Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2.ORIGEM: CONCEITOS FUGIDIOS OU AQUILO QUE PERMANECE. 3. (RE)CONSTRUÇÃO DAS LINHAS DECISÓRIAS OU COMO OS TRIBUNAIS DECIDEM(?).4. POR QUE A HISTÓRIA IMPORTA?. 5. SÍNTESE CONCLUSIVA.6.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
Como lembra Gadamer, estamos sempre dentro de uma situação, isto é, “um ponto de vista que limita as possibilidades de visão.”[1] Situação essa, prossegue o autor, na qual fomos lançados desde sempre e nos é anterior. Daí que a antecipação de sentido que nos possibilita extrair conclusões de textos ou de qualquer outro dado não nasce, exclusivamente, da nossa subjetividade, mas, também, decorre, “embora inconsciente e, portanto, não controlada, [d]essa estrutura da história dos efeitos”[2].
Nessa ordem de ideias, a partir da positivação no direito brasileiro do art.926 do CPC, não há mais espaço para que os Tribunais não prestem observância à relação de interdependência entre a cadeia de eventos do passado (dimensão diacrônica[3]) e do presente (dimensão sincrônica[4]). Enfim, deve haver a ideia de uma consciência histórica “que harmoniza entre si todas as disposições existentes do Direito escrito e os casos precedentes”[5] . É disso que se trata os princípios da coerência e integridade, assim entendidos:
Coerência significa igualdade de apreciação do caso e igualdade de tratamento.
(...)
A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios, por meio dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas voluntaristas.
a integridade e a coerência guardam um substrato ético-político em sua concretização, isto é, são dotadas de consciência histórica e consideram a facticidade do caso.[6]
Isso, pois, implica reconhecer a existência de uma verdadeira rede que forma as cadeias decisórias, que vão atribuindo sentido à norma aplicável ao respectivo caso, ao aproximar, naquele átimo, os âmbitos de validade e adequação[7].
Com isso em mente, debruçar-nos-emos sobre a contribuição PIS/COFINS, em razão do seu grande número de casos apreciados pelo STF e de suas constantes modificações legislativas[8], servindo-nos, por tudo isso, como exemplo paradigmático para nosso propósito.
Será (re)construído o edifício jurídico da obra escrita pelo STF, a partir da intepretação daquilo sufragado em alguns de seus julgados mais emblemáticos sobre a matéria. A partir disso, teremos que esclarecer os elementos normativos situacionais dentro desse horizonte, que devem ou deveriam funcionar como condição de possibilidade na apreciação dos futuros ou pendentes de julgamento.
2. ORIGEM: CONCEITOS FUGIDIOS OU AQUILO QUE PERMANECE
De forma mais ou menos direta, o Direito Empresarial possui inegável conexão com o Direito Tributário, uma vez que ambos, cada a um a seu modo e propósito, buscam disciplinar a relações que envolvem riqueza em si e a sua circulação.
Para os fins específicos do estudo da tributação das contribuições nominadas PIS/COFINS, interessa-nos, diretamente, alguns conceitos regulamentados pelas leis comerciais (empresariais), tais como ‘faturamento’, ‘receita’ e ‘lucro’.
Ocorre que, para entender o que temos hoje, faz-se necessário recuperar todo o percurso histórico e seus elementos contextuais, isto é, aquilo que do espaço-temporal cada época estava envolta[9]. Não há como desatrelar, com efeito, que cada contexto possui caraterísticas próprias, expectativas determinadas e problemas particulares a serem resolvidos.
Dito isso, introduzimos o que Sílvio de Salvo Venosa relembra da origem histórica da legislação comercial:
O nosso Código Comercial, entretanto, não elencou os atos do comércio, os quais, porém, foram normatizados pelo famoso Regulamento 737, de 1850, com o intuito de definir quais matérias estariam afetas aos Tribunais do Comércio, entre elas: (a) compra e venda de bens móveis e semoventes no atacado ou varejo, para revenda ou aluguel; (b) indústria; (c) bancos; (d) logística; (e) espetáculos públicos; (f) seguros; (g) armação e expedição de navios.[10]
A tipificação numerada dos chamados “atos de comércio”, contudo, foi atropelada pela dinamicidade dos fatos, pois:
A expansão do capitalismo amplia o rol de atividades criadoras de riquezas, gerando consequentemente a necessidade de ampliar o rol de atividades econômicas suscetíveis da tutela comercial. [11]
Como solução ou resposta para essa transformação, o Direito teve que se adaptar à nova realidade de modo que:
Os italianos, atentos a essa urgente necessidade de nova regulamentação, criam, em 1942, um novo sistema de disciplina das atividades privadas, a edição do Código Civil italiano de 1942. Nesse estatuto, ocorre a unificação do direito privado e a adoção da teoria da empresa que coloca o direito comercial no fulcro da organização da atividade econômica.
