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A verticalização partidária:

o descompasso institucional numa democracia procedimentalista que transcenda aos aspectos conjunturais na permanente busca por segurança jurídica

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16/07/2006 às 00:00
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"Minha vontade, ou poder de julgar, é livre e infinita; eu me engano quando a estendo a coisas que não entendo (...) A análise mostra o verdadeiro caminho pelo qual uma coisa foi metodicamente inventada e revela como os efeitos dependem das causas."(Descartes, Séc. XVI)

"Importa que nos mantenhamos longe do erro de que o que determina e limita o horizonte do presente é um acervo fixo de opiniões e valorações, e que face a isso a alteridade do passado se destaca como um fundamento sólido. Na verdade, o horizonte do presente está num processo de constante formação, na medida em que estamos obrigados a pôr à prova constantemente todos os nossos preconceitos." (Gadamer, Séc. XX)


SUMÁRIO: 01-Introdução; 02- A Diferenciação entre discursos de justificação e de aplicação para explicitar a função do Poder Judiciário como vértice central na arquitetura constitucional e a correspondência com as expectativas normativas; 03- Retrospecto da Incidência da verticalização no âmbito institucional contemporâneo e o argumento da segurança jurídica; 04- Os partidos políticos diante dos discursos eternizantes de fragilidade e a recorrente tutela pelo poder público; 05 – Conclusão: A Democracia como um processo de aprendizagem e a possibilidade de tropeços como constitutivos de uma modernidade sem fundamentos absolutos;

PALAVRAS-CHAVE: Reengenharia da Verticalização – Partidos Políticos – Natureza jurídica - Princípio da transcendência dos quadros partidários – Hermenêutica – Giro Lingüístico - Segurança Jurídica – Cláusula de barreira (‘Sperklaussel’)


01-INTRODUÇÃO

Em tempos de frenética busca por segurança jurídica, a lembrança de Descartes [01] é sempre importante para fins de resgatar os pressupostos de uma sociedade, diferente daquela, que não mais repousa na razão iluminista de verdades absolutas e métodos infalíveis capazes de nos livrar de ter que lidar com problemas crescentemente complexos.

Assim, pretendemos apontar as causas e conseqüências de tais circunstâncias, além de buscar indicar os pressupostos para uma postura constitucionalmente vinculada que leve a sério uma história institucional autoritária e o risco permanente da anomia social com a autonomização das instituições políticas. Dessa forma, analisamos a postura do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional no tratamento dispensado à verticalização partidária, principalmente após o recuo do TSE no tocante à reengenharia radicalizada da verticalização com as ‘coligações puras’.


02- A DIFERENCIAÇÃO ENTRE DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO E DE APLICAÇÃO PARA EXPLICITAR A FUNÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO COMO VÉRTICE CENTRAL DA ARQUITETURA CONSTITUCIONAL E A CORRESPONDÊNCIA COM AS EXPECTATIVAS NORMATIVAS

A modernidade, ao destroçar a sociedade de equilíbrio dimensionada pelas castas na Idade Antiga e Medieval, inaugurou o risco permanente como possibilidade de emancipação. Com a separação do direito (lícito/ilícito) de categorias como a política (governo/oposição), economia (dinheiro/não ter dinheiro), moral (certo/errado) e religião (credo/não credo), o surgimento do Estado de Direito foi o resultado desse incremento de complexidade na vivência humana.

Como primeira vertente do Estado de Direito, o Estado Liberal ou formal burguês (Séc. XVI/XIX) é caracterizado pela generalidade abstrata do direito privado como a essência de uma comunidade política egoísta, tendo a propriedade privada como fundamento dos direitos de primeira dimensão (individuais e políticos/civis). Por outro lado, esse Estado abstencionista possui funções limitadas a cunhagem de moeda e fiscalização de fronteiras, deixando à ‘mão invisível do mercado’ as demais tarefas de integração social (laissez faire). No âmbito da separação de poderes, a função preponderante era a legislativa, visto que a modernidade inaugura aquilo que viria ser uma tendência até nos dias atuais, qual seja, a possibilidade do direito passar a se conhecer mediante textos. Nesta perspectiva, a função judiciária era mera ‘adequação de meios a fins’, como lembra Gadamer, "...era coisa lógica e natural que a tarefa hermenêutica fosse a de adaptar o sentido do texto à situação concreta a que este fala." [02]A preocupação era mais com o direito (liberdade é fazer tudo que as leis não proíbam) e não com a justiça. Exemplo dessa fase é a formulação do Código Civil Francês aprovado em 21 de março de 1804, cujas reuniões da comissão foram algumas vezes presenciadas por Napoleão que, diante de discussões principalmente no que diz respeito ao direito de família, exigia prudência no sentido de formular uma lei hermeticamente insuscetível de falhas.

