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Educação à luz do Direito

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17/06/2006 às 00:00
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CAPÍTULO III

FONTES DE DIREITO E DO DIREITO EDUCACIONAL

            Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Fontes formais do direito; 2.1. Lei; 2.2. Costumes;2.3. Jurisprudência; 2.4. Doutrina; 3. Princípios do direito.

            Pretende-se neste capítulo delimitar o quadro científico do direito educacional, tendo como base as variáveis de fonte do direito e de princípios do direito. A propósito, como leciona Tércio Sampaio de Ferraz Junior, "a teoria das fontes do direito pode ser considerada a base de todos os estudos jurídicos" [112] (grifos nossos). Contudo, o nosso objetivo neste capítulo não se esgota nas variáveis das fontes tradicionais do direito (leis, costumes, jurisprudência e doutrina). Pelo contrário, ao contextualizarmos e exemplificarmos a discussão sobre os princípios do direito, vamos adotar a tendência atual de considerar os princípios como normas jurídicas. Aqui, em relação ao direito educacional, os princípios da educação e do ensino, como veremos, assumiram funções normativas e específicas com o advento da Constituição de 1988 e da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

            1. Considerações iniciais

            A expressão fonte deriva de uma metáfora, designando-se por fonte do direito a origem, a proveniência, a nascente de que promana. Fonte de um rio, de um veio d´água, fonte da norma jurídica. Todavia, a expressão fonte aplicada ao direito e à regra jurídica não significa apenas nascedouro, procedência, ou órgão que emana. Indica, igualmente, as formas de que se recobre o preceito, porque o preceito assume diferentes aspectos exteriores, revestindo-se de roupagens diversas, que variam segundo sua natureza e segundo a própria fonte, isto é, segundo sua proveniência, derivando de tal ou qual órgão. Esse é o entendimento do professor Benjamim de Oliveira Filho. [113]

            Fonte do direito, de um lado, seria a origem primária do direito, confundindo-se com o problema da gênese do direito e dos elementos que emergem da própria realidade social e dos valores que inspiram o ordenamento jurídico. [114] De outro lado, fonte, do direito são as manifestações, os modos, as várias maneiras pelas quais se declara, ou se manifesta a regra jurídica e essas próprias formas estão intimamente ligadas aos órgãos de expressão do direito. Este é o conceito de fontes formais. [115] Nesta acepção, enquadra-se, de certa forma, a fonte formal da teoria tradicional, que é a idônea para produzir norma jurídica, ou seja, a que é constituída pelos elementos que, na ordenação jurídica, servem de fundamento para dizer qual é o direito vigente. [116] A propósito, uma norma de conduta só se eleva à categoria do jurídico, considerando o direito como direito positivo, quando pode se prevalecer de determinada origem, de que provém, identificando-se com uma das fontes autorizadas do direito e revestindo determinada forma específica, pela qual se manifesta ou se exprime a regra jurídica. [117]

            Cuidaremos das fontes formais do direito que, segundo a clássica concepção, são a lei, o costume, a jurisprudência e a doutrina. No que diz respeito ao direito educacional o objetivo é tornar este novo ramo do direito mais vinculado à ciência e à dogmática jurídica, embora reconhecendo que ele possui suas próprias fontes.

            2. Fontes formais do direito

            2.1. Lei

            No caso brasileiro, a principal fonte do direito é a lei. A palavra lei pode significar tanto a norma geral emanada do Poder Legislativo, como qualquer norma de direito escrito, desde a Constituição até um decreto regulamentar ou mesmo decreto individualizado. [118] A forma escrita é a manifestação mais característica da lei.

            Além disso, a lei é obra do legislador, que, nos Estados modernos, é geralmente uma ou mais assembléias deliberativas de caráter democrático, porque decorrentes de eleição popular. Outros sistemas, que ignoram o processo liberal da separação dos poderes, tiveram como legislador ou poder legislativo a mesma figura do detentor do poder executivo ou uma elite aristocrática. Há, ainda, a possibilidade historicamente concreta da deliberação legislativa direta ou exercida diretamente pelo povo nos sistemas de democracia direta, tais como as cidades gregas ou a Roma republicana. Uma fórmula intermediária entre a democracia direta antiga e a moderna democracia representativa, segundo A. L. Machado Neto, são as formas de controle direto da atividade legislativa utilizadas em algumas democracias representativas, tais como o mandato imperativo, o referendum, a iniciativa popular e o recall. [119]

            Já Benjamim de Oliveira sustenta que o império avassalador da lei aconselharia e justificaria o ius scriptum, o direito legislado. São as condições naturais ou artificiais da vida moderna que vão tornando indispensável a aplicação desses meios, e o próprio abuso deles, como conseqüência da centralização sempre crescente. [120]

            Miguel Reale, reconhecendo os freqüentes equívocos que rondam a palavra "lei", sustenta que, nos domínios do direito, se emprega o termo lei quando o que se quer significar é uma regra ou um conjunto ordenado de regras. Porém, para que se possa empregar com rigor o termo lei, não basta que haja norma ou um sistema de normas escritas, pois escritas são também as normas dos regulamentos, decretos, resoluções, portarias, avisos etc. A lei, no sentido técnico desta palavra, só existe quando a norma escrita é constituída de direito ou, esclarecendo melhor, quando ela introduz algo de novo com caráter obrigatório no sistema jurídico em vigor, disciplinando comportamentos individuais ou atividades públicas. Nesse quadro, somente a lei, em seu sentido próprio, é capaz de inovar no direito já existente, isto é, de conferir, de maneira originária, pelo simples fato de sua publicação e vigência, direitos e deveres a que todos devemos respeito. [121] Entretanto, nesse contexto e em relação às fontes do direito educacional, Edivaldo Boaventura argumenta o seguinte:

            "Para um país, como o Brasil, perfilado na tradição romanística, a legislação é a fonte principal do direito. Interessa o conceito de legislação como conjunto das leis que regulam particularmente uma certa matéria, para Caldas Aulete, que fornece como exemplos legislação militar e legislação escolar, legislação educacional ou legislação de ensino. É a legislação, portanto, uma das expressões mais fortes e mais importantes do direito. Em educação, a legislação apresenta-se dispersa e distribuída pelas esferas: União, Estados, Distrito Federal e Município."

[122]

            Na mesma direção da legislação inserida no contexto jurídico-pedagógico, Lourival Vilanova afirma:

            "A legislação sobre matéria educacional dispersa-se em vários planos do ordenamento: está em nível constitucional, em nível de lei ordinária (e atos normativos à lei equiparados), em decretos e regulamentos; inclusive, atualmente, em outros níveis normativos, cujas fontes são órgãos não propriamente legislativos (órgãos consultivos com funções também normativas) e órgãos estritamente jurisdicionais."

[123]

            Igualmente, o professor Álvaro de Melo Filho assim se expressa:

            "Nesse momento, a atividade educacional, dentre outras, passou a chamar a atenção dos juristas e a despertar no legislador um interesse para disciplinar com normas jurídicas as várias e numerosas manifestações e relações decorrentes da educação. Convém aduzir que, nesse tocante, a legislação sobre matéria educacional espraia-se e dispersa-se em vários planos do ordenamento jurídico. Assim é que existem normas educacionais em nível constitucional, em nível de lei ordinária, em decretos e regulamentos e até em outros níveis através de órgãos normativos e jurisdicionais."

