dez anos. Atravessou as eras do Reino Unido a Portugal, do Império, as várias fases da República, como diversas ditaduras, a escravidão, guerras externas, revoluções e revoltas armadas, tudo repaginado por oito Constituições (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988). Com uma certeza: a vigente não será a última.

Na passagem para o Século XXI, o Supremo guardava uma composição que apontava para o equilíbrio de tendências. Nele tinham assento ministros muito conservadores – e até politicamente reacionários, o que era compatível com o longo Regime Militar, que os nomeou - como Moreira Alves, Carlos Velloso, Néri da Silveira e Octávio Gallotti, este último primo do general Walter Pires, ministro do Exército na gestão João Figueiredo e verdadeiro fiador de seu governo, principalmente depois que o presidente da República desinteressou-se por seu mandato, nos últimos anos, especialmente após o atentado terrorista no RioCentro, em 30 de abril de 1981, cuja investigação foi abafada por uma monumental farsa conduzida pelo coronel Job Lorena de Santana, bem instrumentado pelo seu comandante militar para encobrir o episódio, o que deu causa ao afastamento do estrategista governamental Golbery do Couto e Silva, então Chefe da Casa Civil.

Também compunham o Supremo em 2000 os ministros Sepúlveda Pertence, nomeado já no período da redemocratização, e Sydney Sanches, o último indicado no Regime Militar, mas não por compromisso ideológico com aquele período e sim por ter sido presidente da AMB- Associação dos Magistrados do Brasil, além de ter decisivos relacionamentos com amigos do presidente Figueiredo que, já nessa época, encaminhava a transição para o regime democrático, acabando com o bipartidarismo e propondo a anistia. Sydney Sanches veio a ter depois uma atuação sóbria e marcadamente correta ao presidir o impeachment de Fernando Collor. Fato que não se repetiu com Ricardo Lewandowski, que transformou o impeachment de Dilma Rousseff em uma grande paródia bufa de uma decisão regular, negociando o resultado das votações de uma forma que comprometeu – para sempre – seu papel de magistrado, quando exatamente deveria ser mais saliente naquele caso por se tratar de um julgamento político. Por tal manobra a “presidenta” acabou tendo preservados seus direitos políticos.

Ainda que houvesse a oportunidade histórica para que o Supremo se transformasse para melhor, na verdade ele entrou muito mal no Século XXI e, durante as décadas transcorridas desde então, o que se viu foi um desastre. O STF deixou de ser uma força estabilizadora no Brasil, mas não porque tenha superado seu perfil conservador desde o restabelecimento da ordem democrática no país (com a eleição de Tancredo Neves, a Constituinte e o retorno do voto direto), e sim porque distorceu a expressão ‘ativismo judicial’, dando-lhe uma feição idiossincrática incompatível com um sistema de garantias jurídicas e impondo a vontade de maiorias instáveis, despreocupadas em manter uma orientação dos julgamentos justificada e justificável, como em dar seguimento a uma jurisprudência coerente.

Ao contrário do que seria de esperar, o STF seguiu para uma trajetória de longo curso e domínio de realidades novas já como hoje se apresenta: com um naufrágio à vista. A presença institucional do Supremo sofre questionamentos da sociedade civil pari passu com as contradições internas da Corte e com o personalismo dos ministros, pois estes confundem o ativismo judicial com uma espécie de performance pública-publicitária e reivindicam para si não o respeito geral pelas resoluções que adotam, pelos fundamentos respeitáveis ao encaminhar as graves questões que lhes são postas, mas pela sua presença no cenário nacional como celebridades. A isso se agrega a volúpia de mandar, a tirania da vontade.

Há pelo menos sete ministros do STF cujo comportamento público não pode ser tido, sob pena de recusar-se o que é óbvio e acintoso, como menos do que exibicionista. Eles dão declarações que estão fora do alcance de sua competência ou, incluindo-se nela, adiantam juízos que terão posteriormente que formalizar, sem que se considerem suspeitos ou impedidos. Falam também sobre processos submetidos ao julgamento de terceiros, emitindo ‘pareceres’ impróprios sobre o que cabe aos outros julgar. Opinam abertamente sobre questões que competem exclusivamente ao Executivo ou ao Legislativo, ou ainda interferem no modo operativo legal de agências e departamentos governamentais. Fazem justificações primárias, baseadas no senso comum, na mera opinião e não na verdade (quando, pelo menos desde os antigos gregos, há uma diferença substancial entre doxa e aletheia).

