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Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo.

Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro

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A reforma na prescrição desconsiderou o aspecto técnico, subvertendo construções científicas há muito consolidadas, não levou em conta a tradição do sistema jurídico brasileiro e o dado do direito comparado.

SUMÁRIO: 1. À guisa de introdução; 2. Noções básicas sobre a prescrição; 3. O art. 3º da Lei 11.280/06 e suas impropriedades; 3.1 A prescrição e sua natureza jurídica de exceção; 3.2 Breve exame da constitucionalidade do art. 3º da Lei 11.280/03; 3.3 O efeito prático da reforma; 4. Considerações finais; Referências bibliográficas.

A prescripção deve sêr allegada pelo devedôr, não póde ser supprida pelo Juiz. Ha uma obrigação natural de pagar dividas prescriptas, e o devedôr póde querêr desonerar-se dessa obrigação.

(FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. 3 ed. Rio de Janeiro: B. Garnier, 1876, p. 511, nota 1 ao art. 853)


1.À guisa de introdução

Reformas legislativas, quando bem empreendidas, são instrumentos relevantes para o aperfeiçoamento de um sistema jurídico predominantemente escrito. A renovação dos textos legais é salutar quando atende satisfatoriamente ao intuito de desenvolver a norma posta, fazendo-a acompanhar as necessidades do tecido social cada vez mais complexo e em freqüente mutação. [01]

Neste quadro, vale salientar que poucos são os ramos do direito em que a pressão por soluções legislativas mais eficientes se faz sentir com tanta contundência quanto o direito processual.

De fato, na seara processualista se reflete diretamente o anseio da sociedade por uma prestação jurisdicional mais ágil e confiável, que tem levado a diversos enxertos e revisões no texto do Código de Processo Civil de 1973, notadamente a partir da década de noventa. [02]

Recentemente tivemos o advento de um novo ciclo reformista a revisar as estruturas da codificação instrumental, representado pelas Leis 11.187, de 19 de outubro de 2005; 11.232, de 22 de dezembro de 2005; 11.276, de 07 de fevereiro de 2006; 11.277, também de 07 de fevereiro de 2006; e, por fim, 11.280, de 16 de fevereiro de 2006.

Em que pese a incompreensível e indefensável diretriz de política legislativa que conduziu a uma série de diplomas curtos e desconectados entre si, dados a lume em certos casos com poucos dias de intercessão, parece indiscutível que algumas inovações introduzidas no processo civil são positivas, como as alterações incorporadas à execução. [03] Há, porém, as que são meramente inócuas, [04] além daquelas que, sob um verniz de melhoramento, escondem inequívoca tendência à piora. [05]

Não é, contudo, a nenhum destes três tipos de aporte reformista que nos iremos referir. Não nos ocuparemos de inovações positivas, irrelevantes ou meramente depreciativas. Trataremos, na verdade, de uma quarta categoria presente na Lei 11.280/06, que transcende a simples negatividade: a alteração profundamente equivocada. E o faremos mirando o art. 3º da referida lei, o qual, subvertendo uma construção doutrinária cujo evolver remonta a quase dois milênios de história, veio estatuir a possibilidade de o magistrado, no processo civil, declarar de ofício a consumação da prescrição, sem ressalvas de qualquer natureza.

Procuraremos analisar o conteúdo do referido dispositivo legal, bem como cotejá-lo com a multissecular teoria da prescrição, com o fito de expender algumas considerações críticas sobre o conteúdo do dispositivo.

Alerte-se que não pretende esse pequeno artigo, por certo, exaurir o objeto proposto, mas apenas apresentar as primeiras impressões sobre o novo tratamento dado à prescrição e seu alcance, procurando situar o tema e suscitar questões de interesse para o debate, cuja instalação é absolutamente imprescindível.

O art. 3º da Lei 11.280 não pode ser ignorado ou visto fora de seu contexto, como se contivesse apenas mais uma norma de atualização do processo civil. Reclama, assim, posicionamentos claros por parte dos juristas, haja vista representar uma mudança de porte no seio da teoria geral do direito civil, com importantes reflexos práticos, razão pela qual se nos afigura oportuno o presente estudo.