Pela teoria da empresa, toda atividade econômica exercida de forma organizada passa a contar com a tutela do direito comercial, abrangendo, inclusive, a atividade rural, a prestação de serviços, a atividade imobiliária e, não obstante não regulamentado especificamente pelo Código Civil, o comércio eletrônico.
O descompasso da realidade econômica com a legislação comercial no Brasil de 1850 levou à adoção paulatina pelo Judiciário da teoria da empresa no Brasil nos moldes da italiana. Igualmente, o Código de Defesa do Consumidor (1990) e a Lei de Locação Predial e Urbana (1991) inspiraram-se na teoria da empresa. Foi, entretanto, com a edição do Código Civil de 2002 que a teoria da empresa se consagrou unitariamente no sistema nacional.
O Código Civil de 2002, seguindo o modelo italiano, unificou o direito privado, trazendo a regulamentação do então Código Comercial para seu bojo. Não nos parece que tenha sido a solução mais acertada, em época legislativa governada maiormente por microssistemas. Trata-se de unificação legislativa para fins didáticos, não retirando a autonomia do velho direito comercial, hoje denominado direito de empresa. O Projeto de um novo Código Empresarial em curso se mostra acanhado e pleno de defeitos.[12]
Nesse sentido, pode-se perceber que, até antes da teoria da empresa, o Código, como o próprio nome dizia, estava indexado ao modelo econômico comercial, restrito a algumas atividades expressamente previstas. Isso explica por que a revogada Lei n.556/1850[13] cita quase uma dezena de vezes o termo ‘fatura’, utilizando o termo para designar o documento expedido pelo comerciante (vide art. 12, art. 172, art. 200, art. 219 etc.) na compra e venda de mercadorias. Os vocábulos ‘receita’ e ‘faturamento’, todavia, não são citados nem sequer uma vez.
A partir de 1976, a inovadora Lei n. 6.404/76 – LSA[14] recolocou o país no rumo das sociedades institucionalizadas, adequando-se ao modelo capitalista em expansão, não se limitando mais às velhas práticas mercantis e de serviços alhures. José A. T. Guerreiro chega a tecer, inclusive, efusivos encômios acerca LSA, festejando que:
Ao longo de três décadas e meia, não obstante ensaios de agressões às vezes oportunistas e tentativas de lesões impensadas, a lei se mantém como estatuto moderno e apto a servir às suas finalidades. [...] Boas leis, dizem antigas sentenças da sabedoria popular, são aquelas que não precisam de muita explicação.[15]
Realça, ainda, sua atemporalidade e adaptabilidade às mudanças - cada vez mais rápidas, que marcam o direito dos negócios -, em razão da sistematização de um conjunto de princípios, cuja interpretação faz com que se prescinda de exaustiva codificação. Nesse sentido, o autor ressalta que:
“A consideração da Lei 6.404, em tal perspectiva, como diploma que congrega, a um tempo, princípios sistemáticos de ordem geral e normas de aplicação especial a um tipo de sociedade comercial, rejeita a necessidade de codificação, assim entendida como “epicentro de um sistema de fontes de direito”. [...] certo é que a regulamentação jurídica das sociedades anônimas vem a ser, muito caracteristicamente, expressão perfeita e significativa do fenômeno reconhecido e várias vezes repertoriado como “decodificação do direito comercial”. E, assim, refoge por completo a qualquer necessidade ou conveniência de codificação.”[16]
Tendo em vista os princípios norteadores das Sociedades por Ações, positivaram-se regras a respeito da escrituração e elaboração das demonstrações financeiras, ou seja, previsões de normas contábeis para facilitar a prestação de informação aos seus usuários, a fim de que os[ar1] acionistas da companhia e futuros compradores pudessem tomar suas decisões no mercado da bolsa. Alexandre C. Silva assim traz a estrutura original de das regras:
Como ressaltado por Eliseu Martins em trabalho recente, “o modelo da Contabilidade mais tradicional e antigo, e o mais utilizado universalmente, é o modelo da representação do patrimônio en da sua evolução a valor histórico. Seu objetivo principal, em termos de valoração, não é medir o valor do patrimônio, mas sim o de sua mutação mais relevante, o lucro”. Foi com base neste modelo tradicional que o sistema da LSA se estruturou no que diz respeito à escrituração das companhias e elaboração das demonstrações financeiras, visando a exprimir corretamente a situação financeira do patrimônio e a apuração de lucros não fictícios [...].[17]
Destaca-se que o regramento acerca da demonstração contábil das sociedades empresárias (Seção II – Demonstrações Financeiras) não se utiliza, em nenhum momento, da palavra ‘faturamento’. Por outro lado, a grandeza ‘receita’ sempre recebeu tratamento específico, sendo regulado as várias espécies de ‘receitas’ e ‘lucros’. Sua conceituação, entretanto, não é dada pelo direito, isto é, não existe uma definição legal para o termo, sendo ela emprestada de outros ramos do conhecimento, como as ciências econômicas e contábeis.