Esses mesmos ministros concedem liminares temerárias que se perpetuam por um tempo abusivo, interditam serviços, impedem que outros juízes pratiquem atos de jurisdição, cancelam os efeitos de julgamentos regulares, cassam outras medidas provisórias devidamente fundamentadas e relevantes, justificando todos esses atos com posições opiniáticas, submetidas a uma idiossincrasia estritamente pessoal. Também há ministros que incorrem em relações ambíguas e comprometedoras com agentes políticos, ou que favorecem a práticas corporativas, obtendo com isso uma espécie de imunidade, pois nenhum processo de impeachment contra eles tem andamento (apesar dos repetidos e bem fundamentados pedidos ao Senado), ou então parentes e amigos seus são nomeados pelo quinto para outros tribunais ou ainda são investidos em altos cargos decisórios em órgão públicos. Esses ministros são Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luiz Fux, Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio, que formam um grupo insólito e surrealista, pois entre eles há antagonistas figadais e até inimigos declarados, como foi o caso de Marco Aurélio, que manifestou inimizade em despacho ostensivo em relação a Gilmar Mendes. Este último, que é reconhecido empresário no ramo do ensino, contra disposição expressa da LOMAN,   já recomendou em sessão pública que Roberto Barroso fechasse seu escritório de advocacia. Ofensas parecidas se repetem e remontam ao tempo de atuação de Joaquim Barbosa, quando o Supremo sofreu sua grande cisão ao julgar o célebre processo do “Mensalão”, ocasião em que esse último ministro, sendo o relator, percebeu e denunciou publicamente que se encaminhava uma farsa e as pesadas condenações de agentes públicos comprovadamente corruptos seriam diluídas em medidas paliativas.

Não há nenhum país do mundo que tenha fundado as bases de um Direito estável e de um Judiciário probo, estabelecendo um dos vários modelos constitucionais existentes, que pudesse suportar – dentro de um ordenamento normativo – tamanha sorte de irregularidades. A situação dissolutiva se situa em tal ponto que professores de Direito Constitucional como Conrado Hübner Mendes (USP) e Joaquim Falcão (FGV-RJ) escrevem verdadeiros reptos tanto às decisões contraditórias ou mal fundamentadas do Supremo, como ao comportamento público nada ilibado de seus ministros.

Outros, como Oscar Vilhena Vieira (FGV-SP), preconizam soluções delirantes para tal quadro de desmazelo, como a assunção de um “Poder Moderador” pelo STF. Ora, o Poder Moderador existiu no Império, e apenas nele, em um tempo em que não havia o controle da constitucionalidade por parte do Poder Judiciário. Faz bastante tempo que a República se instalou com três Poderes. Ambições de que o Judiciário, ou o MP, ou a imprensa, ou a internet (de Jules Assange, de Edward Snowden, ou de The Intercept), ou os militares sejam o quarto ou o quinto Poder, não só são heresias em termos de ordenamento positivo como excrescências institucionais que têm tudo para não dar certo e nada – absolutamente nada – recomenda essa inovação que, aliás, deturpa completamente o sistema de freios e contrapesos que copiamos de outras democracias.

Oscar Vilhena Vieira, já no começo da “Operação Lava-Jato”, preconizava o Poder Moderador do Supremo para “controlá-la”. Deu no que deu: distorção, intervenção, abuso, “inquérito” secreto no STF gerido sem forma legal pelo ministro Alexandre de Moraes, declarações promovendo o descrédito público de autoridades judiciais e do MP, apesar dos êxitos da referida Operação. Tudo promovido e repetido ad nauseam no âmbito do Supremo. E que Poder Moderador seria esse, não previsto no sistema legal republicano e ainda a ser exercido por um coletivo judicial como o STF, que hoje  é um órgão completamente dilacerado internamente?

