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Cidadania e direitos sociais

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27/11/2005 às 00:00
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É mister, antes de se iniciar qualquer discussão sobre a natureza da cidadania no Brasil, ou como ela se relaciona com grandes temas – como escravidão, direitos civis, políticos ou sociais – discutir a natureza da sociedade brasileira.

Sumário: 1. Brava gente brasileira 2. A cidadania social no Brasil 3. Considerações Finais 4. Bibliografia Consultada.

Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar de forma breve a história dos direitos sociais de cidadania no Brasil. Inicia tecendo algumas considerações sobre a natureza da sociedade brasileira, e conclui abordando a temática da "estadania" a partir do referencial teórico de T. H. Marshall, José Murilo de Carvalho e Pedro Demo.

Palavras chave: Cidadania, Gerações dos Direitos, História do Direito, Direitos Sociais.


1.Brava gente brasileira

            É mister, antes de se iniciar qualquer discussão sobre a natureza da cidadania no Brasil, ou como ela se relaciona com grandes temas – como escravidão, direitos civis, políticos ou sociais – discutir a natureza da sociedade brasileira.

            Do ponto de vista filosófico, discussões sobre a natureza das coisas sempre são absolutamente complexas e é natural que os discursos que abordam essa temática caiam em delírios metafísicos que pouco ou nada explicam as realidades que se pretendiam ser estudadas. Nesse sentido, este trabalho se limita a apresentar de forma geral as principais discussões sobre a natureza da formação social brasileira, principalmente, as discussões mais atuais sobre esse tema.

            Esse tema foi recentemente retomado por Richard Morse na obra O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas, são distinguidas duas formas possíveis de associação: a societas e a universitas, que seriam orientadas respectivamente pelo holismo e pelo contratualismo. O holismo acredita que a ordem coletiva se sobrepõe aos interesses individuais, desvalorando, porquanto, a competição e o conflito de interesses; o contratualismo, principalmente em sua versão rousseauniana, que influenciou de forma geral as democracias modernas, operaria de forma inversa, cada indivíduo particular, legitimaria a ordem social, a ordem coletiva não se sobrepõe aos interesses individuais, mas é o resultado de sua soma; o contrato social sobre o qual se funda o social pode ser quebrado se o governo for notoriamente contra os interesses da coletividade que o legitima, o que não ocorre no holismo.

            Para Morse, o mundo ibérico transplantado para as Américas portuguesa e espanhola teria sido incapaz de incorporar os fundamentos da razão moderna, das revoluções científicas e das rupturas religiosas; de forma diversa, no entanto, teria acontecido na Grã-Bretanha e, conseqüentemente, nos Estados Unidos da América, o que de alguma maneira justificaria o descompasso existente entre os dois mundos.

            Segundo Morse, no mundo ibérico, fé e razão

            os dois termos não eram opostos nem coincidentes: complementavam-se um ao outro. [...] a razão humana era um instrumento adequado para a busca da verdade no mundo acessível fora a ela, da mesma forma que a consciência era uma fonte adequada de decisões morais; mas assim como a razão era ilimitada, também a consciência era falível. Por isso, o tomismo ofereceria pouco incentivo a reformulações novas do pensamento filosófico que pudessem tomar como única base a razão humana, a consciência privada, a demonstração experimental ou, uma aventura posterior, o pragmatismo da tentativa-e-erro. (p. 42-43)

            A versão política desse holismo estrutural seria a concepção de uma sociedade rigidamente hierarquizada, que tinha como oposição velada, segundo José Murilo de Carvalho (2000: 149), a visão do Estado como puro poder ao modo do maquiavelismo, não existiria aqui espaço para a discussão da liberdade. Na anglo-américa, a tensão se dava entre liberdade e ordem, que permanecem convivendo de maneira tensa na versão liberal da democracia.