Na segunda vertente do Estado de Direito, o Estado Social ou Estado de Bem-Estar (Séc. XX) é caracterizado pela materialização do direito privado e uma crítica reformista da vertente anterior, contemplando ao Estado"...duas versões principais, sendo que a primeira lhe confere ingenuamente um grande espaço de ação e de intervenção política numa sociedade colocada à sua disposição" [03]. Ao quase eliminar a autonomia privada, o Estado ‘providência’, além de fazer uma releitura dos direitos de primeira dimensão (individuais e políticos/civis), agora não mais fundados na propriedade privada, mas na ‘igualdade jurídica’(v.g, o direito político ao voto de censitário passa a ser universal), tem-se o advento dos direitos de segunda dimensão (Sociais, econômicos e culturais). No contexto da separação dos poderes, a preponderância passa a ser da função executiva, tendo em vista a necessidade da efetivação de políticas públicas como saúde, habitação, previdência e educação para uma massa de clientes. Nesse período, o grande legado é a constatação kelseniana que, contrariamente ao paradigma liberal, entende que a lei, por ser geral e abstrata por definição, não tem como previr todas as hipóteses de sua aplicação como achava Napoleão, por isso elege a ciência como a garantia de manter a pureza do direito quando de sua densificação no caso concreto, descortinando que o texto, por si só, não dá conta da complexidade e riqueza da vida.

Importa destacar que é sob a égide do Estado Social, cujo ordenamento referencial é a Constituição alemã de Weimar (1919), no regime facista de Benito Mussolini, que surgem as medidas provisórias (‘provvedimenti provvisori’), com força de lei imediata, em reação ao fato de o parlamento ser lento no mundo inteiro. Sendo assim, o Poder Executivo necessitava de mecanismos mais ágeis para dar vazão à materialização das políticas públicas voltadas a essa ‘massa de clientes’.

Por fim, a terceira vertente do Estado de Direito, o Estado Democrático de Direito (‘Rechtstaat’), configurado a partir das décadas finais do Séc. XX, tem por característica a tensão permanente entre a autonomia pública e privada, não mais tidos como antagônicos, mas complementares, de reconhecimento mútuo, onde não se pode mais conceber o público como sinônimo de estatal e muito menos o privado como egoísmo, mas de dependência recíproca. Logo, só temos direito privado se houver reconhecimento de sua dimensão pública, bem como só podemos ter direito público se reconhecer as contingências da dimensão privada, de forma que a Constituição "... pode ser entendida como um projeto histórico que os cidadãos procuram cumprir a cada geração. No Estado Democrático de Direito, o exercício do poder político está duplamente codificado: é preciso que se possam entender tanto o processamento institucionalizado dos problemas que se apresentam quanto a mediação dos respectivos interesses, regrada segundo procedimentos claros, como efetivação de um sistema de direitos" [04]. Nesse paradigma, a função legislativa passa a ser ‘mera porta de entrada’ do ordenamento, ao tempo em que a função judiciária passa a ter um papel central no ordenamento jurídico.

A sustentação dessa pretensão está no retrospecto do instituto de verticalização, em que, não havendo modificação formal legislativa, o TSE interpreta a lei eleitoral dando novo significado ao texto. Exemplo disso é a Resolução n º 21.002/2002, quando o mesmo texto em vigor e aplicado ao pleito de 1998 teve seu entendimento alterado no pleito de 2002, sem sequer modificar uma única vírgula. Outro exemplo recente é a própria EC 52/06 que, depois de vigorar, passou pelo crivo do judiciário para sua conformação. Não se pode deixar de lembrar a recente Lei Federal n º 11.300/06, que modificou a LGE (9.504/97), proibindo algumas modalidades de propaganda, regulando limites de gastos e financiamentos de campanhas, marco da representação para fins da configuração da cláusula de barreira (‘Sperklaussel’): o TSE imediatamente deu a conformação do que seria aplicado para o pleito de 2006, à vista do princípio da anualidade eleitoral (art. 16), ao expedir, em 23 de maio de 2006, a Resolução n º 22.205/06. Importa salientar que não se pode condicionar o âmbito da aplicação exclusivamente ao Poder Judiciário, visto que todos somos aplicadores e intérpretes de nossas gramáticas de práticas sociais; no entanto, a interpretação judicial perfaz o critério do ‘non liquet’, ou seja, não se pode limitar o exercício hermenêutico apenas para os intérpretes autorizados (Peter Häberle), sob pena de se desaguar no decisionismo, seja kelseniano, seja schimitiano, do Estado Social.