A desmoralização do decanato

No mesmo período já considerado do Século XXI, o Supremo contou com três decanos: o primeiro foi Moreira Alves, cujo longo período de exercício se estendeu de 1975 a 2003, sendo ele o ministro mais antigo por um tempo superior a dez anos. O segundo foi o ministro Sepúlveda Pertence, cujo exercício foi 1989 a 2007, sendo decano depois da aposentadoria de Moreira Alves, por cerca de quatro anos. O terceiro é o ministro Celso de Mello, cuja investidura recua até 1989 e se estende aos dias de hoje, sendo ele o decano a partir da aposentadoria de Sepúlveda Pertence, novamente há mais de dez anos.

Durante seu longo decanato, Moreira Alves ficou reconhecido pelo seu papel-condutor dos julgamentos, com intervenções pontuais nos votos dos outros ministros, fato que é admitido por ele mesmo, assim como a alegação do ministro Xavier de Albuquerque de que contraiu uma úlcera por esse motivo, levando-o a pedir a aposentadoria em virtude da tensão ao proferir seu voto sob o escrutínio do colega mais velho (Fonte: ConJur, 05/09/2012, entrevista com Moreira Alves sob o título “Julgamentos do STF eram mais técnicos na minha época”).

Moreira Alves sempre teve reconhecimento como um mestre de Direito, tanto quanto o de um jurista extremamente conservador. Seu domínio nos campos do Direito Romano e Direito Civil, principalmente, embasou uma atuação marcante, apoiada em conhecimentos técnicos, mas que ao mesmo tempo tinha o ‘destino’ de assegurar uma ordem de exceção que provinha do regime político em vigor até 1985. Tanto foi assim que, ao instalar a Constituinte em 1987, Moreira Alves proferiu seu discurso de abertura no Congresso Nacional cheio de recomendações, expressas ou veladas, que foram muito mal recebidas, já que o país se abria de um estado de exceção para uma democracia (ainda que essa tenha afinal se mostrado mais desejada do que obtida, pois até hoje ela se equilibra em bases instáveis, cheia de distorcidas garantias corporativas, redutos autoritários, privilégios de elites e disfuncionalidades na administração pública).

Desse decano que conduziu o STF com o espírito de um “rector”, a Corte passou a ter um decano do contraponto, que foi Sepúlveda Pertence. Ele restaurou o princípio da independência do voto com o incentivo ao questionamento do modo conservador – isto é, formal, lógico, ordenador e consentâneo com a tradição do tribunal – em favor do saber heurístico e de uma percepção nova dos fenômenos jurídicos que se haviam precipitados desde a Constituição de 1988. Ainda assim, Sepúlveda Pertence sempre agiu para ratificar a Lei da Anistia, que preservou aqueles que cometeram crimes em nome do Estado, isso porque predominou a interpretação do texto daquela lei sobre as disposições constitucionais sobre imprescritibilidade e aquelas dos tratados internacionais celebrados pelo Brasil.

Possivelmente essa contradição do decano Sepúlveda Pertence se justifique no fato de que ele prestou assessoria ao Congresso durante a tramitação do projeto de anistia e, assim, achava-se na obrigação moral de convalidá-lo. Mas nada, absolutamente nada, justifica que assassinos e torturadores, devidamente identificados e com provas cabais contra eles (ou até mesmo confissões, algumas despudoradas), ficassem livres e sem julgamento, tanto mais a pretexto de um motivo menor, subjetivo e “moral”, aqui conjecturado. Isto ficou mais saliente quando os cofres públicos passaram a pagar indenizações e pensões às vítimas dos abusos, cujos autores foram supostamente anistiados. Do ponto de vista histórico, o Brasil afastou-se de outros países do Cone Sul que tiveram ditaduras sanguinárias parecidas e as puniram – Argentina, Chile e Uruguai.