2.Noções básicas sobre a prescrição

A prescrição, como é de conhecimento corrente, tem suas raízes solidamente fincadas em construção doutrinária lentamente amadurecida, que remonta ao direito romano.

No direito romano pré-clássico, inexistiam prazos fixados para o exercício das legis actiones. As mesmas eram perpétuas, não sofriam modificações por decurso de tempo. [06]

A transição para a fase do direito clássico revela ainda a ausência de limitação temporal da actio como regra geral; entretanto, algumas ações, como as ações pretórias de multas e as ações edilícias passaram a ser vinculadas a prazos, após os quais, se não exercidas, caducariam. [07]

Já no direito pós-clássico, o imperador Teodósio II, por uma lei datada do ano 424, veio instituir prazos gerais de prescrição. [08]

Tinha-se a prescrição, então, como uma exceção que cabia ao devedor demandado por dívida cujo prazo para cobrança já havia se esgotado – invocada a praescriptio, extinguia-se a ação. [09]

É importante observar que desde a consolidação do instituto no direito romano já tinha vigência o princípio segundo o qual a prescrição funciona como uma exceção, ou seja, tem de ser alegada por aquele a quem aproveita, não podendo consumar-se ipso jure, pelo simples decurso de tempo. [10]

Foi esta teoria romana da prescrição, aqui exposta em apertadíssima síntese, que forneceu as bases para a estruturação da mesma no direito moderno.

Tanto assim que o romanismo que caracterizou, por longo tempo, os estudos sobre prescrição, conduziu ao erro técnico de continuar-se definindo-a como um meio de extinção da ação por decurso de tempo (ao passo em que a decadência representaria a extinção do próprio direito em face do lapso temporal consumado).

Neste sentido, lecionava Antônio Luís da Câmara Leal, para quem a prescrição é a "extinção de uma ação ajuizável, em virtude da inércia de seu titular durante um certo lapso de tempo, na ausência de causas preclusivas de seu curso." [11]

Ora, é imprescindível ter em conta que o conceito romano de actio não se confunde com a ação do direito atual (remédio jurídico processual), enquanto direito público autônomo dirigido contra o Estado, para obter tutela jurisdicional. [12]

Em que pese incorrerem as legislações, vezes sem conta, em atecnias no trato da matéria, bem como insistirem alguns juristas no uso de concepções teóricas já superadas, óbices como esse foram sendo paulatinamente removidos conforme a evolução doutrinária, e atingiu-se, no direito contemporâneo, uma teoria estável da prescrição, fruto do amálgama entre a tradição consolidada e os reclamos de unidade com o sistema em vigor.

Assim, pode-se identificar a prescrição, com Pontes de Miranda, como a "exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação." [13]

Seu efeito, uma vez oposta, e apenas se oposta, é o de encobrir a eficácia da pretensão, atuando pois no plano da eficácia e sustando a exigibilidade do direito que o credor pretendia fazer valer junto ao devedor. O direito, porém, remanesce, não se extingue (inclusive sujeitando-se à incidência do art. 882 do Código Civil), embora se torne inexigível. [14]

Diversamente se passa com a decadência, ou preclusão, na terminologia pontiana, cuja conseqüência é a extinção do direito em si – mais precisamente, de todos os efeitos irradiados do fato jurídico. [15] Por extinguir de plano o próprio direito, não opera como exceção, e por isso pode ser reconhecida ex officio pelo juiz, independentemente da vontade do suposto obrigado.

Não é difícil, pois, diferenciar prescrição e decadência, como institutos com características próprias que são. [16] O problema real, no entanto, é determinar, frente a um prazo previsto em um determinado texto legal, se o efeito cominado ao não-exercício do direito ao longo do tempo é a prescrição ou a decadência.