[124]

            A legislação em sentido amplo, na síntese de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, "é o modo de formação de normas jurídicas por meio de atos competentes". A expressão abrange desde a Constituição e as leis complementares até as leis ordinárias, conforme as categorias de processo legislativo estabelecidas pela própria Lei Maior. Este autor detalha a fonte legislativa em Constituição, leis decretos, regulamentos, portarias e fontes legais, esquema que se ajusta perfeitamente ao ordenamento jurídico educacional, dada a importância e volume das normas legais, principalmente de decretos, portarias, resoluções, deliberações e pareceres normativos. [125] A fonte primeira e fundamental do direito educacional brasileiro está na Constituição Federal. [126]

            A atual Constituição, em vigor desde 1988, insere no Título VIII, da Ordem Social, o Capítulo III, intitulado Da Educação, da Cultura e do Desporto, com uma soma de dez artigos dedicados à educação (arts. 205 a 214), com os princípios do direito educacional. É oportuno, como leciona Edivaldo Boaventura, ressaltar que o art. 205 define a educação como direito de todos e dever do Estado, para depois, nos artigos subseqüentes, restringir tão somente à educação escolarizada. [127] Outras disposições constitucionais estabelecem princípios, garantias, responsabilidade do poder público no caso do não oferecimento do ensino fundamental obrigatório e gratuito, ditam padrões de organização dos sistemas federal, estadual e municipal e dos níveis de ensino, procedem às indicações para o currículo, discriminam e distribuem recursos financeiros. Ademais, encontram-se, sobre o mesmo assunto, referências esparsas no texto, tanto na Carta propriamente dita, quando no Ato das Disposições Transitórias, dos direitos e deveres da família, da criança, do adolescente e do idoso; do uso de recursos públicos no combate ao analfabetismo, dos serviços nacionais de aprendizagem etc. [128]

            Além disso, vale lembrar que, dentre as muitas leis que fluem da Constituição em direção ao ordenamento jurídico-educacional, sobressaem as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Neste caso, como legislação ordinária e segunda fonte principal do direito educacional brasileiro, esta legislação estrutura a administração, declara princípios e procedimentos, como também regulamenta o currículo, o ano escolar, os conteúdos programáticos e a duração dos cursos. [129]

            No sentido amplo, como advoga Edivaldo Boaventura, o direito educacional inclui várias outras legislações educacionais: decretos, portarias, regimento escolar – inclui, além disso, e embora se situem no âmbito do direito internacional, os tratados e convenções internacionais, como as recomendações da UNESCO e do BIE (Bureau Internacional de Educação). [130]

            Merece destaque o decreto, que é ato administrativo da competência exclusiva do chefe do Executivo federal, estadual ou municipal, destinado a prover uma situação geral ou individual. A propósito, há decretos que são regulamentos de leis. [131] A portaria, pela sua freqüência na administração educacional – enfatiza Edivaldo Boaventura –, enseja uma referência especial. [132] Hely Lopes Meirelles concebe portarias como "atos administrativos internos, pelos quais os chefes de órgãos, repartições ou serviços expedem determinações gerais ou especiais e designam servidores para unções e cargos secundários". [133] Como ato administrativo ordinário, disciplina o funcionamento da administração e a conduta funcional de seus agentes. O secretário estadual de Educação, por exemplo, freqüentemente movimenta pessoal docente e administrativo por meio de portarias. [134]

            Na enumeração das categorias da legislação como fonte do direito educacional, o regimento escolar também merece especial destaque. No setor educacional, cada escola ou grupo de estabelecimentos deve possuir o seu regimento. Tradicionalmente, o regimento é definido como a "lei da casa": o regimento é a lei escolar, é um ato administrativo normativo que regula a atividade interna da instituição educacional. [135]

            Seguindo a sistemática de apresentação das fontes de direito, há os tratados e as convenções internacionais. Os tratados são celebrados entre nações, e as convenções, no âmbito dos organismos internacionais. No particular da internacionalização do direito à educação, sobressai a Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris, em 10 de dezembro de 1948, que, numa resolução importante e histórica da 3ª sessão ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, inclui no seu texto a universalização desse direito:

            "Artigo XXVI

            1. Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a educação superior, esta baseada no mérito.

            2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

            3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos."

[136]

            Nesse sentido, é oportuno destacar algumas recentes recomendações da comissão internacional sobre educação para o século XXI, contidas no relatório para a UNESCO:

            "… As sociedades, as relações entre os indivíduos, entre estes últimos e as instituições, entre diversos grupos e entre nações tornam-se cada vez mais complexas. Um nível inicial de educação cada vez mais elevado e uma educação constantemente renovada e completada no decorrer da vida passaram a constituir necessidade absoluta para todos os seres humanos, a fim de que eles possam levar os inúmeros novos desafios e evitar cair numa situação sem identidade e objetivos claros."

[137]

            "A educação básica é um problema que se põe, naturalmente, a todos os países, até mesmo às nações industrializadas. Logo a partir desta fase da educação, os conteúdos devem desenvolver o gosto por aprender, a sede e a alegria de conhecer e, portanto, o desejo e as possibilidades de ter acesso, mais tarde, à educação ao longo de toda a vida." [138]

            "A educação pode ser um fator de coesão, se procurar ter em conta a diversidade dos indivíduos e dos grupos humanos, evitando tornar-se um fator de exclusão social. O respeito pela diversidade e pela especificidade dos indivíduos constitui, de fato, um princípio fundamental, que deve levar à proscrição de qualquer forma de ensino escolarizado. Os sistemas educacionais formais são, muitas vezes, acusados, e com razão, de limitar a realização pessoal, impondo a todas as crianças o mesmo modelo cultural e intelectual, sem ter em conta a diversidade dos talentos individuais." [139]

            Para Bronislaw Geremek, o século XX termina com uma evidência um tanto amarga: as esperanças surgidas em 1990 foram vãs, e o notável progresso tecnológico e científico que assinalou este século não trouxe mais equilíbrio entre o homem e a natureza, nem mais harmonia entre os homens. Ao alvorecer de um novo século, é preciso definir os desafios e tensões atuais, a fim de propor uma orientação para a educação e estratégias educativas. É nesta perspectiva que a coesão social aparece como uma das finalidades da educação. [140] Bronislaw ainda acrescenta:

            "Se a educação tem um papel determinante na luta contra a exclusão dos que, por razões sócio-econômicas ou culturais, se encontram marginalizados nas sociedades contemporâneas, parece ter um papel ainda maior na inserção das minorias na sociedade. As normas jurídicas relativas ao estudo das minorias já existem e aguardam aplicação, mas o problema é mais de psicologia social do que legal. Para alterar as atitudes coletivas em relação à autoridade, devia haver um esforço educativo conjunto do Estado e da sociedade civil, dos meios de comunicação social e das comunidades religiosas, da família e das associações, mas também – e antes de tudo – das escolas."

[141]

            Por fim, segundo o membro da comissão internacional sobre educação para o século XXI, o ensino ao longo de toda a vida opõe-se, naturalmente, à mais dolorosa das exclusões – a exclusão devido à ignorância. As mudanças operadas a nível das tecnologias da informação e da comunicação – a que também se dá o nome de revolução informática – agravam, ainda mais, o perigo e atribuem ao ensino um papel crucial na perspectiva do século XXI. [142]

            Outra fonte peculiar ao direito educacional, nas palavras de Edivaldo Boaventura, são os atos emanados do poder normativo dos Conselhos de Educação, que assumem a forma de resoluções, deliberações e pareceres normativos. [143] Para Hely Lopes Meirelles, as resoluções são atos administrativos normativos expedidos pelas altas autoridades do Executivo – mas não pelo chefe do Executivo, que só deve expedir decretos –, ou pelos presidentes de tribunais, órgãos legislativos e colegiados administrativos, para disciplinar matéria de sua competência específica. Prossegue, ainda, Hely Lopes Meirelles:

            "As resoluções, normativas ou individuais, são sempre atos inferiores ao regulamento e ao regimento, não podendo inová-los ou contrariá-los, mas unicamente completá-los e explicá-los. Seus efeitos podem ser internos ou externos, conforme o campo de atuação da norma ou os destinatários da providência concreta."

[144]

            As resoluções dos conselhos, como leciona Edivaldo Boaventura, têm largo emprego no direito educacional. [145] Da mesma forma, as deliberações também são "atos administrativos normativos ou decisórios emanados de órgãos colegiados". Neste caso, as decisões dos conselhos, como fonte do direito educacional, tomam forma de deliberação, ou seja, as decisões revestem-se da forma de resolução, ou de parecer normativo, quando o ato é originário de câmara ou comissão dos Conselhos de Educação. [146]

            O parecer normativo, diferentemente do mero parecer técnico administrativo, "ao ser aprovado pela autoridade competente, é convertido em norma de procedimento interno, tornando-se impositivo e vinculante para todos os órgãos hierarquizados à autoridade que o aprovou". Esta é a conceituação de Hely Lopes Meirelles. [147]

            Em suma, dentro da categoria legislação educacional como fonte do direito educacional, temos que considerar a Constituição; as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; decretos, regulamentos, regimentos e portarias; tratados e convenções internacionais; resoluções e pareceres normativos dos conselhos de educação; e regimentos escolares. Acrescente-se, ainda, a existência de um anteprojeto de Consolidação da Legislação Educacional brasileira em complementação à Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, visando sistematizar formalmente as leis existentes sobre matéria educacional no país. O projeto não incorpora a LDB, mas identifica os dispositivos considerados repetitivos, conflitantes, inconstitucionais ou ininteligíveis, tudo voltado para o enxugamento legislativo com racional diminuição de artigos de leis. [148] Além disso, a Câmara dos Deputados já aprovou o Projeto de Lei nº 4.173, que define o Plano Nacional de Educação, constituindo uma lei complementar à LDB.