A partir de 2007, e até hoje, o decano do STF é Celso de Mello. Ministro reconhecidamente dedicado, probo e também erudito, ele deixou escapar das mãos o papel que é reconhecido ao juiz mais antigo de uma corte, pela experiência, pela concentração dos temas em julgamento, pela identificação pronta das repetições e das situações inéditas, pelo rumo das decisões, pela percepção do dia seguinte (ou seja, pelo reflexo das decisões na vida institucional do país) e pelas implicações várias do julgamento que é feito na consciência jurídica das pessoas do povo. Tudo isso foi por terra durante o longo decanato de Celso de Mello, isto é, aquilo que os pedantes chamam de “princípio da colegialidade” foi despedaçado num ambiente de discórdia, pessoal e técnica, de sucessivos mal-entendidos, de dispersão sistemática, de idiossincrasias e dos – outra expressão que os pedantes cultivaram sempre – “acórdãos escoteiros”. A explicação para tamanha balbúrdia obviamente está na composição da Corte – e nisso o decano não tinha como intervir -, mas também está no culto à palavra, no delírio verbal, na ênfase ao acessório, na retórica e mesmo na prosódia dos votos lidos com supina entonação, de modo que Celso de Mello cultuou, e continua a cultuar, a ‘catedral de papel’, os sublinhados, os itálicos e os negritos que povoam sua redação, e tal é esse modo que, caso seu assunto fosse Filosofia, desapareceria por completo qualquer percepção que pudesse ser sentida na palavra ‘significado’. E assim,  cultuando uma nova escolástica, nosso decano atual encerrará seus dias.

Um exemplo recente da nenhuma influência do ministro mais antigo se encontra no Inquérito 4701, aberto no âmbito do STF pela Portaria 69/2019, no dia 14/03/2019, pelo presidente do tribunal, e tendo o ministro Alexandre de Moraes como relator designado. O inquérito não tem objeto determinado, nem enquadramento na lei; prescinde da atuação do Ministério Público e tramita em segredo de justiça. Está amparado unicamente no Regimento Interno, cuja redação não acoberta a amplitude e a finalidade da iniciativa tomada (art. 43 RI-STF). Ainda no mês de março, o relator impôs censura à revista eletrônica Crusoé, por noticiar fatos tornados públicos pelo relator da Operação Lava-Jato, ministro Édson Fachin, contidos na colaboração premiada de Marcelo Odebrecht. Uma análise bem completa das irregularidades do chamado “inquérito das fake news” se encontra em uma entrevista do ex-procurador-geral da República Roberto Rangel, concedida à Agência BBC (Fonte: BBC/Brasil de 22/04/2019, “Inquérito de Toffoli é ‘exercício arbitrário de poder’, diz ex-procurador-geral República”). Pelo menos três ex-ministros do Supremo, independente da orientação funcional que tiveram e quebrando o hábito de recolhimento (Sydney Sanches, Carlos Ayres Britto e Carlos Velloso) já se manifestaram de forma candente contra o inquérito aberto por Toffoli.

Em abril passado o decano Celso de Mello emitiu uma nota à imprensa condenando a prática da censura, ainda quando determinada pelo Poder Judiciário. (Fonte: Agência Brasil – EBC, “Censura é ilegítima e autocrática, diz Celso e Mello. O decano do STF divulgou nota à imprensa”, 18/04/2019). Preferiu, portanto, o caminho da proclamação. Não obstante, se ele buscasse uma providência na esfera de sua influência, o que seria sem dúvida bem legítimo, postularia para que o presidente da corte colocasse imediatamente em julgamento duas ações, já liberadas por Édson Fachin, que visam a anular o ato de Toffoli. Ou seja, o decano deveria atuar no âmbito interno do STF, exercendo sua influência, para exigir a regularidade dos processos que tramitam na Corte, tanto na sua instrução como no julgamento, antes do que fazer declarações à imprensa. Estas afinal se tornam anódinas pois até o escândalo ente nós é um acontecimento de rotina e a proclamação cai no vazio pois, afora o strepitus fori, simplesmente não é eficaz.

Eis como e porque o decanato no Supremo tornou-se algo insignificativo. E essa tendência perdurará pois, por um breve tempo, o próximo decano será Marco Aurélio, o ministro que se salientou pelo voto vencido mas que nunca conseguiu estabelecer uma tendência nova no Tribunal, apenas o dividiu mais, suscitando a inveja ao seu ‘estrelismo’, ao contrário do que aconteceu com o notável juiz americano Oliver Holmes que, antes de tornar-se presidente da Suprema Corte, quando era associate justice, ficou conhecido como “o grande dissidente”, mas que afinal reverteu a tendência conservadora de seu colegiado e legitimou o “New Deal”.