            Ainda na esteira de José Murilo de Carvalho,

            Curiosamente, vários pensadores brasileiros da época [segunda metade do século XIX e primeira do XX] já tinham abordado o tema das diferenças entre cultura anglo-saxônica e a cultura ibérica em termos que muito se aproximam das abordagens modernas, inclusive a de Morse. Alberto Sales dizia, por exemplo, que o brasileiro era muito sociável, mas pouco solidário. Sua sociabilidade e extroversão davam-se nas relações pessoais e nos pequenos grupos. Faltava-lhe o individualismo dos anglo-saxões, responsável pela capacidade de associação desses povos. Para ele, a consciência da individualidade, dos interesses individuais, que constituía a base da capacidade associativa. Pouco depois, Sílvio Romero usaria um autor francês, Edmond Demolins, para retomar o tema em linha semelhante. Empregando expressão de Demolins, ele diria que o povo brasileiro era de formação comunária, em oposição aos povos anglo-saxões, que eram de formação individualista. No Brasil (e nas culturas ibéricas em geral), predominava a família, o clã, o grupo de trabalho, ou mesmo o Estado. Em termos coletivos, o resultado era a falta de organização, de solidariedade mais ampla, de consciência coletiva. No domínio específico da política, a conseqüência era a orientação que alimentaria para o emprego público, hoje chamada de fisiologismo. Em contraste, o individualismo levava à iniciativa privada, ao espírito associativo, à atividade produtiva, à política de participação. (p. 149-150)

            Outra discussão interessante a respeito da natureza da sociedade brasileira foi suscitada recentemente (entre dezembro de 1999 e janeiro de 2000) no caderno Mais! do jornal Folha de São Paulo, entre Contardo Calligaris e João Cezar de Castro Rocha.

            Calligaris, no ensaio intitulado "Do homem cordial, ao homem vulgar", denunciava a pseudo-cordialidade do brasileiro que seria responsável pelo mascaramento da divisão inconciliável entre as classes sociais brasileiras. A amabilidade no tratamento caracterizada pelo emprego de palavras como "amigão", "irmão", ou ainda, no uso de expressões do tipo: "amigão, cuida do carro pra gente?", etc... criaria relações de dependência, e manteria intocáveis as relações sociais profundamente desiguais que são geradoras da atual configuração social brasileira. Essa pseudo-cordialidade ainda é duplamente vulgar por: "[...] procurar os prazeres da ostentação sem abolir as diferenças qualitativas do mundo cordial, nossas elites exaltam a vulgaridade moderna".

            João Cezar de Castro Rocha inicia seu texto pela reconstrução das origens do termo "cordial", e por fim da própria cordialidade que "[deveria] ser compreendida como uma característica essencialmente brasileira, mas antes como um traço estrutural de sociedades cujo espaço público enfrenta dificuldades para afirmar sua autonomia em relação à esfera privada", e ainda,

            [...] cumpre identificar a contradição do ensaio de Calligaris: ele se deixou enfeitiçar pela "ilusória unidade" que criticara. Não se trata da unidade que as elites buscam impor à nação, mas da própria idéia de nacionalidade, vista como substância que assegura a continuidade do homem cordial. Isso representa uma perda, pois poderíamos radicalizar sua crítica e pensar numa história cultural que reconhecesse o caráter ambíguo da formação do Brasil precisamente devido à "divisão social inconciliável". Por que não imaginar a escrita da história da cultura brasileira com base nessa hipótese? Carlos Drummond de Andrade talvez tenha intuído esse projeto ao escrever os versos:

            "O Brasil não nos quer! Está farto de nós!/ Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil./ Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?".

            A idéia de João Cezar é de que o argumento de Calligaris supõe uma continuidade não problemática, fundada na idéia de "brasilidade". O problema é que a própria noção de brasilidade carece de realidade. É algo suficiente movediço para absorver qualquer esforço no sentido de defini-lo enquanto conceito, ou fixá-lo enquanto natureza da sociedade brasileira.

            A angustia de Carlos Drummond explicita no excerto: "Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?", é esclarecedora, acaso existe algo que uniria o povo brasileiro?, existiria nação brasileira? Perguntas, nesse sentido, ainda permanecem sem respostas, dada a complexidade da organização social e as multifaces disso que, normalmente, se chama sociedade brasileira.

            Ainda são necessárias algumas ponderações: primeiro sobre um texto que da década de 1970 de Roberto Schwartz e sobre uma obra de Marilena Chauí a qual trata do mito fundador da idéia de Brasil.