Fixada a posição do judiciário e dos demais intérpretes, mister que se demonstre a diferença entre os discursos de justificação, realizados no âmbito do legislador, e os discursos de aplicação, realizados no âmbito do judiciário. Com efeito, é insofismável que, toda vez que interpretamos, fazemos uma lei para o caso concreto, de forma que "...a vontade do legislador e os princípios do direito consuetudinário funcionarão como ponte entre a teoria geral e os direitos concretos. O juiz precisará estabelecer uma relação coerente entre a sua decisão (aplicação) e a teoria política geral (justificação) (...) Uma legislação que recria um determinado direito sem examinar a sua coerência com outros direitos, ou que persegue determinados objetivos políticos de modo a fazer acordos arbitrários que conduzem ao privilégio de uma posição jurídica, não trata a todos com igual consideração e respeito." [05]

Dessa maneira, se não trabalhar essas duas dimensões da norma (justificação/aplicação) respeitando seus pressupostos, mas, ao contrário, substituindo uma pela outra o tendo-as como equivalentes funcionais, corre-se o risco de perder a dimensão normativa e tratar princípios semelhantes a regras como o fazem a jurisprudência de valores (Robert Alexy).


03- RETROSPECTO DA INCIDÊNCIA DA VERTICALIZAÇÃO NO ÂMBITO INSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO E O ARGUMENTO DA SEGURANÇA JURÍDICA

É cediço que os partidos políticos, nos termos do art. 17, inciso I, da CR/88, possuem a natureza jurídica de pessoa jurídica de direito privado especial de caráter nacional. Isso implica que a leitura da Lei Orgânica dos Partidos Políticos (LOPP, Lei Federal n º 9.096/96) e principalmente o art. 6º da Lei das Eleições Gerais [06] (LEG, Lei Federal n º 9.504/97) buscam, na sua generalidade, consagrar a supremacia da Constituição nesta vertente.

Com a LEG vigorando no pleito de 1998, após um longo debate no sentido de viabilizá-la como uma legislação permanente, contrariamente aos casuísmos de outrora que ensejavam a elaboração de uma lei a cada eleição, não se aplicou qualquer vedação às alianças regionais pelo reflexo das coligações nacionais. No entanto, faltando poucos meses para o pleito de 2002, o TSE, em 26 de fevereiro de 2002, ao apreciar Consulta n º 715, Classe 5ª, formulou a Resolução n º 21.002, in verbis:

"Consulta. Coligações.Os partidos políticos que ajustarem coligação para eleição de Presidente da República não poderão formar coligações para eleição de Governador de Estado ou do Distrito Federal, Senador, Deputado Federal e Deputado Estadual ou Distrital com outros partidos políticos que tenham, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato à eleição presidencial".

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Diante da perplexidade que causou essa decisão, incontinenti, no dia 27 de fevereiro de 2002, ou seja, antes da publicação no Diário Oficial (15/03/2002), os Senadores propuseram o Projeto de Emenda Constitucional nº 548/2002, que altera a redação do parágrafo primeiro do art. 17, da Constituição Federal, extinguindo a verticalização, na redação do que viria a ser a EC 52/06. Não obtendo tramitação de urgência como inicialmente se previa, visto que queriam anular aquela regra ainda para o pleito de 2002, em junho de 2002, após 2 turnos de votação na Casa da Federação, foi a mesma encaminhada à Câmara dos Deputados. Com efeito, somente no dia 25 de janeiro do corrente ano, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto em primeiro turno (343 votos a favor e 143 contra) e posteriormente em segundo turno (329 a 142). Saliente-se que, durante toda sua tramitação, não houve qualquer emenda ao projeto original.