A destruição da jurisprudência

Se o decanato já está desmoralizado no Supremo, a jurisprudência veio sendo sistematicamente destruída. Focando unicamente as súmulas, o histórico é este: elas foram estabelecidas em 12/1963 por sugestão do ministro Victor Nunes Leal, que já vinha monitorando as posições de seus colegas através de fichas manuais e percebeu a frequência de votos incoerentes, para constrangimento dos mais volúveis. Entre aquela data e 10/1984 foram editadas 621 súmulas. Depois disso, o Supremo ficou dezenove anos sem nada sumular, pois a Súmula 622 está datada de 10/2003. Entretanto, esse período histórico foi muito importante, pois nele surgiram a lei da anistia, a nova Constituição, a reafirmação pela escolha plebiscitária do sistema republicano presidencialista, o retorno das eleições gerais e diretas e o fim da censura à imprensa como o do cadastro de antecedentes políticos dos cidadãos. Enfim, foi uma época de grandes transformações, as quais parecem ter coincidido com a retração do Supremo que, com excessiva cautela, tudo indica que não se considerou apto para entendê-la. No período imediatamente seguinte, ocorreu exatamente o inverso e, entre 10/2003 e 12/2003 o STF publicou as últimas súmulas, de 622 a 736, ou seja, mais de cem em dois meses.

Logo se vê que esses impulsos não podem ser chamados de evolução jurisprudencial, pois lhes falta a construção paulatina e a consonância com as transformações históricas, que permitam estabelecer um ritmo de contemporaneidade com os acontecimentos mais marcantes. Não fora isso e o conjunto das súmulas esconde um entulho de enunciados que estão superados pela renovação legislativa ou não foram recebidos pela nova Constituição. Os enunciados então passaram a ser marcados, por iniciativa da burocracia judiciária, como ‘cancelado’ ou ‘modificado’, mas não houve um trabalho sistemático de renovação e de descarte do acervo sumulado.

A partir de 05/2007 vieram as súmulas vinculantes, que já somaram 56 em 06/2016. Elas se destinavam a criar um controle concentrado da jurisprudência, impedindo a prevalência de entendimentos dissonantes, produzidos em outros juízos ou tribunais, até que fossem julgados os recursos finais, perante o próprio Supremo. O modelo das súmulas vinculantes foi exatamente o mesmo dos antigos prejulgados estabelecidos na CLT para o processo trabalhista (art. 902 da redação de 1943), que – ironicamente – foram declarados inconstitucionais pelo Supremo ... e acabaram revogados pela Lei 7033/1982.

As súmulas vinculantes não trouxeram nenhum aperfeiçoamento que lhes seja inquestionavelmente reconhecido. Duas delas, por exemplo, as de números 11 e 13, têm redações confusas a respeito do uso legal das algemas e da vedação ao nepotismo na administração pública. Elas são circunstanciais demais. A das algemas, redigida pelo ministro Marco Aurélio, que é tenaz no uso da frase em sentido inverso e faz mesmo seguidas construções agramaticais demonstrando seu peculiar gosto, chega a mencionar a necessidade de ordem escrita, quando elenca casos (resistência, fuga, agressão) que são dinâmicos e, a mais das vezes, imprevisíveis.

Outras digressões foram feitas, como a suposição de que um réu, apresentando-se algemado em julgamento, estabelece uma presunção “visual” de culpa, especialmente entre jurados. Existe avaliação técnica confiável (psicológica e psiquiátrica) disso? Pouco importa. Para quem pensa com base no senso comum, dos provérbios populares, a presunção basta. Os debates entre os ministros para estabelecer as súmulas vinculantes estão cheios de presunções iguais, estabelecidas no mesmo nível das crônicas do quotidiano. Tão válidas como enxergar a descoberta da verdade nos mais prosaicos adágios rústicos. Nada de método científico. Nada de rigor enunciativo na formulação do problema que se quer resolver. Apenas e tão somente digressões elucubrativas.

Atualmente, havendo a intenção já manifestada do presidente da República de nomear seu filho como embaixador em Washington, não sendo ele diplomata, a Súmula Vinculante 13 está sendo intensamente comentada, havendo pareceres nela baseados contra e a favor da nomeação. Isto quer dizer, simplesmente, que a confusa ‘ordenação’ feita pelo Supremo não resolveu nada. Se o nome vier a ser aprovado pelo Senado, novo “round” da disputa jurídica será travado no STF e interpretações discordantes aparecerão: a súmula será aplicada ou “afastada”? Ministros que votaram para aprová-la reafirmarão seu texto? Novas circunstâncias serão examinadas? Como diria Fernando Pessoa, essas são “Malhas que o Império tece!”.