            Em As idéias fora do lugar, Schwartz cuida da noção de Sérgio Buarque de que somos os brasileiros "desterrados em nossa terra", porque transplantamos nossas formas de vida e nossa cosmovisão de países distantes. A incompatibilidade oriunda do confronto de dois planos de imanência diversos (o que deu origem às idéias dominantes e o que efetivamente se impunha) poderia ser percebida tanto no plano das convicções quanto no plano prático. A escravidão, para Schwartz, indicaria por sua mera presença a impropriedade das idéias liberais, de tal sorte que o favor se constituía a mediação quase universal, ou o termo aglutinador da própria brasilidade. E conclui que, ao longo de sua reprodução social, o Brasil põe e repõe sempre, em sentido impróprio, as idéias européias.

            Nesse sentido, a própria discussão sobre cidadania, se os argumentos de Schwartz forem levados às últimas conseqüências, é infundada, justamente por ser ela uma construção européia, tipicamente burguesa e oitocentista.

            Marilena Chauí em "Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária" defende a tese de que o Brasil já existia muito antes do Descobrimento, e que seria uma criação dos conquistadores europeus e teria sua narrativa de origem com raízes bem claras no discurso religioso e em concepções milenaristas. Esse mito, em sentido antropológico e psicanalítico, não pararia de se repetir e de esconder a violência e a falsa imagem do "Brasil como comunidade una e indivisa, ordeira e pacífica, rumando para seu futuro certo, pois escolhido por Deus".

            O certo é que, independentemente da postura que se assuma na definição da natureza da sociedade brasileira, os teóricos de um modo geral têm constatado múltiplos planos do real que se sobrepõe, interpenetram-se e estão em constante tensão, de modo que se formam pares reflexos de conceitos aglutinadores: cordialidade - vulgaridade, liberalismo - escravidão, mito fundador - violência, etc.

            Destarte, não seria possível falar em unidade ou identidade de conceito quando se fala de Brasil, de sociedade, de povo ou de nação brasileira; isso implica, profundamente, na construção da cidadania. Essa sociedade multifacetária, polimorfa e irreconciliavelmente disforme produz um conceito de cidadania que se unívoco incorreria em profundas injustiças, uma vez que desconsideraria a alteridade e a diferença.


2.A cidadania social no Brasil

            Os direitos sociais, no Brasil, desenvolveram-se tardiamente, haja vista o peso histórico das grandes instituições da colônia que formaram um legado de entraves ao seu desenvolvimento.

            A ordem escravista, o latifúndio monocultor, o estatuto de colônia, enfim, desguarneciam de tutela jurídica os brasileiros. Direitos sociais apenas paras os reinóis. A assistência social era desenvolvida na sua grande parte por associações privadas, muitas ainda de cunho religioso, outras antecessoras dos sindicatos, que "ofereciam aos seus membros apoio para tratamento de saúde, auxílio funerário, empréstimos, e mesmo pensões para viúvas e filhos" (CARVALHO, 2002: 61), proporcionalmente às suas contribuições, além ainda das Santas Casas de Misericórdia, apesar de a Constituição do Império (1824) ter garantido o direito aos socorros públicos no artigo 179, inciso XXXI, e, a educação primária gratuita no artigo 179, inciso XXXII.

            Os direitos sociais não foram reconhecidos pela Constituição Republicana, que declarava não ser dever do Estado garantir tanto a educação primária quanto a assistência social, havendo, portanto, claro retrocesso. Outrossim, predominava um liberalismo já superado em grande parte da Europa. O princípio de não regulamentação das profissões proclamado pela constituição de 1824, foi repetido pela constituição republicana no artigo 72, e permaneceu intocado até a constituição de 1934, denotando o claro ideário anticorporativo do século XVIII, base da principiologia lassez-fairiana de organização social. O sentido do liberalismo ortodoxo adotado pelo Estado brasileiro foi o de não intervenção no processo de acumulação, em quaisquer pontos, sobretudo no de reinventá-lo.

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            A República também se esquivou de regulamentar os direitos trabalhistas – que junto aos direitos previdenciários – são os mais importantes dos direitos sociais. Na primeira década da República, houve um surto industrial na região Sul e Sudeste do país, que trouxe a cena política nacional, pela primeira vez a figura do trabalhador.