A este respeito, além das pioneiras investigações de Câmara Leal, cujo mérito histórico não pode ser olvidado, é fundamental o clássico texto de Agnelo Amorim Filho, [17] no qual este autor articula em precisa síntese: (a) sujeitam-se à prescrição as ações condenatórias (rectius, as pretensões a condenação); (b) sujeitam-se à decadência os direitos potestativos com prazo para exercício previsto em lei, instrumentalizados através de ações de eficácia constitutiva; (c) são perpétuas as ações declaratórias (rectius, pretensões a declaração) e os direitos potestativos sem prazo para exercício previsto em lei. [18]

Essas, pode-se dizer, são as informações básicas necessárias para se compreender o fenômeno jurídico da prescrição, de modo que já temos as premissas bastantes para assentar a análise da reforma empreendida pela Lei 11.280/06, o que faremos no tópico seguinte.


3.O art. 3º da Lei 11.280/06 e suas impropriedades

Assim dispõe o art. 3º da Lei 11.280/06, que ora ocupa nossas atenções:

Art. 3o O art. 219 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 219.. .................................................................

..................................................................

§ 5o O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição.

A redação anterior do art. 219, §5º, do Código de Processo Civil, previa que "não se tratando de direitos patrimoniais, o juiz poderá, de ofício, conhecer da prescrição e decretá-la de imediato".

Complementando o disposto no art. 3º, a Lei 11.280/06 ainda estampou a seguinte previsão, em seu art. 11: "Fica revogado o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil."

Trata-se de norma complementar à prevista no art. 3º, certamente com a intenção de evitar que a continuidade no sistema do art. 194 do Código Civil ("Art. 194. O juiz não pode suprir de ofício a prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz") inviabilizasse o escopo do artigo anterior.

Fica claro que o legislador reformista julgou que, para se atingir a efetividade do processo, necessário se faria conceder ao juiz a faculdade de, em se deparando com o decurso do lapso temporal prescricional, declarar ipso facto a inexigibilidade do direito trazido à sua cognição.

A reforma processual, assim, alterou em profundidade a teoria geral do direito civil, ao modificar substancialmente o regime da prescrição, que é tema material, não processual, como já vimos. Afinal, se está assentado que a prescrição opera no plano da pretensão, encobrindo sua eficácia e tornando inexigível o direito, posto que superada a idéia de ataque à ação processual, sua discussão refoge à seara do direito instrumental.

A questão a ser debatida é: assiste razão ao legislador? Ou seja, é válida a mudança?

É o que veremos a seguir.

31.A prescrição e sua natureza jurídica de exceção

Afigura-se de patente evidência que a alteração legal sob exame atropelou o já sedimentado conceito doutrinário de que a prescrição é exceção, e que, como exceção, é uma faculdade que assiste a quem aproveita, podendo ser ou não exercida por ele.

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Essa nota distintiva da prescrição, não presente na decadência, que pode ser livremente apreciada pelo magistrado (por ser causa de extinção do direito em si) decorre de sua natureza jurídica e do fundamento que lhe caracteriza.

Vimos anteriormente que, desde o direito romano, entende-se que a prescrição não opera ipso facto, mas sim ope exceptionis.

Assim, como toda exceção, [19] tem de ser exercida pela parte beneficiária, que pode escolher livremente se irá opô-la ou não. Não se trata aqui, como bem fez ver Pontes de Miranda, de necessidade de argüição porque há previsão no rol daquilo que se há de alegar em juízo, mas sim de que, para que a exceção produza efeitos, é preciso que haja a suscitação por parte de quem a detém. [20]

Toca-se aqui característica imemorial do instituto, que pode parecer estranha se se crê que o fundamento da prescrição é o de prover uma sanção, pelo ordenamento jurídico, com o intuito de reprovar aquele que, tendo um determinado direito, não foi suficientemente diligente ao exercê-lo.

Seria, desta forma, a aplicação direta da velha parêmia latina segundo a qual o direito não socorre aos que dormem (dormientibus non sucurrit jus), tão cara à matéria possessória. Assim pareceu a vários juristas. [21]

Nesta ordem de idéias, se a prescrição é vista como uma sanção destinada a punir aquele que não exerceu seu direito, pouco sentido haveria em fazer dela uma exceção, recusando-se-lhe eficácia se o devedor não a opuser.