Aprovado o projeto nas duas Casas, o Presidente do Congresso Nacional ficou em compasso de espera sobre iminente nova decisão do TSE, que estava sendo questionado se a interpretação de 2002, obrigando os partidos que se coligassem nacionalmente a reproduzir tal aliança nos Estados, impediria que tais partidos lançassem candidatos isolados ou se coligassem com outro partido que não possuísse candidato à Presidência. Assim deliberou o TSE, na Consulta n º 1.185:

"Consulta. Verticalização. Questionamento. Referência. Possibilidade. Partido político. Orientação. Resolução. Órgão. Nacional. Direção partidária. Publicação. Diário Oficial da União. Prazo. Limite. Cento e oitenta dias. Anterioridade. Eleições. Estabelecimento. Regras. Autorização. Coligação híbrida. Relativamente. Eleições. Estado. Dissociação. Coligação nacional. Interpretação. Art. 7º, § 1º, da Lei nº 9.504/97. Impossibilidade. Manutenção. Entendimento. TSE. Apreciação. Consulta nº 715. Segurança jurídica. Observância. Restrição. Filiação. Art. 18 da Lei nº 9.096/95.

1. Embora reitere que a matéria deveria estar na exclusiva alçada dos partidos políticos, a partir do momento em que se aciona o mecanismo de consulta de que trata o inciso XII do art. 23 do Código Eleitoral, o Tribunal tem de se pronunciar e a questão passa a ser examinada exclusivamente sob o prisma jurídico.

2. Ainda que as coligações sejam objeto de deliberação nas convenções partidárias que se realizam no período de 10 a 30 de junho de ano eleitoral (art. 8º da Lei nº 9.504/97), quando entendo que efetivamente se inicia o processo eleitoral, é convir que a impossibilidade de mudança de partido em face do termo de um ano, de que cuida o art. 18 da Lei nº 9.096/95, impede que a eventual mudança – legislativa ou interpretativa – produza efeitos ou tenha eficácia retrooperante, ao arrepio de situações consolidadas pelo tempo.

3. Não tendo havido nenhuma mudança legislativa ou interpretativa até um ano antes da eleição, muitos cidadãos, ou mesmo detentores de mandato eletivo, tinham a real e efetiva expectativa de que a regra da verticalização estaria valendo para a eleição que se avizinha. "(...) Essa circunstância, indiscutivelmente, sensibiliza-me a votar pela manutenção do que se decidiu na Consulta nº 715 (...)".Consulta a que se responde negativamente.

Resolvem os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por maioria, vencidos os Ministros Relator e Cesar Asfor Rocha, responder negativamente à consulta, nos termos do voto do Ministro Caputo Bastos (...)Brasília, 3 de março de 2006."(Grifamos)

Diante da decisão de manutenção da verticalização, o Congresso Nacional, em 08 de março de 2006, promulga a EC 52/06, alterando o § 1º do art. 17 da CF, assegurando "...aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária." (Grifamos). O agravante é que no art. 2º da Emenda consta que ele entraria em vigor "...na data de sua publicação, aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002", exatamente por ter sido proposto o projeto antes do pleito de 2002. A EC 52/06 ensejou a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade genérica n º 3685-8, com fincas no art. 102, I, "a", da CR/88, patrocinada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, de forma que, pressionado pelo calendário eleitoral, o STF em 22.03.2006 decidiu:

"...por maioria, julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para declarar a inconstitucionalidade do art. 2º da Emenda Constitucional 52/2006, que alterou a redação do art. 17, § 1º, da CF, para inserir em seu texto, no que se refere à disciplina relativa às coligações partidárias eleitorais, a regra da não-obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, e determinou a aplicação dos efeitos da referida Emenda "às eleições que ocorrerão no ano de 2002". Inicialmente, tendo em conta que a requerente demonstrara de forma suficiente como a inovação impugnada teria infringido a CF, afastou-se a preliminar da Advocacia-Geral da União quanto à ausência de fundamentação da pretensão exposta na inicial. Rejeitou-se, da mesma maneira, a alegação de que a regra inscrita no art. 2º da EC teria por objeto as eleições realizadas no ano de 2002, uma vez que, se essa fosse a finalidade da norma, certamente dela constaria a forma verbal pretérita. Também não se acolheu o argumento de que a aludida referência às eleições já consumadas em 2002 serviria para contornar a imposição disposta no art. 16 da CF, visto que, se a alteração tivesse valido nas eleições passadas, não haveria razão para se analisar a ocorrência do lapso de um ano entre a data da vigência dessa inovação normativa e as próximas eleições (CF: "Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.").