            Desde a última década do século XIX, é possível distinguir diferentes porta-vozes dos interesses dos operários. De forma bastante esquemática e correndo o risco de incorrer em simplificações, pode-se afirmar que o espectro ia desde os chamados amarelos ou reformistas, defensores dos interesses dos patrões e da ordem estabelecida, passando pelos socialistas – que, por meio da arregimentação dos trabalhadores em torno dos partidos que fundavam e de seus candidatos, almejavam participar da vida política e propor a elaboração de leis que alterassem o duro cotidiano dos assalariados –, até os anarquistas, que negavam a ordem liberal, o estado, a representação, o jogo político partidário, propondo o enfrentamento com o capital, a chamada ação direta levada a cabo pelos sindicatos de resistência, e a fundação, por meio da greve geral revolucionária, de uma outra sociedade, sem explorados e exploradores, ancorada na solidariedade, igualdade e reforma profunda do ser humano, o que explica a centralidade de sua proposta cultural. (LUCA, in PINSKY: 471-472)

            Nas primeiras lutas pelos direitos sociais, o poder público acabou por se colocar ao lado do patronato e garantiu proteção policial às fábricas, perseguiu e prendeu lideranças, fechou gráficas e jornais considerados subversivos, extraditando estrangeiros que fossem suspeitos de colocar em perigo a tranqüilidade pública e a segurança nacional etc. José Murilo de Carvalho afirma que ficou notória a frase de um presidenciável de que a questão social – o nome genérico do problema operário – era questão de polícia(CARVALHO, 2002: 63).

            An passant a tendência da política de bem-estar social foi iniciar-se com programas relativos a acidentes de trabalhos, expandindo-se para a cobertura da velhice, invalidez e dependentes, alcançando a doença e a maternidade, e os abandonos materiais, para finalmente chegar ao seguro-desemprego.( SANTOS, p. 17.)

            A despeito de algumas leis que existiam no período, regulando o trabalho de menores (1891 e, posteriormente, o Código de Menores de 1927), a organização dos sindicatos urbanos e rurais (1903 e 1907 respectivamente) o aumento das demandas sociais foram bastante evidentes, o número de greves operárias que entre os anos de 1888 e 1900 foi de doze e saltou para cento e sete entre 1917 e 1920 (Azis SIMÃO, apud SANTOS, p. 72.).

            O episódio mais importante das três primeiras décadas do século passado foi a criação da Caixa de Aposentadoria e Pensão dos ferroviários em 1923, que assegurava a essa categoria profissional, aposentadoria por tempo de serviço, velhice ou invalidez; pensão em caso de falecimento, subvenção de despesas funerais e assistência médica; e tinha por principais características: o rateio da contribuição entre governo, patrões e empregados; administração particular – sem ingerência estatal – e organização por empresa.

            A proposta que iniciou a implantação das Caixas de Aposentadoria e Pensão foi de origem do patronato, que convidou o deputado Eloy Chaves a oferecer projeto, tendo modelo as Cajas de Jubilaciones argentinas. Tânia Regina de Luca (p. 475) sugere que o principal interesse na medida era seu caráter desmobilizador.

            Além disso,

            Necessitar de ajuda ou cooperação social convertia-se, assim, em estigma pessoal antes que sugestão de que a nova forma de organizar a produção não era satisfatória. Os homens são desiguais, sustenta o credo meritocrático, e a distribuição de benefícios econômicos e sociais reflete essa desigualdade, através do mercado, e nenhuma ação pública, tendo por objetivo escamotear esse duro fato é legítima (SANTOS: 18)

            Wanderlei Guilherme dos SANTOS, na obra Cidadania e justiça, comenta (p. 24) que as Caixas de Aposentadoria e Pensão seguiam o esquema clássico, onde o trabalhador abria mão de parte dos seus ganhos atuais, enquanto ainda participava do processo de acumulação, a fim de obter parte deles, no futuro, quando estivesse fora do processo. Isso fez com que as CAPs não se configurassem direito de cidadania, inerentes a todos os membros da comunidade nacional, quando estivessem privados de participarem do processo de acumulação, mas era um compromisso privado entre os membros de uma empresa e seus proprietários, ou seja, tinha caráter eminentemente contratual.

            Na década de vinte, duas medidas legislativas importantes foram tomadas no tocante a regulação do trabalho que tiveram ressonância sobre o problema da cidadania: concomitantemente a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão, promulgou-se uma lei – no sentido material – sobre o direito de férias (Decreto 17.496 de 1926), no que foi seguido pelo Código de Menores (Decreto 17.934/A de 1927). Teve-se com isso o início da preocupação com a justiça social stritu sensu; muito embora o direito de férias só foi efetivamente regulado entre os anos de 1933 e 1934, respectivamente para o comércio e os bancos, e, para os trabalhadores da indústria, a legislação editada com relação a tutela dos direitos dos menores foi de novembro de 1932, até a qual a primeira teria permanecido inócua.