            2.2. Costumes

            Podemos definir os costumes como sendo normas de conduta observadas pelo povo em caráter reiterado e uniforme, em razão da consciência jurídica de sua necessidade. [149]

            O costume é a grande fonte primitiva do direito, a mais espontânea, em certo sentido, e também a mais natural, ou normal. Aliás, leciona Benjamim de Oliveira que, sem negar a precedência histórica do costume, poder-se-á dizer que costume e lei são formas fundamentais do direito, e, por conseqüência, suas fontes primárias. [150] Da mesma forma, Caio Mário da Silva Pereira nos ensina que os costumes são a forma primeira de elaboração da norma jurídica: quando um grupo social adota uma prática reiterada de agir, sua repetição constante a transforma em regra de comportamento, que o tempo consolida em princípio de direito. [151]

            Contudo, é oportuno destacar duas situações de ordem prática epistemológica no que diz respeito aos costumes como fonte do direito. Em primeiro lugar, como já observamos, há dois tipos de ordenamento jurídico: o da tradição romanística (Civil Law) e o da tradição anglo-americana (Common Law). Aquele caracteriza-se pelo fato de considerar a lei como única expressão autêntica da nação e da vontade geral. Este último, prioriza a tradição, os usos e costumes como fonte do direito. Observando esses pressupostos, adverte Miguel Reale:

            "Termos, pois, dois grandes sistemas de Direito no mundo ocidental, correspondentes a duas experiências culturais distintas, resultantes de múltiplos fatores, sobretudo de ordem histórica. O confronto entre um e outro sistema tem sido extremamente fecundo, inclusive por demonstrar que, nessa matéria, o que prevalece para explicar o primado desta ou daquela fonte de direito não são razões abstratas de ordem lógica, mas apenas motivos de natureza social e histórica."

[152]

            Há também uma força maior de direito costumeiro em certos ramos ou para a solução de determinados problemas, como é o caso do direito comercial e do direito internacional, enquanto em outros ramos do direito, como o direito civil e o direito penal, por exemplo, o papel do costume é relativamente limitado. Nesse sentido, John Gilissen, em sua obra Introdução histórica do direito, leciona:

            "as codificações da época revolucionária e napoleônica derrogaram os costumes antes observados nesta matéria, à excepção de algumas questões não resolvidas pelos novos códigos ou pelas leis posteriores; como as disposições legislativas são precisas e numerosas nestas Matérias e como, sobretudo em direito penal, só o legislador pode erigir um facto em infracção (

nullum crimen sine lege), não há a possibilidade de surgirem muitos costumes novos." [153]

            Já Miguel Reale, partindo da distinção entre direito público e direito privado, sustenta o seguinte:

            "podemos dizer que no Direito Público os costumes desempenham papel mais relevante. Em algumas nações, o Direito Público é, todo ele, no que tem de essencial de natureza consuetudinária. A Inglaterra, por exemplo, formou as bases do seu regime parlamentar tão-somente à luz de um comportamento político que foi se consolidando através do tempo e se transformando em uma consciência social muito viva, com maior capacidade de atuação do que as leis propriamente ditas (…) No Direito Administrativo anglo-americano também as regras costumeiras têm importância fundamental."

[154]

            Os Estados Unidos da América coincidem com a Inglaterra [155] apenas no tocante ao direito privado, pois no plano do direito constitucional nos oferecem o mais notável exemplo de Constituição rígida, só suscetível de emendas através de múltiplas exigências e cautelas que envolvem todo o sistema federativo.

            Como adverte Miguel Reale, as referências jurídicas inglesa e norte-americana bastam para demonstrar que, em matéria de fontes, não podem prevalecer esquemas abstratos ou puramente lógicos. Não se pode falar em primado da lei ou do costume, a não ser em função de distintos ciclos históricos, havendo variações notáveis dentro de um mesmo país, com relação a esta ou aquela outra parte do direito. [156]

            Acrescente-se, que o contraste ou confronto entre as duas tradições, Civil Law e Common Law, embora em alguns casos propiciando pontos de encontro, não é apenas um problema de ordem jurídica, muito pelo contrário. Segundo Edivaldo Boaventura, diferenciação bem mais profunda emana dos fundamentos filosóficos e da metodologia. O modo de pensar indutivo-empírico informa o sistema Common Law, da mesma maneira que o dedutivo-teórico estrutura racionalmente o sistema Civil Law. Neste caso, ambas as maneiras de pensar adotadas pelos diferentes grupos sociais refletem-se na educação dos profissionais. A propósito, Edivaldo Boaventura prescreve o seguinte:

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            "Os formados pelas Faculdades de Direito norte-americanas tendem a pensar segundo o modo empírico-indutivo, contrastando com aqueles que se diplomam nas faculdades de Direito da Alemanha, da França e mesmo do Brasil, que seguem o raciocínio predominantemente dedutivo. As conseqüências para a formação são bem diferentes. Nos países da lei-código, o Direito é exposto geralmente em aulas-conferências."

[157]

            Nesse contexto, pode-se compreender a relevância dos costumes como fonte do direito educacional, no ramo do direito público. De certo modo, os costumes preenchem as possíveis omissões, lacunas ou ausência de legislação educacional, até porque trata-se de um ramo novo do direito ou da ciência jurídica. Além disso, há legislações esparsas, às vezes conflitantes e repetitivas, na área educacional que justificam a importância do costume como fonte do direito educacional.

            No direito educacional, adverte Edivaldo Boaventura, estão presente vários costumes, por exemplo, o pedido de revisão de prova e de exame pelo próprio aluno; os conteúdos mínimos para o ensino fundamental; os indicadores para currículo. [158] É oportuno enfatizar que alguns desses costumes já foram incorporados na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394, de 26 de dezembro de 1996).

            Vê-se, então, que o costume e a lei são formas de expressão do direito educacional. A lei seria a forma fundamental e o costume uma das formas complementares, que se costuma acrescentar à jurisprudência, à doutrina e aos princípios gerais do direito.

            2.3. Jurisprudência

            Seguindo a sistemática de apresentação das fontes de direito, temos o termo jurisprudência com, pelo menos, dois sentidos fundamentais. Num deles, ela é sinônimo de ciência do direito ou de dogmática jurídica. Num segundo e mais freqüente sentido, a palavra jurisprudência refere-se à reiterada repetição de uma dada solução judicial de casos análogos. [159] É obvio, como leciona Machado Neto, que apenas nesse último sentido pode-se entender a jurisprudência como fonte do direito. [160]

            Dentre as fontes do direito, a jurisprudência tem muito de semelhante ao costume – alguns autores chegam a identificá-la como costume jurisprudencial. [161] Todavia, há características de um e de outra que bem podem distinguir costume e jurisprudência. Os pontos cruciais desta distinção, conforme os ensinamentos do jurista já mencionado, são os seguintes:

            a) O costume é obra de todos os membros da coletividade, enquanto a jurisprudência o é de um setor definido da comunidade – os juízes e tribunais;

            b) o costume nasce espontaneamente no exercício de direitos e deveres, ao passo que a jurisprudência ocorre apenas como conseqüência dos casos em conflito;

            c) o costume é espontâneo, como vimos acima, enquanto a jurisprudência é reflexiva, por nascer do pensamento e, pois, da reflexão sistemática dos julgadores, ou seja, especialistas;

            d) finalmente, o núcleo de identidade se acha, no costume, apenas dado no conjunto das condutas concordantes, apenas vivido, pois; ao contrário, na jurisprudência ele se acha também pensado, refletido. [162]

            A inclusão da jurisprudência como uma verdadeira espécie de costume deve-se à escola histórica do direito, cujas expressões máximas são Savigny e seu discípulo Puchta. No campo do direito científico, o realçamento da importância do costume como forma de expressão do direito positivo deve-se, também, a esses cientistas do direito. Expressão do direito positivo porque os especialistas, jurisconsultos, integradores, por assim dizer, de uma elite de conhecedores dos problemas jurídicos, ao emitirem suas opiniões, como que representam a consciência popular, em meio à qual se formou a sua mentalidade jurídica. [163] Na obra clássica A vida do direito e a inutilidade das leis, Jean Cruet destacou o valor da jurisprudência:

            "A jurisprudência evolui contra a lei, porém, com a finalidade de aprimorá-la, porque todo o corpo de direito, por si mesmo, tende a não evoluir, mas a consolidar-se. (…) É preciso, então, que a jurisprudência, tendo evoluído contra a lei, continue a evoluir contra si mesma. (…) A jurisprudência assegura o progresso do direito fora da lei ou contra ela, daí devemos procurar os meios de transformar o direito fora da jurisprudência e contra ela. E pois que não é o direito que faz viver a sociedade, é preciso que a sociedade faça viver o seu direito, quebrando ou alargando a carapaça legal ou jurisprudencial que lhe comprime o livre vôo. Muita anarquia é a desordem, mas um pouco de anarquia é o progresso."