A voracidade do tempo, contudo, demandou a alteração promovida pela Lei n. 11.638/2007, para que se adaptasse às regras contábeis do IFRS, com manifesto propósito de aproximar-se dos padrões internacionalmente utilizados pelo mercado global, com especial atenção para
“a posição financeira do patrimônio a partir da avaliação de ativos e passivos, fornecendo informações que permitam os usuários das demonstrações financeiras inferir os fluxos de caixa futuros e derivados da atividade da empresa.”[18]
Aliás, o artigo 177, caput, prevê, expressamente, que deverá se prestar obediência “aos princípios de contabilidade geralmente aceitos, devendo observar métodos ou critérios contábeis uniformes no tempo”, consagrando-se normas de textura aberta.
Diante das modificações promovidas, a ‘receita’ passou a “compreender também os aumentos no valor de ativos decorrentes de sua avaliação pelo “valor justo””[19].
Por sua vez, no seu papel de orientar a disciplina e a intepretação das regras contábeis, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC, enuncia, por meio do pronunciamento técnico CPC 00, a definição de receitas como sendo:
“aumentos nos benefícios econômicos durante o período contábil sob a forma de entrada ou aumento de ativos ou diminuição de passivos, que resultam em aumentos do patrimônio líquido e que não sejam provenientes de aporte dos proprietários da entidade.”[20]
Generaliza, ainda, exemplificando que:
74 A definição de receita abrange tanto receitas propriamente ditas como ganhos. A receita surge no curso das atividades ordinárias de uma entidade e é designada por uma variedade de nomes, tais como vendas, honorários, juros, dividendos, royalties e aluguéis.
75 Ganhos representam outros itens que se enquadram na definição de receita e podem ou não surgir no curso das atividades ordinárias da entidade, representando aumentos nos benefícios econômicos e, como tal, não diferem, em natureza, das receitas. Conseqüentemente, não são considerados como um elemento separado nesta Estrutura Conceitual.
76 Ganhos incluem, por exemplo, aqueles que resultam da venda de ativos não-correntes. A definição de receita também inclui ganhos não realizados; por exemplo, os que resultam da reavaliação de títulos negociáveis e os que resultam de aumentos no valor de ativos a longo prazo. Quando esses ganhos são reconhecidos na demonstração do resultado, eles são usualmente apresentados separadamente, porque sua divulgação é útil para fins de tomada de decisões econômicas. Esses ganhos são, na maioria das vezes, mostrados líquidos das respectivas despesas.
77 Vários tipos de ativos podem ser recebidos ou aumentados por meio da receita; exemplos incluem caixa, contas a receber, mercadorias e serviços recebidos em troca de mercadorias e serviços fornecidos. A receita também pode resultar da liquidação de passivos. Por exemplo, a entidade pode fornecer mercadorias e serviços a um credor em liquidação da obrigação de pagar um empréstimo.
No que concerne ao conceito de ‘faturamento’, o relatório da audiência pública da CPC n. 30[21] ressaltou que a matéria não mereceria um tratamento contábil específico, arrazoando o que segue:
Sugestão de discussão a respeito da diferença entre faturamento e receita, de receita base de incidência de tributos, etc.
Razão: O CPC entendeu ser essa matéria, como alguns extensos trabalhos recebidos bem evidenciaram, muito mais de natureza tributária do que contábil. Assim, deliberou se ater exclusivamente ao conceito contábil de receita, deixando para registro à parte, sem divulgação na demonstração do resultado, de quaisquer diferenças entre esse conceito contábil e o valor base para fins tributários. [...]
Pelo exposto, fácil perceber que a legislação que cuida das sociedades empresárias sofreu, fortemente, influência da dimensão da realidade que ela dialoga e que visa a regular. Em razão das rápidas mudanças da sociedade, alterações legislativas foram promovidas, conceitos foram modificados ou adormecidos e vocábulos foram ignorados. Tudo isso não passou despercebido pela jurisprudência, que teve importante papel na atualização do Direito Empresarial, notadamente na aplicação de princípios para dar conformidade ou o melhor sentido às regras até então previstas.