Ocorre que a doutrina mais atual já identificou a incorreção de tal premissa. A prescrição tem fundamento na segurança jurídica e na paz social, como um meio de proteger o pretenso devedor das dificuldades progressivas que o tempo impõe à viabilidade de provar a inexistência ou a satisfação do débito. [22]

Conseqüentemente, entendido assim o seu fundamento e sua razão de ser, faz todo o sentido a sua caracterização como exceção e, por decorrência, impõe-se uma regra jurídica como a positivada no art. 194 do Código Civil de 2002, ora revogado pela Lei 11.280/06.

Trata-se do espelho positivo da construção teórica anteriormente esboçada, que qualifica a prescrição como exceção e, de conseguinte, dependente do exercício por aquele a quem beneficia. Na ausência de previsão legal explícita, seria norma pressuposta, em decorrência da natureza jurídica do instituto.

Vale lembrar que a caracterização da prescrição como exceção, nos termos anteriormente expostos, longe está de ser uma peculiaridade isolada do direito brasileiro atual. Não se tem sob análise – muito pelo contrário – alguma excentricidade do sistema pátrio vigente, argumento que poderia robustecer o pleito de sua modificação.

Em verdade, a natureza excepcional da prescrição é uma concepção doutrinária profundamente arraigada em nossa trajetória jurídica. Observe-se que o Código Civil de 1916 a trazia expressa, em seu artigo 166, ainda mais rígido que o dispositivo estampado no art.194 da codificação de 2002, porquanto não mencionava nenhum favor aos incapazes ("Art. 166. O juiz não pode conhecer da prescrição de direitos patrimoniais, se não for invocada pelas partes.").

Retroagindo-se mais na linha histórica, vemos que esta era também a direção seguida pelo antigo direito luso-brasileiro. [23]

Na realidade, a norma prevista no art. 194 é decorrente da longa construção histórica do instituto da prescrição, e encontra-se presente não apenas na tradição de nosso direito, mas também na generalidade dos ordenamentos pertencentes à família romano-germânica, tanto nos Códigos, quanto nas lições doutrinárias, como uma rápida incursão comparatista pode indicar sem dificuldades.

Sem quaisquer pretensões de exaustão, pode-se apontar a presença do princípio em tela nos direitos português, [24] italiano [25], alemão, [26] francês [27], argentino [28] e espanhol. [29]

É, pois, uma decorrência lógica da sedimentação e evolução dos preceitos que regem a matéria nos sistemas que herdaram a tradição romanística.

E, por esta razão, espanta sobremaneira a intenção de extirpá-lo sem maior substrato científico do direito positivo, em meio à busca irrazoável por uma panacéia para a agilização processual.

Esqueceu-se o legislador, a uma, da relevância histórica do princípio para o direito brasileiro, que comina a solução oferecida de inegável nota de artificialidade, e, a duas, de que sua permanência no direito germânico ou francês, por exemplo, não dá azo a nenhuma relevante obstrução na máquina judicial.

Posta a questão nestes termos, avulta, indiscutivelmente, a ausência de acerto teórico na mudança legislativa empreendida, uma vez que restou descurado, de forma patente, o aspecto técnico que deveria presidir qualquer alteração legal.

3.2.Breve exame da constitucionalidade do art. 3º da Lei 11.280/03

De outra parte, cumpre observar que, no plano técnico, a reforma na sistemática prescricional ainda suscita interessante problema de ordem constitucional, que se faz oportuno enunciar, ainda que sem a possibilidade de uma incursão mais aprofundada.

Refere-se aqui à compatibilidade da normativa constitucional acerca da atividade econômica com a imposição [30] de declarar o juiz a prescrição de créditos patrimoniais disponíveis, subtraindo ao particular um direito subjetivo por cuja ineficácia a outra parte interessada não pugnou, embora pudesse fazê-lo.

Como se sabe, a Carta Magna de 1988 previu, logo em seu primeiro artigo, o valor social da livre iniciativa como um fundamento da República. Além disso, em seu art. 170, parágrafo único, garantiu a todos o exercício livre de qualquer atividade econômica, determinando, em seu artigo 174, que ao Estado compete intervir em tal seara como agente normativo e regulador.