No mesmo espírito da Súmula Vinculante 13, o Supremo poderia ter estabelecido que os mesmos familiares ali mencionados, que não podem beneficiar-se do nepotismo, também ficariam impedido de advogar perante os tribunais em que seus parentes têm assento. Afinal, um filho advogando no tribunal composto por seu pai conduz à prática da advocacia administrativa, da exploração de prestígio e o tráfico de influência. E, no entanto, a ministra Nancy Andrigui arrolou, quando era Corregedora do CNJ, dez ministros do STJ que têm filhos advogando perante aquela Corte, e também há filhos de outros ministros e ex-ministros do STF que ali advogam. Mas, como o Judiciário não se preocupa em estabelecer uma minima moralia, naturalmente tal súmula nunca foi feita.

A grande estratégia concebida pelo ministro Victor Nunes Leal é inegável que malogrou. O Supremo Tribunal Federal não tem uma jurisprudência mais exata, mais rigorosa, mais consequente do que qualquer outra corte do país. O Tribunal, pelo pequeno histórico que a edição das suas súmulas mostra, nunca se dedicou com afinco a estabelecer precedentes estáveis. Eles seriam sobremodo necessários, tendo em vista que o Brasil é regido pela segunda mais extensa Constituição do mundo, com 250 artigos acrescidos de outros 114 de disposições provisórias (sendo que a maioria destas hoje tem eficácia plena e permanente), e sofreu 101 emendas entre 03/1992 e 02/2019.

Só a Constituição da Índia é mais extensa, com 448 artigos e 103 emendas, mas vigora desde 1950. Boa parte do texto indiano, extremamente complexo tendo em vista a história e a diversidade do país, trata da recomposição interna do território, a partir de divisões administrativas tradicionais, desde os governos anteriores à colonização inglesa. No Ocidente, nossa referência mais marcante é a da Constituição dos EUA, com 7 artigos e  que vigora desde 1787, tendo recebido 27 emendas, a última em 1992. Os sistemas, no entanto, são bem diferentes, uma vez que o direito americano tem forte inspiração na ‘common law’, que é mesmo determinante, de modo que até a forma de redação dos artigos é bastante diversa da nossa, uma vez que há seções que tanto tratam do mesmo assunto como outras que abordam temas diferentes. O texto é menos enunciativo-delimitativo que o dos textos legais brasileiros, informados que estes são pelas Ordenações dos reinos português e espanhol. Por isso, certa vez, Afonso Arinos de Melo Franco foi feliz ao declarar algo como: ‘a Constituição americana foi feita com sete artigos e pelos mais de trezentos volumes de jurisprudência da Suprema Corte’. E, de fato, vigora nos EUA o precedente baseado nos ‘stare decisis’, assim nomeados com base na expressão latina ‘stare decisis et non quieta movere’ (respeitar o decidido e não movimentar o que ficou assentado).

O Brasil - que não tem a complexidade histórica e cultura da Índia, nem necessita prender-se à diversidade regional, étnica, religiosa, linguística e de costumes ou afinidades com outros povos, tal como ocorre naquele país, e que, igualmente, não enfrentou, como os EUA, uma longa e penosa guerra de independência associada com uma revolução republicana - o que direcionou os chamados “pais fundadores” para obter a síntese legislada do que contribuía para unir as antigas Treze Colônias, abrindo o texto à interpretação futura sobre as muitas implicações que ele já tinha ou viria a ter no curso da História -, o Brasil poderia salvar sua ordem constitucional, torná-la mais estável, construir precedentes, obter a aceitação consensual de regras políticas gerais pela sua racionalidade ínsita, mas pouco ou mesmo nada fez nesse caminho. Parcela importante do fracasso cabe aos tribunais e, em especial, ao Supremo, de modo que – se é verdade que ele se considera o guardião da Constituição – é preciso indagar se não é também verdade que o STF inviabiliza e destrói suas regras, pois chega a editar súmulas que são inviáveis de cumprir ou de outras que ele mesmo “afasta” e não cumpre, tornando-se, antes que garantidor da Carta, o seu coveiro.