            Quando as normas jurídicas estavam em profundo descompasso com a realidade social que se lhes serviria de substrato, embora formalmente perfeitas, deixavam de ser efetivas. Foi apenas entre os anos de 1933 e 1934 que se promulgou e se implementou um conjunto de normas jurídicas sobre o processo de acumulação, o que foi possível pela criação do Ministério do Trabalho e da carteira profissional obrigatória.

            A Constituição de 1934 reconheceu a maioria dos direitos sociais mais difundidos, principalmente no tocante ao trabalho, entre eles: a isonomia salarial, o salário mínimo, a jornada de trabalho de 8 horas; a proibição do trabalho de menores, o repouso semanal, as férias remuneradas, a indenização por dispensa sem justa causa, a assistência médica ao trabalhador e à gestante, bem como reconheceu a existência dos sindicatos e associações profissionais, estabeleceu ainda a submissão do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo, entre outras medidas.

            Wanderley Guilherme dos Santos afirma:

            [...] o conceito chave que permite entender a política econômico-social pós-30, assim como a passagem da esfera da acumulação para a esfera da equidade, é o conceito de cidadania, implícito na prática política do governo revolucionário, e que tal conceito poderia ser descrito como o de cidadania regulada. Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. (p. 74)

            Ou seja, a cidadania é limitada por fatores políticos (CARVALHO, 2002: 115). Essa associação entre cidadania e ocupação, ainda segundo o referido autor, proporcionou as condições para que se formassem, depois, os conceitos de mercado de trabalho informal e marginalidade, isso porque, no primeiro conceito, não estavam instalados os desempregados, ou sub-empregados, mas todos que por mais regulares e estáveis que estivessem não tinham suas ocupações regulamentadas pelo Estado. As posturas de política social eram concebidas como privilégio e não como direito, já que uma série de trabalhadores (todos os autônomos e, principalmente, as trabalhadoras domésticas) ficavam à margem dos benefícios concedidos pelo sistema previdenciário da época.

            Os direitos sociais de cidadania não foram resultados, portanto, da luta política dos movimentos sociais organizados; antes era resultado da benevolência do Estado, mormente daquele que detinha a chefatura do Poder Executivo e de seus órgãos.

            É de se notar que na obra "Opressão burocrática: o ponto de vista do cidadão" ficou explicitado que os direitos são percebidos como concessões da autoridade benemérita, embora os direitos estejam previstos pelo corpo de leis, acredita-se que só se efetivarão na medida em que a autoridade for generosa e compassiva.

            Neste contexto,

            os direitos dos cidadãos são decorrência dos direitos das profissões e as profissões só existem via regulamentação estatal. O instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado e a cidadania regulada é a carteira profissional que se torna, em realidade, mais do que uma evidência trabalhista, uma certidão de nascimento cívico (SANTOS: 76)

            A ligação dos sindicatos com o governo ia muito além de órgãos consultivos e técnicos (CARVALHO: 2002: 116), destinados a colaborar com o poder público. Como via consignado no Decreto 19.770 de 1931, o governo efetivamente controlava os sindicatos. A lei de sindicalização do governo revolucionário além de distinguir entre sindicatos de empregados e empregadores, estabeleceu quem poderia pertencer ao sindicato, e submeteu a própria existência dos sindicatos a prévio registro no Ministério do Trabalho, de sorte que só poderiam apresentar reclamações trabalhistas quem fosse sindicalizado, ou seja, quem tivesse sua ocupação reconhecida e regulamentada pelo Estado.

            Ocorreu, no ano de 1933, quando da criação do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, uma mudança interessante, a qual possibilitou não só a reunião sob o mesmo regime previdenciário dos membros da mesma categoria profissional, mas, também a avocação pelo Estado de duas ordens de problemas: o da acumulação e o da equidade (SANTOS, p. 31).

            O modelo de financiamento dos IAPs era semelhante ao das CAPs, a modificação importante era que o instituto seria gerido por um presidente nomeado pelo Estado, em decreto referendado pelo Ministro do Trabalho, assistido por um Conselho composto por duas partes iguais de empregadores e empregados. Estabeleceram-se, assim, as raízes da burocracia estatal em administração de instituições de interesse público.