[164]

            Contudo, a história da evolução da jurisprudência no decurso dos últimos cento e cinqüenta anos não foi ainda suficiente descrita. Podemos verificar que os tribunais se mostram ora demasiadamente tímidos e conservadores ora muito ousados, como afirma John Gilissen, em sua obra Introdução histórica do direito. [165] Ademais, como já vimos, os sistemas de direito da família romano-germânica são sistemas fechados, enquanto a Common Law é um sistema aberto, onde novas regras são continuamente reveladas. [166] No caso brasileiro, que adotou sistema romano-germânico (Civil Law), a jurisprudência tem um sentido específico. Não se trata de proferir normas gerais e obrigatórias, mas significa a maneira uniforme e constante pela qual juízes e tribunais, especialmente os tribunais, interpretam e aplicam o direito. [167] No ordenamento jurídico nacional se percebe a crescente importância dos tribunais e dos órgãos administrativos superiores no desenvolvimento da vida jurídica.

            Para Miguel Reale, já se pode considerar superada a dúvida sobre se a jurisprudência é ou não "fonte de direito", desde que se passou a uma compreensão mais ampla e abrangente de "ordenamento jurídico". Este, na realidade, não se reduz mais a um puro sistema de normas legais, completado, no máximo, por um corpo de normas costumeiras, reservando-se à jurisprudência e à doutrina uma função acessória. [168]

            Dentro as fontes do direito, a jurisprudência tem papel marcante, eis que representa a imagem viva da interpretação dos frios textos da lei. Conceitualmente, jurisprudência é um conjunto de solução dadas pelos tribunais superiores à questão de direito; interpretação reiterada que os tribunais dão às leis, nos casos concretos submetidos ao seu julgamento. [169] Por sua vez, Edivaldo Boaventura, explica que, além da legislação, a jurisprudência é um outro modo de criação de normas. Como é notório, a atividade dos juízes e tribunais na aplicação do direito positivo, quando repetida no mesmo sentido, forma jurisprudência, que é, assim, a repetição uniforme que os tribunais dão à lei, nos casos concretos submetidos ao seu julgamento. [170]

            O direito educacional no Brasil tem na jurisprudência uma das suas principais fontes, uma vez que os conflitos jus-pedagógicos vêm marcando as relações entre governos, alunos e estabelecimentos de ensino. [171] No entanto, quando da aplicação do direito no campo da educação, surge a primeira indagação, que consiste em saber como aplicar o direito educacional para melhor conhecer-se o entendimento dos tribunais e da jurisprudência, e desta extrair maior aproximação com a ciência do direito e com a realidade no campo jurídico-educacional.

            As fontes jurisprudenciais do direito educacional estão presentes nas decisões dos tribunais, ou seja, na esfera jurídica com os acórdãos e as súmulas, também chamadas de enunciados. Igualmente, nas decisões dos colegiados (Conselhos de Educação), no campo administrativo com os pareceres das entidades educacionais que têm força de jurisprudência (jurisprudência administrativa). A propósito, segundo João Roberto Moreira Alves, o Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação iniciou um trabalho de Súmulas da Jurisprudência predominante no antigo Conselho Federal de Educação. [172] Salientando a importância da jurisprudência para o direito educacional, o presidente do Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação explica o seguinte:

            "Nas decisões, sejam de cunho administrativo, sejam de cunho judiciário, o Direito Educacional está sempre presente. Assim demonstra a importância da jurisprudências administrativas (Conselhos de Educação) e judiciária (Poder Judiciário), pois nos possibilita analisar por outro ângulo, o do julgador, o entendimento de algumas questões controvertidas e a possibilidade de um favorável deslinde ao caso estudado."

[173]

            Quanto à jurisprudência administrativa, podemos destacar dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, os conselhos de educação como fonte do direito educacional. Em segundo lugar, a atuação dos colegiados superiores das universidades, das procuradorias e consultorias jurídicas do Ministério da Educação, das Secretarias de Educação e organismos outros que prestam serviço jurídicos às instituições oficiais de ensino. Estas entidades, conhecedoras dos problemas nas relações entre Estado, alunos e estabelecimentos de ensino, elucidam as práticas e os costumes no campo da educação. [174]

            Já a jurisprudência dos tribunais, no que concerne à matéria educacional, tem colaborado para estabelecer contornos e precisões, fornecendo mais segurança e definição às situações educacionais. [175] Em nosso país, segundo a professora Salete Maria Maccalóz, alcançaremos, com almejada eficiência, os ideais de celeridade e presteza da Justiça se nossa jurisprudência voltar-se, com mais extensão e profundidade, para os princípios gerais do direito, que dão muito maior e melhor flexibilidade aos enunciados de interpretação da lei. [176]

            Para o educador e consultor jurídico na área educacional, Elias de Oliveira Motta:

            "Nos últimos anos, tem-se formado extensa jurisprudência de Direito Educacional nas várias instâncias do Poder Judiciário, inclusive no Supremo Tribunal Federal, onde existem vários acórdãos, especialmente sobre as Medidas Provisórias editadas pelo Poder Executivo Federal nos últimos três anos, que foram alvo de diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (impetradas principalmente pela COFENEN e por partidos políticos). Dispunham essas Medidas Provisórias sobre mensalidades escolares, inadimplência de aluno e pais de aluno, punições pedagógicas e administrativas, Conselho Nacional de Educação, avaliação das instituições de ensino superior, eleição de reitores das universidades públicas, etc."

[177]

            Enfim, a jurisprudência se constitui em fonte importante para o direito educacional. Ela se tem mostrado indispensável, especialmente sua ação, que é poderosa para o progresso da ciência do direito educacional e da sociedade. Além disso, os conflitos entre Estado, alunos e instituições de ensino estão exigindo a participação efetiva do Poder Judiciário. [178]

            2.4. Doutrina

            Nessa linha das fontes do direito, temos a doutrina. Neste caso, surge a indagação, questão bastante controvertida, se a doutrina constitui ou não uma fonte jurídica, [179] muito embora, o fato de ser ou não ser fonte do direito não retira da doutrina a sua importância como fonte inspiradora para o juiz na aplicação da lei, como do próprio legislador na elaboração das normas.

            Muitos autores há que excluem a doutrina como fonte do direito, alegando que, por maior que seja a dignidade de um mestre e por mais alto que seja o prestígio intelectual de um jurisconsulto, os seus ensinamentos jamais terão força bastante para revelar a norma jurídica positiva que deva ser cumprida pelos juízes ou pelas partes. [180] Historicamente, no entanto, tempo houve em que a doutrina teve mais força do que hoje. Isso se deu quando numerosos imperadores romanos atribuíram força de lei aos pareceres doutrinários ou às obras teóricas e didáticas dos grandes jurisconsultos romanos da época, ou quando legislações medievais e modernas admitiram expressamente como fontes subsidiárias a obra de algum famoso glosador medieval, tal como ocorreu em relação a Bátolo e Acúrsio nas Ordenações Afonsinas. [181] Para Benjamim de Oliveira, a doutrina não é mais, nem pode ser fonte formal do direito. Não tem, manifestamente, essa qualidade. [182] Miguel Reale, da mesma forma, não reconhece doutrina como fonte do direito. Porém, em análise última acrescenta:

            "A doutrina não é fonte do Direito, mas nem por isso deixa de ser uma das molas propulsoras, e a mais racional das forças diretoras, do ordenamento jurídico."