Destes preceitos constitucionais decorre que existe uma garantia, em nosso ordenamento jurídico, ao livre exercício da atividade econômica, colocando-se o Estado não como um interventor direto na autonomia privada dos particulares, mas sim como um ente de regulação, para coibir abusos e evitar desequilíbrios; ao Poder Público incumbe "intervir nas relações interindividuais de forma a, pelo assegurar de valores mínimos de sã consciência, corrigir as conseqüências que a situação de desigualdade dos sujeitos acarreta". [31]

Em linha de conseqüência, existe uma diretriz programática do constituinte no que toca à atividade econômica, no sentido de reconhecer a liberdade dos particulares de livremente circular riquezas, escolhendo a forma de fazê-lo.

Essa liberdade é restringida pela intervenção estatal quando houver desequilíbrio entre as partes envolvidas na relação jurídica de direito privado, ou violação a regras ou princípios contidos no sistema; afora isso, têm os privados liberdade suficiente para juridicizar suas operações econômicas, sendo-lhes garantida a não-interferência estatal quando não estiverem presentes os pressupostos para autorizá-la (diferentemente do que se passa em um Estado de molde socialista, por exemplo, no qual existe um grau bem maior de penetração na esfera particular).

Desta forma, os critérios para valorar a legitimidade da intervenção nas relações patrimoniais privadas devem ser extraídos da Constituição Federal, a partir de seu art. 170. [32]

Não se trata de abraçar uma dogmática extremamente conservadora e advogar a já ultrapassada concepção da autonomia da vontade como um princípio ilimitado, mas sim de observar que não se admite, por parte do juiz, um "poder autoritário de modificação" de relações jurídicas de direito privado, dada a opção por meios legítimos para que essa intervenção se opere, como a boa-fé e a teoria da imprevisão. [33]

Resta claro, assim, que uma proposta de institucionalizar novas formas interventivas deve estar, antes de tudo, compatibilizada com a normativa constitucional acima mencionada, assim como estão compatibilizadas essas formas tradicionalmente admitidas.

Neste âmbito de observação, mostra-se de patente inconstitucionalidade a previsão legal no sentido de que o Estado possa, no exercício da função jurisdicional, negar ao particular a satisfação de um crédito patrimonial existente, válido e eficaz, exercendo e declarando uma exceção de direito material que o devedor escolheu por não opor e causando-lhe um prejuízo financeiro evidentemente imotivado.

Tem-se em situação como esta induvidosa quebra da imparcialidade da jurisdição, através de intervenção na atividade econômica que não se subsume às hipóteses de normatização e regulação.

Pelo contrário, o Poder Público aqui investe o seu agente judicante do dever de beneficiar uma das partes em detrimento da outra, desequilibrando a relação de direito material sem o pressuposto de uma efetiva nota de hipossuficiência, que poderia legitimar tal intervento. [34]

Trata-se, a nosso ver, de razão suficiente para viciar, por inconstitucionalidade, o dispositivo previsto no art. 3º, da Lei 11.280/06 – embora o tema ainda faça por reclamar uma análise mais detida.

3.3.O efeito prático da reforma

Indiscutivelmente, o fato de a alteração legislativa sob exame discrepar dos preceitos científicos que regem a matéria e ir de encontro à consolidada tradição de nosso direito e dos sistemas estrangeiros que têm a mesma origem dele, além de incidir em inconstitucionalidade, já seria motivo suficiente para se concluir pela inadequação do novo trato dispensado à prescrição pela Lei 11.280/06.

Ocorre, no entanto, que ainda é preciso indagar da efetividade prática da alteração proposta, e também aí a mesma não colhe melhores resultados.

Com efeito, não há motivos concretos para se considerar a impossibilidade de declaração ex officio da prescrição como uma causa de retardamento do andamento do processo civil.

Seria, por exemplo, se o crédito prescrito não pudesse ser executado após a sentença, o que significaria que toda a fase de cognição restaria inutilizada; no entanto, já vimos que, sem a alegação da prescrição, não há qualquer afetação na estrutura do direito de crédito, que remanesce existente, válido e eficaz, salvo a superveniência de outra causa modificativa ou extintiva.

Assim, o resultado do processo, se a parte não alega a prescrição que lhe aproveita, é atingido da mesma forma, com o reconhecimento e satisfação de um direito a quem realmente o tem, posto que a prescrição não opera automaticamente e por isso o débito permanece com todos os seus elementos intocados.