            [...] A burocracia sindical brasileira, atrelada ao Estado, e que se gera em virtude dos dispositivos legais da década de 30, encontrou nos recursos diferenciados da rede previdenciária a forma ótima de integrar-se ao sistema de cidadania regulada, pois a forma de obter recursos diferenciais de poder requeria a manutenção de um sistema estratificado de cidadania. A distribuição de postos de mando do sistema previdenciário a liderança sindical requeria, em contrapartida, a submissão à orientação de quem controlasse o Ministério do Trabalho. (SANTOS: 78)

            O pelegismo foi a tônica da relação dos sindicatos com o Estado. O sistema previdenciário controlado pelo Estado permitiu a vinculação das oligarquias políticas e sindicais no pós-30, de forma que a primeira controlava o Ministério do Trabalho e a segunda, o operariado. José Murilo de Carvalho (2002: 118) afirma que, nesse período, o operariado viveu o dilema: liberdade sem proteção ou proteção sem liberdade.

            O pelego (CARVALHO: 2002: 122.) é normalmente um operário que procurava beneficiar-se do sistema, adotava postura de submissão voluntária aos interesses do Estado e dos patrões e negligenciava a sua classe. Essas alianças rendiam favores aos pelegos, era comum que os sindicatos geridos por eles fossem atraentes pelos benefícios que concediam – isso porque nunca entravam em conflitos –. Em geral, não obstante, eram odiados pelos sindicalistas mais politizados e conscientes.

            Nesse contexto repressor foi promulgado o Decreto-lei 5.452 em 1o. de maio de 1943, o qual consolidou as Leis do Trabalho e otimizou o controle que já havia se intensificado com a Constituição de 1937 quando estabeleceu o sindicato único, o imposto sindical, criou-se a Justiça do Trabalho – antes existiam Juntas de Conciliação que não poderiam ser consideradas ainda Justiça especializada na composição dos conflitos decorrentes das relações de Trabalho –, e ainda considerou a greve como nociva ao trabalho e ao capital, embora alguns juristas desatentos afirmem que o objetivo da CLT era apenas o de reunir as leis extravagantes existentes na época.

            A Constituição de 1937 de caráter populista, editada sob inspiração nazi-facista, foi eminentemente corporativista seguindo a orientação da Carta del Lavoro de 1927 e da Constituição Polonesa., foi marcada pelo autoritarismo sobretudo concernente aos direitos políticos, fortalecendo o poder do Chefe do Executivo. Previa um plebiscito para sua legitimação que jamais ocorreu. Previa eleição para o Congresso, que também não ocorreu. Previa ainda um segundo plebiscito para nova legitimação que também não ocorreu.

            Apesar de tudo, é possível afirmar que o governo Vargas foi a época dos direitos sociais [01]. O problema efetivo desse período foi a inversão na ordem proposta por Marshall. Os direitos sociais foram introduzidos em momento de supressão dos direitos políticos e, sobretudo, não em decorrência da luta política organizada dos movimentos sociais, mas como benesse ou graça da chefatura do Poder Executivo da República.

            [...] Era avanço na cidadania, na medida em que trazia as massas para política. Mas em contrapartida, colocava os cidadãos em posição de dependência perante os líderes, aos quais votavam lealdade pessoal pelos benefícios que eles de fato ou supostamente lhes tinham distribuído. A antecipação dos direitos sociais fazia com que os direitos não fossem vistos como tais, como independentes da ação do governo, mas como um favor em troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e reinvidicadora.(CARVALHO, 2002: 126)

            O pós-45 embora possa ser caracterizado como um período de relativa democracia, principalmente, no tocante aos direitos políticos e civis, não significou uma ruptura com as estruturas consolidadas pelo governo Vargas.

            As mudanças demográficas iniciadas no início da década de 30 se intensificaram, e os movimentos migratórios para os grandes centros impulsionaram a urbanização. O principal favorecido dessa tendência foi o processo de acumulação, não obstante houve o surgimento de problemas sociais básicos, como os de infraestrutura, sobretudo, nos principais centros urbanos do sul e sudeste.

            As concepções político-econômicas mudaram, as idéias do economista John M. Keynes foram incorporadas por grande parte dos países europeus do pós-guerra, o ideário social-democrata, principalmente no que se refere à economia e à administração do governo, foi fagocitado silenciosamente pelas elites brasileiras.