[183]

            Caio Mário da Silva, numa linha de exposição dogmática, adverte e afirma:

            "Com a codificação do direito, a sistematização dos preceitos reduziu a importância da obra doutrinária. Mas nem por isso a doutrina deixa constituir fator relevante como fonte indireta. Expõe os princípios gerais de direito, debate as idéias e revive as discussões de temas que alargam o conteúdo das regras jurídicas. São os escritores que ventilam com o poder de sua inteligência os textos e os arestos, formulando e desenvolvendo conceitos que realizam a evolução do direito."

[184]

            Outros, como A. L. Machado Neto, sustentam, ao contrário, que a doutrina tem o caráter de fonte do direito. Por doutrina, como fonte jurídica, entende-se a obra científica dos jurisprudentes ou juristas, comentando a legislação, os costumes ou a jurisprudência, procurando realizar a necessária coerência dos sistemas jurídico e construir os institutos à base das disposições normativas vigentes. [185] Além disso, enquanto o costume vem perdendo o terreno, dado o incremento da atividade legislativa, a doutrina vem ganhando terreno, seja ela a sentinela avançada da evolução jurídica dos povos, seja através de construções teóricas que vão penetrando gradativamente no direito legislado, seja através do reconhecimento das fontes materiais como os usos sociais emergentes, atribuindo-lhes a necessária força de convicção para que possam ser invocados pelos julgadores. [186] Vale consignar os argumentos deste sociólogo do direito:

            "Já se tentou negar o caráter de fonte à doutrina, sob a alegação de que ela não ajunta nenhum sentido jurídico ao que já se encontra nas demais fontes – lei, costume e jurisprudência – Tal argumentação não procede, contudo, já que mesmo a doutrina inteiramente

secundum legem cumpre tarefas fundamentais de caráter científico, prático

            Crítico para a vida do direito nos povos mais evoluídos." [187]

            Como tarefa científica, prossegue Machado Neto, a doutrina realiza a sistematização lógica do ordenamento jurídico. No plano prático ou técnico-jurídico, a doutrina contribui para facilitar a tarefa de aplicação do direito. Extraordinariamente significativa é a contribuição crítica que a doutrina proporciona à reforma do direito e das instituições jurídicas que a prática social vai inapelavelmente superando. Neste último ponto, o caso da teoria da imprevisão e da teoria do abuso de direito, construções doutrinárias que tanto contribuíram como mecanismos ou anteparos elásticos colocados entre a inflexibilidade do direito individualista e a crescente coletivização da vida numa sociedade de massas, o que por si só bastaria para confirmar a doutrina como fonte do direito. [188]

            A doutrina jurídica, como vimos, é constituída de manifestações dos jurisconsultos, dos tratadistas, dos escritores jurídicos, cientistas sociais em geral. Aqui, interpretam os textos legais e as situações concretas, sem força de decisão coercitiva, mas tem a força persuasiva da verdade científica, os argumentos e os juizes de valor sobre a convivência humana. [189] Entretanto, são oportunas as observações do professor Silvio de Macedo, quando afirma que devemos distinguir entre ciência jurídica e doutrina jurídica. Esta assimila "dogmas" [190] ao lado de proposições científicas. Aquela caracteriza-se como por um maior rigor, não aceitando, como ciência que é, a presença de dogmas de qualquer espécie. [191] A propósito, segundo o cientista social Amado Luiz Cervo, atualmente a concepção de ciência é outra:

            "A ciência não é considerada como algo pronto, acabado ou definitivo. Ela é entendida como uma busca constante de explicações e soluções, de revisão e reavaliação de seus resultados e tem a consciência clara de sua falibilidade e de seus limites. Por ser algo dinâmico, a ciência busca renovar-se e reavaliar-se continuamente. A ciência é um processo de construção."

[192]

            É deveras sintomático, nas palavras de Miguel Reale, que o conceito de dogmática jurídica tenha se convertido num dos mais problemáticos e polêmicos da epistemologia jurídica contemporânea, mas tais contrastes – a começar pela conveniência ou não de manter-se ainda aquela tradicional denominação – traduzem apenas a crise por que passa a ciência do direito quando à elaboração das estruturas normativas que devem corresponder à sociedade contemporânea e ao Estado de justiça social [193] – muito embora considere o direito uma ciência dogmática, não por se basear em verdades indiscutíveis, mas sim porque a doutrina jurídica se desenvolve a partir das normas vigentes, isto é, do direito positivo: etimologicamente "dogma" significa aquilo que é posto ou estabelecido por quem tenha autoridade para fazê-lo. [194] Mas afinal, há confronto entre a dogmática jurídica e a ciência do direito?

            Para Tércio Sampaio Ferraz Junior, o agrupamento de doutrinas em corpos mais ou menos homogêneos é que transforma, por fim, a ciência do direito em dogmática jurídica, [195] enquanto Miguel Reale sustenta que a dogmática jurídica deve ser compreendida como o momento culminante da ciência do direito na plenitude de sua existência, como horizonte de sua objetividade, e o horizonte não se põe jamais como limite definitivo, mas é linha móvel a projetar-se sempre à frente do observador em marcha. [196]

            Para nós, no entanto, parece mais condizente e lógico, conforme a definição de dogmática jurídica, [197] admiti-la como parte da ciência jurídica. Aliás, como leciona Silvio de Macedo, a doutrina e a dogmática jurídicas não possuem a mesma pureza metodológica que a ciência jurídica, tampouco a amplitude da filosofia do direito. [198] Mais ainda, não possuem as mesmas características do conhecimento científico, que busca renovar-se e reavaliar-se continuamente. Na acepção de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a ciência jurídica diferencia-se de outras formas de abordagem do fenômeno jurídico, porque o cientista do direito se sente vinculado, na colocação dos problemas, a uma proposta de solução possível e viável. A ciência jurídica, segundo ele, coloca problemas ou questões para ensinar. [199] Desse modo, a ciência jurídica abrange a doutrina jurídica e a dogmática jurídica, haja vista que estas são partes daquela. Por outro lado, a doutrina jurídica, como fonte jurídica, realiza a construção teórica e a sistematização de ordenamento jurídico, contribuindo efetivamente para ciência do direito.

            No caso do direito educacional, por se tratar de um ramo novo do direito com carência de pesquisas, a doutrina, como fonte jurídica, é fundamental para a construção da teoria e a sistematização do ordenamento jurídico educacional. Trata-se, aqui, da possibilidade efetiva de reunir doutrinas, em corpos mais ou menos homogêneos, no contexto da ciência do direito educacional.

            A doutrina, como salientou Machado Neto, é tarefa do jurista enquanto cientista da ciência jurídica, ou seja, é obra do jurista como cientista da ciência do direito, a fim de realizar a sistematização do ordenamento jurídico, facilitando, assim, a aplicação do direito e sua reforma, bem como a reforma das instituições. [200] Já Maria Helena Diniz, na recente obra Compêndio de introdução à ciência do direito, explica o seguinte: "A doutrina é formada pela atividade dos juristas, ou seja, pelos ensinamentos dos professores, pelos pareceres dos jurisconsultos, pelas opiniões dos tratadistas." [201] Parece-nos, também, que não restam dúvidas de que a doutrina exige um conhecimento técnico e científico e está vinculada à atividade científico-jurídica. São pertinentes, também, as observações do jurista Pontes de Miranda:

            "Há grande vantagem em se estudar, tratar e expor o direito, aprofundando-se-lhe os princípios: primeiro, porque é assim que tem progredido a ciência, e só assim se pode ficar em dia com ela; segundo, evita-se que se tenham os problemas jurídicos como assuntos sobre os quais, sem preparação, todo mundo possa discorrer. O que a experiência tem mostrado é que o povo de cada país desaprova qualquer exposição, ou discussão jurídica, de que não lhe seja dado ver elementos para a sua convicção. E o povo contém juristas, gente que lê ciência."

[202]

            Contudo, em se tratando das fontes doutrinárias do direito educacional existe diversidade maior de fontes, a começar pelos próprios conceitos de educação e de direito educacional. Há peculiaridades nas diversas publicações dos Conselhos, do Congresso Nacional, seja por meio da Revista de Informação Legislativa, seja pelos seus anais, que guardam extraordinárias contribuições para a doutrina básica do direito educacional produzidas pelos senhores parlamentares, por meio de pronunciamentos, projetos de lei, pareceres, votos, emendas, audiências públicas etc. [203]

            Quando aos pronunciamentos de parlamentares, vamos destacar os escritos de Rui Barbosa sobre educação, em dois pareceres, produzidos no limitado prazo que mediou de 1881 a 1886, e que tiveram caráter episódico, decorrente da vida política de Rui, mas foram aspectos da luta do jurista, doutrinador e reformador social.