Mesmo se argumentando que a possibilidade de vir a ser a prescrição alegada a qualquer tempo, sem que possa ser antes suprida pelo juiz, gere risco de desnecessário dispêndio de atividade jurisdicional (por exemplo, se a parte só o faz perante o tribunal de apelação), fato é que esse dispêndio ocorre apenas por desconhecimento ou desatenção do beneficiado, o qual, as mais das vezes, só não oporá imediatamente a exceção de prescrição se não perceber que dela dispõe, por uma razão muito simples: arcará com as despesas oriundas do retardamento se não a opuser na primeira oportunidade (CPC, 267, §3º).

Quer-se com isso dizer, em termos mais claros, que não há interesse concreto, para a parte demandada, em protelar o desfecho do processo que poderia obter imediatamente, através da suscitação da prescrição que lhe beneficia.

Verifica-se, portanto, sem muitas dificuldades, que a vedação à declaração de ofício da prescrição não é, em si, um fator impeditivo da celeridade processual.

Por outra parte, ainda que se fundamentasse o câmbio legislativo na intenção de proibir o locupletamento do credor da dívida prescrita (o que já desbordaria da finalidade precípua da reforma processual, por não ter como objeto uma melhora no plano do processo), certo é que se estaria seguindo em sentido contrário aos argumentos doutrinários que esteiam a prescrição.

Afinal, conforme visto anteriormente, não reside esta em sanção ao credor, mas sim em erigir faculdade protetiva do devedor, que como faculdade, a ele compete escolher se exercerá ou não, em seu próprio benefício. Logo, não há locupletamento, pelo contrário.

Enfim, quer do ponto de vista da melhor técnica jurídica, flagrantemente violada pela nova redação do art. 219, §5º, do Código de Processo Civil, quer sob uma ótica unicamente pragmática e sequiosa de resultados, resta claro que a alteração legal promovida é absolutamente infeliz e impertinente, merecendo as reprovações cabíveis.

Acresça-se, entretanto, uma observação curiosa a seu respeito. É que o Governo Federal, ao propor a reforma na matéria prescricional, através da Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, parece ter efetuado, inconscientemente, um disparo contra a própria face.

Esta é a única conclusão possível quando se atenta a que a nova redação do art. 219, §5º, de par com a revogação do art. 194 do Código Civil, irá fornecer os instrumentos necessários para a declaração de ofício da prescrição nos feitos executivos fiscais, afetando diretamente a exação federal, estadual e municipal, mediante a extinção de plano de grande número de processos em que o prazo qüinqüenal já se esgotou, mas o contribuinte não pugnou pela decretação prescricional.

Isto porque, inobstante o Código Tributário Nacional afirmar que a prescrição extingue o crédito fiscal, em seu art. 156, V, pacificou-se a jurisprudência no sentido de que, por obra do art. 219, §5º, do diploma instrumental, conjugado com o art. 194, do Código Civil (e anteriormente com o art. 166 do Código de 1916), não poderia a prescrição ser acolhida sem provocação do interessado, por se tratar de crédito patrimonial. [35]

Sem essas garantias legais, nada mais há no sistema que impeça ao magistrado extinguir um processo de execução fiscal mesmo sem que o contribuinte o requeira, e pode-se imaginar o que isso representará em termos de créditos tributários evaporando-se a partir da vigência da Lei 11.280/06.

Será de resto deveras interessante observar como fará a Fazenda Pública para resguardar seus interesses neste particular.

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Sobre o autor
Roberto Paulino de Albuquerque Júnior

Doutor e mestre em direito pela Faculdade de Direito do Recife - Universidade Federal de Pernambuco. Professor adjunto de direito civil da Faculdade de Direito do Recife. Professor de direito civil da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade Marista do Recife. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino. Reflexões iniciais sobre um profundo equívoco legislativo.: Ou de como o art. 3º da Lei nº 11.280/06 subverteu de forma atécnica e desnecessária a estrutura da prescrição no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1059, 26 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8455. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado na Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 25, jan./mar. 2006, pp. 280-296.

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