            O cenário social era este:

            [...] O Estado regulava quase tudo, ou tudo, sempre que o conflito ameaçasse ultrapassar os limites que a elite considerasse apropriados. O Estado autoritário brasileiro, que, em verdade, se estende de 1930 a 1945, buscou sua legitimidade, como acentuou Azevedo Amaral, na necessidade de conter os conflitos sociais nos limites da sobrevivência da comunidade, tal como os entendia e definia a elite dirigente. Era, em sentido estrito, um Estado de legitimidade hobbesiana. Suas instituições sociais e econômicas foram aparentemente adequadas aos propósitos da elite no poder mas, após 1945, tratava-se de administrar uma ordem relativamente democrática em termos políticos, em um contexto social e econômico extremamente regulado. (SANTOS: 80)

            O dirigismo estatal com relação aos sindicatos se fez sentir notoriamente durante o governo Dutra, a estrutura sindical não se alterou. Apesar disso, o ambiente político de semi-competitividade, ou seja, o desenvolvimento da proto-democracia de então, propiciou a organização em associações civis de diversos grupos sociais que tinham por escopo a reivindicação por melhores posições de captura de fluxos de renda, e pela ampliação dos direitos sociais de cidadania de um modo geral.

            As grandes inovações do período foram: a Constituição de 1946, que preservou os direitos sociais da anterior e aperfeiçoou a Justiça do Trabalho que não teve alteração até a extinção dos juizes classistas na década de 1990; o Estatuto do Trabalhador Rural de 1963 que estendeu os direitos previdenciários, trabalhistas e de sindicalização aos trabalhadores rurais, que, efetivamente, surtiu poucos efeitos haja vista a grande força desmobilizadora exercida pelos grandes proprietários de terras.

            A exceção que se instalara com o Golpe Militar de 1964 alterou, em alguma medida, o panorama dos direitos de cidadania: os direitos políticos e civis foram supressos o que acabou por provocar retrocesso em alguns direitos sociais conquistados durante o interregno democrático – principalmente, os de associação –, mas os governos militares continuaram a enfatizar os direitos sociais da mesma forma que o governo Vargas.

            A noção de cidadania continuava desvinculada de qualquer conotação pública ou universal, ainda era concebida como privus-lex – lei privada, produzida pela benemerência das autoridades públicas –, grande parte da população ainda encontrava-se excluída de quaisquer direitos fundamentais, apesar de as garantias individuais estarem previstas no artigo 150 da Constituição de 1967 e os direitos sociais no artigo 158.

            Os governos militares pensavam que a distribuição de renda só ocorreria depois que o processo de acumulação estivesse suficientemente regulado de forma a aumentar os valores absolutos da riqueza nacional. Desvinculou-se o reajuste salarial da noção de bem-estar, ou de mínimo necessário à subsistência para atrelá-lo a política macro-econômica de combate a inflação e promoção do crescimento (LUCA, p. 484 in PINSKY, 2003).

            A orientação ideológica da elite pós-64, buscando acelerar as taxas de poupança e acumulação, conduziria a problemas mais difíceis de resolver no que concerne às políticas de emprego e salarial. No primeiro caso, conflitavam-se os objetivos de modernizar aceleradamente a economia, aumentando a produtividade do fator trabalho – o que significava menor número de trabalhadores ocupados por indústria - e de criar substancial número de empregos atuais, como decorrência da pressão populacional, urbana em particular. Por outro lado, a política de modernização tecnológica da economia faria pender para o lado da mão-de-obra qualificada os benefícios da operação da lei da oferta e da procura, pedra angular da economia de mercado com que se diz comprometida a nova elite decisória. E, sobretudo, tendo em virtude da estagnação, em termos proporcionais, dos investimentos governamentais em educação. A ser respeitada a lei da oferta e da procura seria de se esperar que, em breve prazo, a força industrial melhor equipada estaria em posição favorável na barganha salarial, o que obrigaria o governo a buscar em outros setores sociais, nas rendas e nos lucros, a poupança necessária para a taxa de acumulação desejada.