Desfecho

Este texto tratou de caminhos diferentes, que tiveram inspiração em um grande homem e glorioso escritor, os quais foram concluídos em situações completamente diferentes, na gare russa de Astapovo e na Satyagraha indiana. O presente escrito também tratou de grandes e pequenas ilusões, de que a emancipação humana se realiza por um processo de descoberta, em que o abandono das sombras da mera impressão representa afinal a conquista de uma visão clara das coisas verdadeiras, o que leva ao engenho e à construção dessa imensa trama a que chamamos civilização.

Mas as coisas verdadeiras também têm aparências que são percebidas de modo diverso e precisam ser desveladas, enquanto as malhas da civilização igualmente trazem o descontentamento e desfazem ilusões, tanto mais quando estas foram edificadas com o sacrifício do princípio do prazer.

As sociedades, assim como avançam, dão guinadas para trás e arrastam aqueles que mais se iludiram, ou seja, os que mais acreditaram no processo civilizatório como valor e como bem superior. Então parece que voltam as escolhas daquele que encarnou a grande alma russa, o conde anarquista e místico Tolstoi:  aceitar o inexorável fim, já que tudo termina, e despedir-se do mundo conhecido em alguma pequena estação ferroviária como a de Astapovo, que todos nós carregamos no espírito, já que cada um terá sido então deserdado de todas as promessas de contentamento com a civilização; ou perdoar sinceramente compadecido os circundantes que observam nossa saída de cena, já  que eles ainda estão presos às ilusões de uma vida supostamente respeitável, como aconteceu com o personagem Ivan Ilitch, diante da grande lucidez que a agonia lhe trouxe; ou, por último, aceitar que o desfecho venha como veio para o Mahatma, mas não sem antes lutar até o fim e resistir, resistir pela Satyagraha ... tentando tirar da caverna todos aqueles que não puderam se libertar sozinhos e continuam orientados só pela realidade deformada das sombras.

A resposta talvez tenha sido dada por um jovem de aparência imberbe, de 27 anos, que subiu ao cadafalso junto com Maximilien de Robespierre no dia 10 Termidor (28 de julho), quando a república francesa tinha apenas dois anos, em 1794. Cognominado “O Arcanjo da Revolução”, Louis Antoine Léon de Saint-Just deixou o registro de uma daquelas frases irretocáveis cujo teor abissal imortaliza: “O pão é o Direito do povo.” Esta e muitas outras proclamações da Revolução Francesa já foram absorvidas e não mais se acham carregadas de um suposto radicalismo irruptivo que, na época, as tornava caudatárias do período chamado de “Terror”. Atualmente é perfeitamente aceitável e mesmo desejado que “o pão”, isto é, a condição social de sobrevivência digna, seja considerado um direito fundamental e primário (fonte difusora de outros) e, assim, garantido.

Ocorre que a resposta de Saint-Just tem outras implicações. Vivemos hoje no Brasil, especialmente por obra do STF e de seus ministros da composição atual, depois que a democracia foi restaurada a duras penas e ainda muito imperfeitamente, uma espécie de “tirania da vontade” que sustenta o modismo do mal estar na civilização e, portanto, o descontentamento com ela. E não há como afastar esse modismo, que afeta profundamente as noções de justiça e de direito que a sociedade tenta compreender e nas quais depositou tanto o seu desejo. Contudo, essa demanda ganhou a mesma dimensão alegórica de um impasse socrático: sempre haverá a tentação de não voltar à caverna, de não libertar os outros cativos, pois eles poderão revoltar-se por não quererem sair do mundo das sombras, o único que conhecem e com o qual estão acostumados. A tentação nos conduziria então a inverter os termos da frase de Saint-Just, levando-nos a acreditar que “O Direito é o pão do povo”.

Seria a nossa última e mais irremediável ilusão. E dela simplesmente não haveria mais volta, pois o idealismo teria completado sua obra. Nosso destino então também nos levaria à gare de Astapovo.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. O STF, o modismo da má consciência jurídica e a tirania da vontade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5908, 4 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/76256. Acesso em: 17 abr. 2024.

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