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Lei de Recuperação de Empresas e sua necessária interpretação principiológica como único meio à consecução de seu objetivo jurídico colimado

30/01/2006 às 00:00
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            Eis que o novel diploma jurídico-falimentar – Lei 11.101/05 – promulgado após grande expectativa da comunidade jurídica, trouxe consigo consideráveis alterações no âmbito do direito concursal brasileiro, reclamadas há tempos, face à notória defasagem em que se encontrava o Decreto-Lei nº 7.661/45 no que tange aos objetivos visados por um diploma regulador de matérias afetas ao empresário e à sociedade empresarial.

            De fato, estatísticas demonstram que na vigência da pretérita legislação falimentar, apenas 17% das empresas sob concordata judicial se recuperavam e mantinham-se em atividade, enquanto as demais (83%) acabavam abrindo falência.1

            Inequívoca era a ineficácia do instituto, clamando, pois, por uma reforma legislativa que acolhesse, em concreto, os vislumbramentos constitucionais consubstanciados na função social da empresa.

            Isso posto, trabalhou bem o legislador ao criar o instituto da recuperação judicial, cujo escopo maior é justamente o de atender ao mandamento constitucional da função social da empresa, propiciando mecanismos realmente efetivos no soerguimento da empresa em dificuldades.

            Todavia, é curioso como pode o nosso legislador ser tão antagônico a ponto de inserir, no mesmo diploma jurídico, dispositivos tão díspares à consecução dos objetivos explicitados. É o que representa o artigo 57 da Lei em comento, onde se lê, verbis: "Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional."

            Mais que prontamente, a fim de se obter a eficácia do dispositivo acima mencionado, foi editada a Lei Complementar nº 118 de 09 de Fevereiro de 2005 – diga-se de passagem: no mesmo dia da edição da Lei 11.101/05 – cujos dispositivos alteraram em alguns pontos a redação do Código Tributário Nacional, dentre os quais, inseriu o artigo 191-A, cuja redação é a seguinte: "Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei."

            Ora, ao analisarmos tais disposições, depreende-se que a concessão da recuperação judicial fica condicionada à apresentação de prova de quitação de todos os tributos, isto é, regularidade fiscal. Assim, perplexos ficamos ao constatarmos tamanha demonstração de protecionismo fiscal em detrimento dos fins almejados pela Lei de Recuperação.

            A empresa que busca a recuperação judicial o faz por estar em dificuldades financeiras, caso contrário não o faria. Cediço é que tais empresas, na sua quase totalidade, são principalmente devedoras do fisco, pois tais empresas, primeiramente deixam de pagar os tributos para não deixarem de honrar compromissos com os fornecedores, o que inviabilizaria, de imediato, a continuidade das atividades da empresa.

            Segundo cálculos do professor Ives Gandra da Silva Martins, a carga tributária chega a pelo menos 67% do PIB2, algo sem precedentes em todo o planeta, o que demonstra a sufocante situação do empresariado brasileiro.

            Ex positis, é de se inferir que a recuperação judicial é um instituto jurídico natimorto, pois não parece razoável imaginar que uma empresa que busque os benefícios de um programa de recuperação judicial, por achar-se em dificuldades de manter-se em atividade por problemas financeiros, consiga, além das suas dívidas comerciais e dos tributos correntes, quitar ainda suas obrigações tributárias pretéritas, para somente assim obter as benesses legais.

            Assim, decorrido o prazo sem o cumprimento pelo devedor do determinado no artigo 57 da Lei 11.101/05, restaria, como única alternativa ao magistrado, indeferir o pedido de recuperação judicial, lançando por terra toda uma possibilidade de manutenção das atividades empresariais, o que, de longe, representaria mais benefícios à sociedade do que o "interesse público" que supostamente se protege ao exigir-se os créditos tributários.

            Há que se reconhecer que está ocorrendo ofensa à função social da empresa, amplamente vislumbrada e protegida pela Lex Major da Nação.

            Como bem lembra Nelson Nery Júnior, "o intérprete deve buscar a aplicação do direito ao caso concreto, sempre tendo como pressuposto o exame da Constituição Federal. Depois, sim, deve ser consultada a legislação infraconstitucional a respeito do tema".3 Adiante conclui: "Esta é a razão pela qual todos devem conhecer e aplicar o Direito Constitucional em toda a sua extensão, independentemente do ramo do direito infraconstitucional que se esteja examinando."4

            E exatamente balizando-se nesse entendimento que, em decisão muito bem fundamentada, principalmente nos princípios constitucionais, o juiz Luiz Henrique Miranda, da 1ª Vara Cível da Comarca de Ponta Grossa, Estado do Paraná, proferiu uma das primeiras decisões no país – senão a primeira –, deferindo a concessão da recuperação judicial a uma empresa que não apresentou as certidões negativas de débitos tributários, conforme exigência contida no artigo 57 da Lei 11.101/05.