            A desorganização da ordem social anterior propiciou as condições para solução do problema. Estando o sistema sindical enfraquecido e reprimido sob intervenção federal e severamente vigiado, nem mesmo as categorias profissionais mais fortes e vocais puderam opor resistência ao "achado"da Lei 4725, de 13 de julho de 1965. Por ela, retirava-se a fixação do salário profissional, ou salário-piso, que era o salário da força de trabalho industrial qualificada, da área do mercado, sob arbitragem da Justiça do Trabalho, e colocava-se a delimitação do piso profissional sob o arbítrio das autoridades financeiras. Esvaziou-se, com isso, a Justiça do Trabalho e retirou-se parcela do operariado industrial a sua única forma de obter melhorias relativas a distribuição da renda nacional. Reforçava-se, aqui, o conceito de cidadania regulada, incluindo-se agora, entre as dimensões reguladas, não apenas a profissão, mas o próprio salário a ser auferido pela profissão, independentemente da força de trabalho. (SANTOS: 104-105)

            Os dados econômicos dos governos militares foram particularmente intrigantes. Apesar da queda do crescimento ao final, o período de maior repressão coincidiu com o período de maior crescimento econômico, e isso provocou reflexos nos direitos sociais de cidadania. Quando a repressão se tornou mais violenta (CARVALHO, 2002:168), as taxas de crescimento mantiveram-se em torno dos 10%, tendo pico de 13,6% no governo Médice (1973), superando rapidamente os maiores índices registrados no governo JK. O aumento da desigualdade provocado pelo "milagre" econômico não se fez sentir, porque a expansão da economia veio acompanhada de modificações demográficas e na composição da oferta de empregos.

            Em 1966 fora criado o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) que substituiu a estabilidade garantida aos trabalhadores que completassem mais de dez anos de serviço. Ainda nesse mesmo ano surgira o INPS (Instituto Nacional da Previdência Social) que unificou todo o sistema de IAPs. Durante o governo Médice, foi atingido o ideal de universalização da previdência com a criação do FUNRURAL (Fundo de Assistência Rural), o qual garantiu aos trabalhadores rurais o acesso à Previdência Social, e a incorporação das empregadas domésticas e dos trabalhadores autônomos. Fora ainda criado o BNH (Banco Nacional da Habitação) e, em 1974, finalmente, o Ministério da Previdência Social.

            A avaliação dos governos militares, sob o ponto de vista da cidadania, tem, assim, que levar em conta a manutenção do direito de voto combinada com o esvaziamento de seu sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de restrição dos direitos civis e políticos. (CARVALHO, 2002: 172-173)

            Com a redemocratização, os direitos sociais permaneceram sem ampliação substancial, mesmo depois da Constituição Federal de 1988, o que será abordado de forma própria ulteriormente.

            Note-se que muitos dos direitos sociais proclamados desde a década de trinta não foram amplamente implementados, e já se fala em flexibilizá-los. As sucessivas crises econômicas que abateram o Brasil ao longo da década de oitenta e início da de noventa, juntamente com as posturas neoliberais adotadas pelo Estado, agravaram ainda mais a precariedade dos direitos sociais.

            O Jornal Folha de São Paulo, em 24 de março de 2002, publicou um caderno especial sobre a questão do trabalho e constatou-se que os brasileiros, que ganhavam em média meio salário mínimo chegam a 7% da população e estavam abaixo da linha da pobreza, além disso, 46% nunca trabalharam com registro em carteira profissional. Ainda trouxe outros dados interessantes, 83 % dos trabalhadores brasileiros não eram filiados a sindicatos, embora sete em cada dez achassem importante participar de mobilizações por aumento de salários; a discriminação salarial contra os negros atingia todos os níveis de escolaridade, os negros ganhavam cerca de 1/3 menos que a média salarial; apenas 5 % dos brasileiros ganhavam mais que dez salários mínimos por mês; a maioria dos trabalhadores não recebia 13 o salário (53%), nem férias remuneradas (54%); os benefícios não obrigatórios atingiam menos de um quarto deles.

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Sobre o autor
Fernando de Brito Alves

professor de filosofia e sociologia, licenciado pela Universidade do Sagrado Coração de Bauru, bacharelando em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, em Jacarezinho (PR), membro do programa de pós-graduação latu sensu em História, historiografia, sociedade e cultura da Faculdade Estadual de Filosofia de Jacarezinho, ambas da Universidade Estadual do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Fernando Brito. Cidadania e direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 877, 27 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7627. Acesso em: 16 abr. 2024.

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