            O professor Lourenço Filho, o maior estudioso desses pareceres, afirma que Rui Barbosa foi sem dúvida, no Brasil, o primeiro a tratar da pedagogia como problema integral da cultura, isto é, problema filosófico, social, político e técnico, a um só tempo. [204] Os pareceres, como já foi dito, foram dois: um sobre a Reforma do Ensino Primário, e outro, sobre a Reforma do Ensino Secundário e Superior (v. edição comemorativa do 1º Centenário dos Pareceres apresentados na Câmara do Império em 1882, publicada pela Fundação Casa de Rui Barbosa). Na análise a que procedemos sobre o texto dos dois pareceres, os assuntos foram desenvolvidos como verbetes das melhores enciclopédias pedagógicas. Nesses pareceres, em resumo, encontramos o seguinte:

            "Uma conceituação da educação; os seus princípios normativos, ou filosofia pedagógica; as bases científicas da ação educativa, com indicações precisas sobre a biologia e a psicologia da criança; toda a técnica da educação pré-primária e primária e indicação substanciosa da técnica dos estudos secundários e superiores; notas e exemplos, segundo os mais adiantados modelos da época (os quase testes de Martins) sobre a verificação do rendimento do ensino; os tipos fundamentais de ensino comum e de ensino especial, primário, secundário, profissional, superior; o estudo do pessoal docente, quanto à formação, carreira, condições de recrutamento e de aperfeiçoamento; os grandes problemas da organização escolar, do efetivo das classes, dos horários; os princípios gerais de didática, o material, os processos de ensino, a conceituação rigorosa do método; normas relativas às construções escolares, situação, arquitetura, higiene da visão; o mobiliário escolar; a educação física; a educação sanitária; a metodologia dos jardins de infância, que Ruy prefere chamar de "jardins de criança" a questão dos programas de ensino; da co-educação econômica; da educação artística…"

[205]

            Rui Barbosa, na condição de jurista sentiu a necessidade de colaborar na área educacional e contribuir para maior aproximação entre a educação e o direito. Para nós, trata-se de efetiva contribuição para doutrina do direito educacional. É certo a nosso ver, por outro lado, que, embora Rui Barbosa invocasse exemplos norte-americanos e europeus para justificar o ensino livre e as escolas gratuitas, jamais mencionou, do ponto de vista da doutrina, que nos Estados Unidos da América, na época da guerra civil americana, com a abolição da escravatura, o presidente Lincoln organizou um departamento dos libertos, criando escolas, distribuindo terras e incentivando o alistamento eleitoral. E sua maior realização foi no campo da educação. [206] No caso brasileiro, ao contrário, ao invés de leis, projetos, programas na área da educação – como observamos nos comentários da maioria dos autores – houve um descaso e desinteresse do poder público no que diz respeito à educação, sobretudo em relação ao ensino popular.

            Para a ciência do direito há uma certa vinculação entre doutrina e pesquisa científica. A doutrina é o conhecimento teórico ou científico e, como fonte jurídica, tem os Conselhos como fontes do direito educacional. O atual Conselho Nacional de Educação e seu antecessor, o Conselho Federal de Educação, e os Conselhos Estaduais de Educação têm legislado abundantemente acerca da educação nas áreas sob suas respectivas jurisdições. Esses órgãos públicos, pelas suas funções normativas, interpretativas e até judiciais, têm produzido magníficos pareceres e julgamentos. [207] Toda essa matéria constitui fonte doutrinária do direito educacional e sua pesquisa é facilitada pelas diversas publicações dos Conselhos, como esclarece o professor e consultor jurídico Elias de Oliveira Motta. [208]

            A doutrina do direito educacional, ao longo do tempo, vem acumulando através dos Conselhos importante acervo de decisões, que se incorporou, dada a natureza do direito positivo brasileiro, às próprias fontes do direito educacional. Orienta ela o funcionamento do sistema de ensino e fundamenta decisões tomadas quer na instância administrativa, quer até mesmo na judiciária. Neste caso, um novo Direito Educacional deverá afluir uma inumerável soma de decisões e julgados, que darão à doutrina posição de relevo no desenvolvimento e na consolidação desse novo ramo da ciência jurídica entre nós. [209]

            Outra contribuição para o aprofundamento da doutrina do direito educacional tem sido os seminários e congressos de direito educacional. Trata-se, no caso, da reunião de especialistas no assunto, em conjunto com os profissionais da área jurídica, da área administrativa, de especialista na área de educação, universitários e áreas afins, que incentivam a formação de especialistas, de pesquisadores e efetiva autonomia do direito educacional, como disciplina e novo ramo do direito, e sobretudo fortalece a luta pelo direito à educação no Brasil.

            Na tese de livre-docência, com o título Contribuição à sistematização do direito educacional, Renato Alberto Teodoro Di Dio faz o seguinte comentário:

            "Foi com agradável surpresa que, em 1977, tivemos notícia de um seminário de Direito Educacional, realizado sob os auspícios da Universidade Estadual de Campinas. Não terá sido a semente de nossas idéias – que, de resto, ficaram guardadas nas cinqüenta e oito páginas de nosso ensaio acadêmico – mas o pólen carregado pelos ventos da atmosfera educacional que começa a provocar a fecundação prenunciada. É verdade que, no Brasil, mais do que lá fora, os ventos da inovação lembram antes calmaria do que tormenta. Mormente nesse setor que potência o tradicionalismo de duas forças predominantes conservadoras: o direito e a educação."

[210]

            Na apresentação dos respectivos Anais desse 1º Seminário de Direito Educacional no Brasil, realizado em Campinas de 19 a 21 de outubro de 1977, o coordenador, dr. Guido Ivan de Carvalho, disse textualmente:

            "Este 1º Seminário de Direito Educacional constitui um marco significativo na evolução do pensamento educacional brasileiro, porque, pretendendo iniciar a sistematização técnico-científica do Direito Educacional, atingirá, em médio prazo, o objetivo de isolar e valorizar, distintamente, o fato educacional, exigindo-lhe tratamento adequado pela ação dos órgãos do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário)."

            E continuou: "As conclusões aprovadas na última sessão indicam a consistência da preocupação comum a juristas, educadores, sociólogos e autoridades de ensino, principalmente, no sentido da importância de emergente ramo do direito." [211]

            Nesse sentido, são oportunas as palavras do professor Elias de Oliveira Motta, quando afirma não haver mais sentido ensinar-se para alunos dos cursos de Direito ou de Educação e, muito menos, para os alunos de pós-graduação das respectivas áreas, apenas Legislação de Ensino, quando existe todo um corpo doutrinário de princípios no Direito Educacional. Manter, pois, nos currículos desse cursos apenas a disciplina Legislação do Ensino será uma demonstração de desatualização que poderá redundar tanto em deficiência dos cursos, quanto em prejuízo para a formação dos futuros profissionais. [212]

            A doutrina como fonte jurídica proporciona ao ordenamento jurídico brasileiro e ao direito educacional uma significativa contribuição crítica, através do jurista e filósofo Pontes de Miranda, um dos primeiros a definir à educação como direito subjetivo público. A propósito, em 1933, na sua obra Direito à educação, afirma o seguinte:

            "Há direitos declarados só verbalmente e de difícil reconhecimento, é o direito subjetivo à educação. Infelizmente o Estado moderno e Constitucional deixou sem sanção certos direitos declarados."

[213]

            Pontes de Miranda, segundo o professor Paulo Nathanael Pereira de Souza, ao escrever seus comentários à Constituição de 1934, ao mesmo tempo em que reconhece o amplo tratamento dado à matéria educacional, critica o fato de não haverem os constituintes inserido na Carta os meios de forçar o poder público a cumprir os compromissos assumidos com a obrigatoriedade universal e gratuita do ensino primário. Faltou o que o eminente jurista chamou de direito público subjetivo. Ou, para usar suas palavras: "Ao lado do direito à educação deve estar a obrigação de educar." [214]

            Houve uma longa discussão da doutrina brasileira sobre direito à educação e direito público subjetivo à educação, como vamos verificar no capítulo IV do presente trabalho. [215]

            Para Edivaldo Boaventura, as doutrinas educacionais, especialmente os resultados das pesquisas em psicologia e em sociologia, muito enriquecem a educação. A investigação científica reforça a doutrina pela construção do conhecimento. [216] Todavia, não há grande acervo doutrinário na área do direito educacional, até porque as pesquisas ainda são reduzidas. Um dos importantes colaboradores para a construção teórica do direito educacional em nosso país é Renato Alberto Teodoro Di Dio, já mencionado no presente trabalho.