            A sentença proferida no bojo dos autos 390/2005, de Recuperação Judicial proposta por W.P.I.C.L. em 02 de Dezembro de 2005, dada sua importância, pois pode servir como referencial ao firmamento de entendimento jurisprudencial a respeito do tema, merece ser aqui transcrita em alguns de seus mais importantes pontos de fundamentação. Assim se pronunciou o insigne magistrado paranaense:

            "Como é sabido, o instituto da recuperação judicial foi inspirado no princípio constitucional da função social da empresa, que por sua vez, se coliga com o princípio da dignidade da pessoa humana. (...)".

            "Nessa ordem de idéias, o instituto da recuperação judicial se apresenta como um mecanismo voltado à preservação de uma empresa que atende a uma função social e que, por circunstâncias acidentais, entra em crise econômico-financeira, mas que, apesar disso, se mostra viável dependendo apenas de ajustes na sua rotina administrativa e de algumas concessões por parte dos credores para se reerguer e voltar a operar de forma saudável para o mercado. (...)."

            "Na realidade, a subordinação do deferimento da recuperação judicial à apresentação de certidões negativas de débitos tributários colide com os princípios constitucionais antes mencionados na medida em que inviabiliza a salvação da empresa, entendimento do qual não discrepa a doutrina..."

            "Enfim, a exigência de apresentação de certidões negativas – que, na prática, equivale a impor ao empresário estar em dia com as obrigações fiscais e previdenciárias – inviabiliza a recuperação judicial. Fazendo-o, conflita com o princípio constitucional da função social da empresa e com os outros que a ele se ligam, entre os quais o da dignidade da pessoa humana."

            (...)

            "Sintetizando, a exigência de apresentação de certidões comprobatórias de inexistência de débitos junto ao fisco e à previdência, feita pelo artigo 57 da Lei 11.101/2005, ofende o princípio constitucional da função social da empresa, malfere o princípio da razoabilidade e agride garantias constitucionais ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa dadas ao contribuinte.

            Por tal razão, deve a Autora ser dispensada do cumprimento dessa mesma exigência, e, porque preenchidos os demais requisitos legais, ao que se soma a aprovação unânime dos credores que compareceram à assembléia-geral ao plano de recuperação, deve ser deferido o pedido inicial."

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            Ovacionado deve ser o douto magistrado prolator da decisão retro transcrita. De fato, com maestria soube visualizar a verdadeira ratio de toda a construção jurídica em torno do tema "recuperação jurídica de empresas", cujo ápice emerge da Carta Constitucional. Sua acertada decisão denota a evolução porque deve passar o exercício da judicatura, ao lançar mão cada vez mais de princípios de matiz constitucional, em oposição ao positivismo exacerbado.

            Realmente, o princípio tem caráter de norma, contudo é dinâmica, diferentemente da lei, cuja aplicação ao caso concreto, em muitas das vezes resta prejudicada, tendo em vista apresentar-se retrógrada – por não acompanhar a evolução social –, ou protecionista, por ser um afloramento de interesses de setores da sociedade ou do próprio Poder Público, que de diversas maneiras agride constantemente os direitos e garantias fundamentais.

            Urge, pois, um Judiciário que, como nesse caso, aplique não somente a lei, mas o Direito e a Justiça.


NOTAS:

            (1) SALAMANCHA, José Eli. A recuperação judicial de empresas e as dívidas fiscais. O Estado do Paraná, Curitiba, 25 dez. 2005, Caderno Direito e Justiça.

            (2) "Pelos cálculos do professor Ives Gandra da Silva Martins, a carga tributária chega a pelo menos 67% do PIB. Vejamos: ´Se considerarmos os 38% do PIB (arrecadação) mais os 50% de inadimplência ou sonegação (19%) e mais os 10% correspondentes à autoprestação de serviços públicos, que é o diferencial entre a carga dos países que prestam os serviços públicos (em torno de 30% de carga) contra os que não prestam serviços adequados (em torno de 20%), teremos uma carga no papel, mais leis, exigida pelos Fiscos da União, de Estados e dos Municípios de pelo menos 67% do PIB! Não há parâmetro mundial semelhante.´" (Revista Justilex, ano III, n.31, jul.2004, p. 6-7, apud LEITE, Harrison Ferreira. O entrave do art. 191-A da Lei Complementar 118/2005 para a concessão de recuperação judicial. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Reflexos Tributários da Nova Lei de Falência. São Paulo: MP Editora, 2005, p. 37).

            (3) NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6ª ed. São Paulo: RT, 2000, p. 20.

            (4) Idem, ibidem.


BIBLIOGRAFIA:

            NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6ª ed. São Paulo: RT, 2000.

            PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

            PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Reflexos Tributários da Nova Lei de Falência. São Paulo: MP Editora, 2005.

            SALAMANCHA, José Eli. A recuperação judicial de empresas e as dívidas fiscais. O Estado do Paraná, Curitiba, 25 dez. 2005, Caderno Direito e Justiça.

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Sobre o autor
Ronny Carvalho da Silva

bacharelando em Direito pelas Faculdades Integradas de Ourinhos (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Ronny Carvalho. Lei de Recuperação de Empresas e sua necessária interpretação principiológica como único meio à consecução de seu objetivo jurídico colimado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 941, 30 jan. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7900. Acesso em: 19 abr. 2024.

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