Quanto ao mérito, afirmou-se, de início, que o princípio da anterioridade eleitoral, extraído da norma inscrita no art. 16 da CF, consubstancia garantia individual do cidadão-eleitor — detentor originário do poder exercido por seus representantes eleitos (CF, art. 1º, parágrafo único) — e protege o processo eleitoral. Asseverou-se que esse princípio contém elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível inclusive à atividade do legislador constituinte derivado (CF, artigos 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV), e que sua transgressão viola os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Com base nisso, salientando-se que a temática das coligações está ligada ao processo eleitoral e que a alteração a ela concernente interfere na correlação das forças políticas e no equilíbrio das posições de partidos e candidatos e, portanto, da própria competição, entendeu-se que a norma impugnada afronta o art. 60, § 4º, IV, c/c art. 5º, LIV e § 2º, todos da CF. Por essa razão, deu-se interpretação conforme à Constituição, no sentido de que o § 1º do art. 17 da CF, com a redação dada pela EC 52/2006, não se aplica às eleições de 2006, remanescendo aplicável a estas a redação original do mesmo artigo. Vencidos, nessa parte, os Ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence que julgavam o pedido improcedente, sendo que o Min. Marco Aurélio entendeu prejudicada a ação, no que diz respeito à segunda parte do art. 2º, da referida Emenda, quanto à expressão "aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002" [07] (Sem grifos no original)

Entendendo por definitiva, pelo menos para o pleito de 2006, a configuração da verticalização, no dia 06 de junho de 2006, o TSE consegue novamente surpreender a todos quando, ao responder uma Consulta do Partido Liberal, veio a proibir por 6x1 que, no pleito de 2006, legendas sem candidatos à Presidência da República se coligassem, no âmbito dos Estados, com siglas que tivessem candidatos ao Planalto. Mais surpreendente ainda foi que, em menos de 48 horas depois, deu-se uma guinada de 180 graus, revertendo esta mesma decisão por unanimidade (7x0). Esse aparente atabalhoamento, ao invés de nos causar estranheza, serve para demonstrar os riscos aos quais estamos submetidos e a necessidade da adoção de posturas mais adequadas na leitura dessa história institucional que a todo tempo reinventamos.

O mais interessante que em tempos de coisa julgada inconstitucional (art. 5º, inciso XXXVI, CR/88) que busca problematizar uma segurança jurídica monolítica que afasta da tutela jurisdicional a capacidade de compor as partes como integrantes de uma comunidade política que eles mesmos fundaram (unidade x diferença). Desta forma, não vale a máxima de que ‘manda quem pode e obedece quem tem juízo’, porque a decisão foi produzida por um ‘soberano’ como nos primórdios do paradigma liberal e social [08]. Agora, as partes têm que sentir que suas pretensões foram levadas a sério – ou seja, que, do discurso de justificação (norma geral e abstrata produzida pelo legislativo) ao discurso de aplicação, o julgador considerou todas as especificidades do caso concreto (discurso de aplicação).

Isso só pode acontecer com uma mudança de mentalidade: demonstrar que nos concebemos como processo, as decisões não são mais com fundamento na autoridade (‘argumento da força’), por si só, mas na capacidade desta mesma autoridade conseguir fundamentar suas ações e torná-las plausíveis para os afetados (‘força do argumento’).

Com efeito, as críticas endereçadas à reengenharia da verticalização (pura) feita pelo TSE em 06.06.06 e sua retomada inversa (branda como no pleito de 2002) em menos de 48 horas depois demonstram que a sociedade em que vivemos é uma sociedade sem fundamentos absolutos, como se entendia outrora (Gustav Radbrusch), onde a segurança jurídica é não ter segurança jurídica, insólita e indiferente com o processo histórico de uma sociedade em constante mutação.

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Sobre o autor
Abraão Soares dos Santos

advogado em Belo Horizonte (MG), especialista em Direito Público, mestre e doutorando em Direito Constitucional pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Abraão Soares. A verticalização partidária:: o descompasso institucional numa democracia procedimentalista que transcenda aos aspectos conjunturais na permanente busca por segurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1110, 16 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8631. Acesso em: 6 mai. 2024.

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