            Elias de Oliveira Motta, no mais recente trabalho sobre direito educacional, para comprovar a existência do direito educacional, sustenta a necessidade de identificamos suas doutrinas homogêneas e peculiares. [217] Filiamo-nos, em tese, a esse critério, mas identificando inicialmente alguns doutrinadores com obras ou artigos específicos sobre direito educacional. Vamos apresentar, então, outros doutrinadores, que já se manifestaram sobre educação e direito em seus livros e artigos.

            Em primeiro lugar, a educação como direito é um assunto pouco explorado entre nós, embora com a contribuição de importantes estudiosos, educadores e juristas: o jurista e educador Edivaldo Boaventura, o laureado Renato Alberto Teodoro Di Dio, o conceituado Elias de Oliveira Motta, os não menos conceituados Aurélio Wander Bastos, Álvaro Melo Filho, Lourival Vilanova, Ester de Figueiredo Ferraz, Pedro Sacho Silva, Paulo Nathanael Souza, Alberto Venâncio Filho, Oldega Vieira, João Roberto Moreira Alves, Newton Lins Buarque Sucupira, Maurício Antônio Ribeiro Lopes.

            Em segundo lugar, a doutrina a respeito do direito à educação é muito mais ampla, pois abrange comentários de doutrinadores de diferentes áreas de conhecimento, mas que já se manifestaram sobre educação e o direito em seus livros e artigos, bem como nas revistas especializadas: Rui Barbosa, Pontes de Miranda, John Dewey, Anísio Teixeira, Hermes Lima, Lourenço Filho, Santiago Dantas, Hely Lopes Meirelles, José Carlos Libâneo, Demerval Saviani, Arnaldo Niskie, Lauro de Oliveira Lima, Luiz Antônio Cunha, Paulo Freire, Vicente de Paula Barreto, José Ribas Vieira, Nilda Teves Ferreira, Ivo José Both, João Gualberto C. Menezes, Pedro Demo, entre outros.

            Todos eles estão efetivamente contribuindo para a doutrina do direito educacional. Cabe, no entanto, aos juristas-educadores ou aos educadores-juristas construírem um corpo doutrinário homogêneo de conceitos, institutos jurídicos próprios e princípios, como efetiva contribuição à sistematização e autonomia do direito educacional.

            3. Princípios do direito

            Embora quase toda doutrina afirme que os princípios gerais do direito não constituem fonte do direito, vale lembrar que toda ciência tem princípios. [218] Ademais, toda disciplina jurídica autônoma corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e normas. Neste caso, o direito educacional, como ramo da ciência jurídica, também tem os seus princípios, tanto que, como se verá a seguir, as legislações, quer sejam constitucionais ou infraconstitucionais, mencionam os princípios. [219] Contudo, antes de examinarmos os princípios propriamente ditos do direito educacional, cabe dar uma breve noção sobre as acepções do termo princípio.

            A teoria tradicional do direito consagra os princípios gerais do direito na condição de forma complementar do direito normativo. A esse propósito, a nossa Lei de Introdução ao Código Civil é categórica ao estabelecer que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" (art. 4º). Do mesmo modo, o art. 126 do Código de processo Civil adotou o mesmo teor normativo. [220]

            Entretanto, Paulino Jacques observa que alguns autores confundem os princípios gerais do direito com os princípios gerais de alguns ramos do direito (do constitucional, penal, civil, trabalhista etc.). [221] Para a doutrina tradicional, os princípios gerais do direito diferem das normas jurídicas em geral por não disporem de uma estrutura com hipótese de fato, impondo-se por sua própria importância, sem referência a pressupostos concretos de aplicação. [222] Aqui, verifica-se que a teoria da metodologia jurídica tradicional distingue norma jurídica dos princípios. Parece-nos, como afirma a doutrina moderna, que saber distinguir normas, regras e princípios é tarefa particularmente complexa – aliás, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, embora muito aceita a distinção entre norma e princípios, ela nem sempre é fácil de ser firmada. [223] Porém, é no direito constitucional que a teoria dos princípios gerais do direito ganhou prestígio e estabeleceu aprofundadas reflexões. A respeito, José Joaquim Gomes Canotilho assim leciona:

            "De um lado, um modelo ou sistema constituído exclusivamente de regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática (…), conseguir-se-ia um sistema de segurança, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e o desenvolvimento de um sistema como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. De outro lado, o modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios levar-nos-ia a conseqüências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflitantes só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica…"

[224]

            Para Luiz Roberto Barroso, já se encontra superada a distinção que outrora se fazia entre norma e princípio. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas em geral e as normas constitucionais em particular podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema. [225] Violar um princípio, afirma Celso Antônio Bandeira de Mello, é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais. [226]

            Atualmente, segundo Ruy Samuel Espíndola, entende-se que os princípios estão inclusos tanto no conceito de lei, quanto no de princípios gerais do direito. Essa tendência, que tem sido chamada de pós-positivista, entende os princípios como normas jurídicas vinculantes, dotados de efetiva juridicidade, como quaisquer outros preceitos encontráveis na ordem jurídica. Consideram as normas de direito como gênero, do qual os princípios e as normas são espécies jurídicas. [227]

            Da mesma forma, essa nova tendência introduziu-se no direito educacional, com o advento da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Nesse sentido, os princípios assumiram funções normativas específicas, reforçando-se os princípios doutrinários da ciência jurídica da educação. [228] A educação, direito de todos, é dever do Estado e da família preceitua o art. 205 da Constituição Federal. Porém, para a concretização das finalidades expostas nesse dispositivo constitucional, o ensino deve obedecer aos princípios do art. 206 do texto constitucional, os quais devem constituir a base de qualquer planejamento que se faça na área de educação. [229]

            Os constituintes de 1988 não estabeleceram precisão terminológica no emprego das expressões educação e ensino. [230] Mas conseguiram sintetizar os princípios básicos da educação em sete itens. Segundo o art. 206 da Constituição Federal,

            "o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

            I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

            II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

            III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

            IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

            V - valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

            VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

            VII - garantia de padrão de qualidade."

            Ao comentar os princípios básicos do ensino, José Afonso da Silva observa com muita propriedade que:

            "A consecução prática dos objetivos da educação consoante o art. 205 – pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho – só se realizará num sistema educacional democrático, em que a organização da educação forma; concretize o direito ao ensino, informado por princípios com eles coerentes, que, realmente, foram acolhidos pela Constituição no art. 206."

[231]

            Depois da Constituição Federal, a maior lei infraconstitucional da educação é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional, que trata da chamada "educação escolar". Essa lei ordinária adota também princípios basilares da educação. O art. 2º, que coloca a educação como um dever do Estado e da família, é uma repetição do mandamento constitucional expresso no art. 205, com a exclusão da expressão "direito de todos, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade". No mencionado art. 2º há o seguinte acréscimo: "inspirada nos princípios da liberdade e nos ideais de solidariedade humana", acréscimo que se harmoniza com os princípios fundamentais da Constituição Federal. Também o art. 3º é, praticamente, cópia do art. 206 da Constituição de 1988, mas com alguns acréscimos, inclusive novos incisos. O inciso IV inclui como princípio básico do ensino a ser ministrado em nossas escolas "respeito à liberdade e apreço à tolerância". O inciso X adicionou o princípio da "valorização da experiência extra-escolar". E o último inciso do art. 3º, de número XI, estabeleceu como princípio a "vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais". [232]

            Parece-nos, no entanto, que não podemos analisar os artigos 205 e 206 da Constituição Federal, em especial os princípios do direito educacional, sem harmonizá-los com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, até porque atualmente os juristas reconhecem a Constituição como um sistema de princípios e de normas constitucionais. Todavia, pelas limitações do presente trabalho, não cabe discutir a fundo as bases e as relações de todos os princípios fundamentais do direito constitucional e do direito educacional, mas é certo que algo deve ser dito a esse respeito, daí elegermos os princípios da liberdade e da igualdade, por se tratarem de aspirações humanas que servem de pilares do Estado democrático de direito na Constituição Federal. Para o jurista Paulo Benavides:

            "Foi Montesquieu sábio ao dizer que ‘a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem’. Com estas palavras, ele vinculou indissociavelmente a liberdade ao Direito. De tal sorte que, onde não houver o primado da ordem jurídica, não haverá liberdade. (…) Completou Rousseau muito bem o conceito de liberdade de Montesquieu mediante a concepção da lei como produto da ‘vontade geral’."

