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Investigação preliminar e oitiva do suspeito ou indiciado:

notas sobre o princípio da inquisitividade regrada

13/01/2006 às 00:00
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Qualquer medida coercitiva fundada em investigação preliminar viciada "por omissão de formalidade que constitua elemento essencial desse ato" representa uma arbitrariedade.

O suspeito ou indiciado, durante a investigação preliminar, conta com o direito de ser ouvido pela autoridade que a preside? Sim, qualquer que seja essa investigação. Tanto a Constituição federal quanto o Código de Processo Penal servem de base para essa tese.

A primeira assegura ao preso (logo, a qualquer suspeito ou indiciado) o direito de assistência de advogado em todos os atos de que participe (assistência, de qualquer modo, não é contraditório), direito de se entrevistar, pessoal e reservadamente, com seu advogado, direito de não ser preso ilegalmente, direito ao silêncio, direito de não se declarar culpado ou de fornecer prova contra si próprio, direito à intangibilidade corpórea e à integridade física, bem como o direito à própria dignidade da pessoa humana; direito de assistência da família, de saber a identificação de quem o prende ou incrimina, de não ficar incomunicado etc..

O segundo (CPP) manda que a autoridade colha todas as provas para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias (CPP, art. 6º, inc. III), que ouça o indiciado (inc. V), que ordene sua identificação dactiloscópica (inc. VIII), que faça a averiguação da sua vida pregressa e psicológica (inc. IX), que forneça à autoridade judiciária todas as informações necessárias à instrução e julgamento do processo (art. 13, I), que decida sobre os requerimentos do indiciado (art. 14) etc.

Diante de tudo quanto acaba de ser exposto cabe concluir: nenhuma medida coercitiva contra o suspeito (ou indiciado) conta com validade jurídica, se ele se encontra à disposição da autoridade investigante, com endereço certo, principalmente quando se acha no "distrito da culpa", e não foi ouvido em nenhum momento. Nessas circunstâncias não são válidos a investigação e muito menos os atos subseqüentes nela fundados: indiciamento, prisão temporária, prisão preventiva ou mesmo o ato da denúncia.

Toda investigação preliminar, por conseguinte, deve respeitar os direitos básicos do suspeito, como por exemplo e principalmente o de ser ouvido. Parece muito evidente que não pode subsistir qualquer resquício de dúvida sobre a nulidade das medidas coercitivas decretadas sem que o suspeito, que estava à disposição da autoridade, tenha sido ouvido.

Embora a fase preliminar investigatória não seja contraditória, embora não seja observada em seu seio a ampla defesa constitucional, o suspeito tem, nessa etapa persecutória, quando se apresenta ou quando está à disposição da autoridade, pelo menos o direito de ser ouvido.

O tema que acaba de ser delineado foi amplamente discutido na Terceira Câmara Criminal do Tribunal Justiça do Estado de São Paulo (Caso Santo André, HC 394.322.3/0, impetrado, dentre outros, pelo advogado Roberto Podval), que culminou por anular a denúncia então oferecida em razão da violação de uma série de garantias, inclusive constitucionais.

Em seu voto condutor e majoritário, o eminente Desembargador Walter de Almeida Guilherme registrou que nenhum ato investigatório (da polícia ou de qualquer outra autoridade) pode se afastar das regras processuais vigentes. Não há dúvida que no nosso sistema processual vigente o inquérito policial (ou qualquer outra investigação preliminar) é regulado pelo princípio inquisitivo. Mas isso não elimina o direito de autodefesa, que decorre, no mínimo, da condição de pessoa humana do suspeito.

Aliás, como bem se proclamou no v. aresto citado, "Na origem do habeas corpus, no ato do direito anglo-saxônico que o instituiu, já havia a exigência de se ouvir alguém para validar a prisão e antes de denunciá-lo. Este é um direito de raiz, medular, enfronhado no direito do Estado da persecutio, que deve ser respeitado mesmo antes da instauração do processo-crime em juízo. Não por outra razão o legislador processual penal estatuiu ser dever da autoridade policial ouvir o indiciado (artigo 6°, V, do Código de Processo Penal)".

Mesmo diante da inquisitividade do inquérito policial e, pois, de qualquer outro procedimento investigatório preliminar, é certo que uma série de direitos (do suspeito) devem ser estritamente observados. Não há que se falar em contraditório ou ampla defesa nessa fase, mas isso não significa que o averiguado esteja impedido de participar dos atos de investigação (para exercer ao menos sua autodefesa), que não possa requerer diligências (nos termos do art. 14 do CPP), que seu advogado não tenha o direito de manusear os autos de inquérito policial, findo ou em andamento, podendo extrair cópias e fazer anotações, nos termos do artigo 7°, XIV, do Estatuto da Advocacia, que não tenha direito ao silêncio, que não tenha direito de se entrevistar com seu advogado, que não tenha direito de assistência da família e de advogado etc..

Em síntese, a investigação preliminar é inquisitiva, mas não mais medieval. Por conseguinte, depois da CF de 1988 parece totalmente pertinente falar-se em inquisitividade regrada. Essa é a verdadeira natureza da investigação preliminar, seja ou não policial. Por quê? Porque nossas leis processuais e sobretudo a Constituição Federal garantem vários direitos ao suspeito, ao indiciado, à vítima, testemunha etc..

São direitos e garantias mínimas e básicas, que são assegurados para se evitar o retorno à inquisição medieval. Pelo menos esse mínimo deve ser estritamente observado pelas autoridades, sob pena de nulidade do ato investigativo assim como de qualquer medida coercitiva fundada nessa investigação completamente viciada. Inquisitividade da investigação sim, mas regrada (ou temperada).

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Clássica jurisprudência, entretanto, afirma que os vícios do inquérito não maculam a futura ação penal. Essa consolidada doutrina, depois da CF de 1988, deve ser revisitada, temperada e recompreendida. Quando o vício consiste na "omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato" (tanto do ato precedente que é a investigação como do ato subseqüente mas fundado nela), não há como se afastar a nulidade (CPP, art. 564, inc. IV).

Essa foi, por sinal, a lúcida conclusão a que chegou o TJSP no famoso Caso Santo André: "A postergação do direito de defesa ou mesmo do direito de acesso às investigações não constituiu somente uma mera irregularidade ou uma simples ilegalidade, que não contaminaria eventual ação penal instaurada em decorrência ou eventual prisão decretada, mas sim [como bem sublinhou o voto condutor no citado HC 394.322] configurou omissão essencial que, se não existisse, poderia talvez ter levado à não decretação da prisão temporária e, depois, da preventiva. Essa é uma possibilidade concreta e real, ‘a menos que se acredite que o procedimento investigatório foi instaurado apenas com o intuito de colher provas contra os averiguados, o que não se coadunaria com os seus fins" (trecho do voto do Desembargador Walter Guilherme).

Concluindo: qualquer medida coercitiva fundada numa investigação preliminar que se apresenta completamente viciada "por omissão de formalidade que constitua elemento essencial desse ato", de acordo com nosso juízo, retrata uma arbitrariedade, que deve ser corrigida prontamente. A investigação preliminar é inquisitorial, mas não pode ser medieval. Inquisitividade regrada, esse é o nome do princípio que rege, nos dias atuais, toda investigação preliminar.

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Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Investigação preliminar e oitiva do suspeito ou indiciado:: notas sobre o princípio da inquisitividade regrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 924, 13 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7822. Acesso em: 5 mai. 2024.

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