            Prossegue o renomado jurista:

            "A liberdade, graças àqueles dois gigantes do pensamento político moderno, nos libertou da legislação do absolutismo. Pôs abaixo o monstruosos edifício das soberanias do direito divino. Acabou com os privilégios civis e políticos, que oprimiam o povo e a sociedade…"

[233]

            A liberdade tem um caráter histórico, porque depende do poder do homem sobre a natureza, sobre a sociedade e sobre si mesmo em cada época. [234] A história mostra que o liberalismo ocidental, conduzido e vivido pela burguesia, colocou como valor básico da existência humana a liberdade. Realmente a história mostra que o conteúdo da liberdade se amplia com a evolução da humanidade. Fortalece-se, entende-se, à medida que a atividade humana de alarga. Liberdade é conquista constante. [235]

            Cabe considerar, segundo Maurício Antônio Ribeiro Lopes, a liberdade matriz, a liberdade base, que é a liberdade de ação em geral, a liberdade geral de atuar, que decorre do art. 5º da Constituição, o qual dispõe: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei". É um modo diferente de expressar do de Montesquieu. Para este, a liberdade consistiria na direito de fazer tudo o que as leis permitissem. O texto constitucional atual, ao contrário, prevê a liberdade de fazer, a liberdade de atuar ou a liberdade de agir como princípio. Vale dizer, o princípio é o de que todos têm a liberdade de fazer e de não fazer o que bem entenderem, salvo quando a lei determine o contrário. [236]

            No direito educacional, o princípio da liberdade aparece mais fortemente expresso diante de outros corolários, como "o princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber" (art. 206, inc. II da Constituição Federal), igualmente expresso no inc. II do art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Nesse artigo, estão compreendidas duas dimensões do conhecer: a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva. Na primeira, dá-se a relação dos sujeitos do conhecimento, envolvendo a liberdade de transmitir o conhecimento – que cabe ao professor – e o direito de receber o conhecimento ou de buscá-lo – que cabe a alunos e pesquisadores. Na segunda, encontra-se a liberdade de o professor escolher o objeto relativo do ensino a transmitir. Dizemos objeto relativo porque sua liberdade aqui fica condicionada aos currículos escolares e aso programas oficiais de ensino (art. 209). [237] Vale lembrar que não é óbice para o professor ministrar o seu curso ou disciplina com a liberdade de crítica, de conteúdo e metodologia que lhe pareçam mais corretos. A propósito, consoante o magister do precursor do direito educacional brasileiro, Renato Alberto Teodoro Di Dio:

            "A liberdade de ensino, entendida como a liberdade intelectual de pessoas que participam do processo educativo, é hoje reconhecida como um dos princípios fundamentais da educação de uma sociedade. Esse princípio é proclamado não só por seu valor intrínseco, uma vez que constitui um dos anseios básicos do homem, como também porque propicia o desenvolvimento do espírito crítico, o progresso do conhecimento e a melhoria da convivência social."

[238]

            Já o princípio da igualdade ou da isonomia, embora não merecendo tantos discursos como a liberdade, [239] é um dos pilares do Estado democrático de direito. Para o professor Sergio Abreu o debate acerca do princípio da igualdade está envolvido numa complexidade jurídico-filosófica de tal ordem que não pode ser reduzido aos cânones do direito positivo. [240]

            A igualdade adotada pela Revolução Francesa – com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 – era a igualdade de tratamento e se manifestava pela abolição de privilégios de toda espécie, daí o princípio, geralmente admitido desde então, nas democracias liberais, da igualdade de todos perante a lei. A luta pela igualdade era uma luta pela abolição dos privilégios do clero e da nobreza, tanto em relação ao acesso às funções públicas, como em relação aos impostos. No século XIX, a igualdade dos direitos era garantida aos proprietários. O direito de propriedade era considerado um direito natural, prolongamento da liberdade individual e fundamento da ordem social.

            As Constituições brasileiras só têm reconhecido a igualdade no seu sentido formal jurídico: igualdade perante a lei. A Constituição de 1988 abre o capítulo dos direitos individuais com o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput). [241] O princípio da igualdade ou da isonomia está firmado na Constituição Federal, no preâmbulo, no art. 3º (que trata dos objetos fundamentais da República), no art. 5º, caput e em seu inc. I, dentre outros dispositivos constitucionais gerais. No entanto, hoje, segundo Chaim Perelman, considerado um dos maiores filósofos do direito deste século:

            "A idéia que se impõe cada vez mais é a de diminuir as desigualdades entre os membros de uma mesma sociedade ou entre povos e Estados cujo desenvolvimento é desigual, concedendo compensação aos que estão em estado de inferioridade. Nos Estados Unidos, a propósito, quando se tratou da admissão às universidades, em vez de designar os melhores candidatos, o que teria eliminado quase todos os estudantes negros, decidiu-se conceder-lhes uma certa cota, para permitir escolher certo número de estudantes negros, mesmo que se devesse, agindo assim, eliminar estudantes de raça branca mais merecedores do que os que haviam sido admitidos."

[242]

            O princípio da igualdade no direito educacional está expresso como "igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola" (art. 206, inc. I da Constituição Federal; art. 3º, inc. I da Lei de Diretrizes de Bases da Educação; e art. 53, inc. I do Estatuto da Criança e do Adolescente). Trata-se do princípio de isonomia da educação, de cunho material, posto que, sendo o ensino direito público subjetivo – nos termos do § 1º e § 2º do art. 208; do art. 5º da Lei de Diretrizes e Bases; e do art. 53, § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) –, tanto acesso quanto permanência devem ser materialmente garantidos, sendo, via de conseqüência, ambos exigíveis do poder público, importando a conseqüente responsabilidade da autoridade omitente. [243]

            Entretanto, do ponto de vista da igualdade formal da educação, a concretização da educação como "direito de todos e dever do Estado e da família" depende da efetiva aplicação do princípio da igualdade da educação (art. 205 e art. 206, inc. I, da Constituição Federal). Neste caso, há real impossibilidade de considerar os alunos em igualdade de condições, sem levar em conta as diferenças socioeconômicas de suas famílias.

            No caso em tela, também são oportunos os comentários de Renato Teodoro Di Dio, quando afirma que muito resta por fazer: "eliminar as disparidades entre escolas rurais e escolas urbanas, entre escolas de clientela pobre e de clientela rica; criar escolas especiais para excepcionais e para superdotados". [244]

            Para nós, como já comentamos, não há capítulos da Constituição autônomos e que tampouco podemos analisar os princípios do ensino (art. 206 e incisos) sem harmonizá-los com os princípios básicos do Estado democrático de direito (arts. 1º e 3º da Constituição Federal). [245]A igualdade de condições de acesso à educação e permanência na escola depende de um governo comprometido com os fundamentos e os objetivos fundamentais constitucionais, chamados princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, bem como de ação ou política afirmativa.

            Por fim, as normas-princípio do direito educacional ganharam corpo com o advento da Constituição Federal de 1988 e com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que reconhecem o direito público subjetivo à educação. E, no caso de não-oferecimento ou de oferta irregular do ensino obrigatório, como veremos no próximo capítulo, a Constituição e algumas legislações infraconstitucionais indicam expressamente os instrumentos jurídicos colocados à disposição do cidadão para exigir do poder público o cumprimento da prestação educacional. Trata-se, na realidade, de princípio de ordem pública, porque diz respeito à cidadania, ao interesse público e à educação como direito fundamental.

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Sobre o autor
Nelson Joaquim

advogado, mestre em Direito pela UGF, especialista em Direito Civil, Romano e Comparado, professor da Universidade Estácio de Sá

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JOAQUIM, Nelson. Educação à luz do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1081, 17 jun. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8535. Acesso em: 19 mar. 2024.

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