Sumário: 1. Pressupostos de uma Nova Teoria de Interpretação Constitucional em uma sociedade pluralista. 2. A Derrocada do Modelo Lógico-dedutivo. 3. O Papel da Sociedade Aberta (Pluralista) no Processo Interpretativo. 4. O Problema da Legitimação da Interpretação Constitucional. 5. Resumo e Avaliação Crítica da Nova Hermenêutica de Peter Häberle e de seus parâmetros de validade. Notas. Referências Bibliográficas.
1- Pressupostos de uma Nova Teoria de Interpretação Constitucional em uma sociedade pluralista
Delinear os principais aspectos da nova teoria da interpretação constitucional de maneira objetiva é o escopo do presente estudo, que analisará a tese defendida por Peter Häberle em sua obra "Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição" no tocante à realização de um método de interpretação constitucional que preveja a compreensão de todas as potências públicas, grupos sociais e cidadãos envolvidos ou que, de forma direta ou indireta, influenciem, no labor interpretativo dos agentes formalmente legitimados para produzir a norma em abstrato e em concreto.
A tensão existente entre a realidade constitucional e a própria Constituição é base da teoria de Peter Häberle e é com o propósito de desvendar essa teoria que se propõe a leitura dos itens seguintes.
2- A Derrocada do Modelo Lógico-dedutivo
Teorizar acerca de um novo método interpretativo exige o enfrentamento do modelo até então vigente e a demonstração de suas insuficiências em virtude da existência de novos paradigmas sociais. Nesse passo, Peter Häberle propõe o esgotamento do modelo lógico-dedutivo (método sistemático), assim como do monopólio interpretativo do Estado (monismo jurídico).
"A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma ‘sociedade fechada’. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida em que se concentra, primeiramente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados."[1]
É bem verdade que a nova hermenêutica compreende uma vertente valorativa, com nítida preferência por recorrer à Moral a fim de se alcançar a Justiça e, dessa forma, prescrever o encadeamento de valores capazes de socorrer o intérprete nas insuficiências da norma positiva, em que se ressaltam as obras de Chaïm Perelman e Robert Alexy. Porém, em razão do enfoque dado ao presente trabalho, procurar-se-á muito mais analisar a questão dos fatos e sujeitos que influenciam na realização da interpretação e na concretização da norma em uma sociedade pluralista do que procurar definir um conceito universal capaz de legitimar (através da moral e da retórica) a atividade interpretativa.
Adota-se, portanto, a outra vertente da nova hermenêutica com base na teoria de Peter Häberle, em que é acompanhado por Friedrich Müller e Castanheira Neves.
Apesar disso, devemos destacar a importante contribuição da primeira corrente (que mais aproxima o Direito da Moral) na derrocada do modelo lógico-dedutivo, imposto pelo positivismo clássico. Nesse sentido, vejamos a importante observação da professora Margarida Maria Lacombe Carmargo:
"O método sistemático, caracterizado pelo seu hermetismo, e que marcou o positivismo filosófico dos séculos anteriores, não correspondia mais às perplexidades e inseguranças causadas por um mundo de novos e variados valores, notadamente quando as atrocidades do nazismo, cometidas sob a proteção da lei, mostraram que a lei nem sempre é justa. Daí a atuação do Tribunal de Nuremberg, no imediato pós-guerra, ao decidir conforme os princípios gerais de moral universal."[2]
Perceba-se que o conjunto de novos valores, em uma sociedade marcada por profundas disparidades de interesses, permitiu o surgimento de uma teoria constitucional que não mais se alicerçasse na estrita obediência à norma legitimamente criada pelo ente estatal, mas, ao contrário, buscasse, através de valores universais e "sensos comuns" trazidos pela tradição, o ponto de convergência capaz de trazer o consenso aos conflitos sociais, privilegiando o processo argumentativo (Nova Retórica).
Nesse contexto, em que o ato interpretativo é questionado pela sociedade pluralista que então emergia ansiando por espaço na legitimação das decisões (no âmbito político e judicial) e na concretização das normas jurídicas, surge a necessidade de compreendermos a forma de participação desses novos agentes do processo hermenêutico.
3- O Papel da Sociedade Aberta (Pluralista) no Processo Interpretativo
A Sociedade Aberta definida por Habërle[3] cumpre papel dúplice no novo método de interpretação constitucional. Ela tanto é objetivo, como é criadora desta interpretação, pois, ao mesmo tempo em que o método constitucional procura atender às expectativas dos grupos sociais (potências públicas) – e, por isso, é objetivo - , também sofre influência destes no processo criativo em que se constitui a interpretação constitucional, ou seja:
"A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade. (...)Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade."[4]
Constitui-se, portanto, em uma sociedade aberta aquela que compreende a participação, direta ou indireta, dos agentes sociais no processo hermenêutico, cabendo aos mesmos tanto a função de intérprete como a de destinatário.
"Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da constituição."[5]
Rompe-se, dessa forma, com o monopólio estatal da interpretação constitucional, admitindo a participação, não só dos tradicionais intérpretes da norma jurídica (juízes e políticos), mas também daqueles que atuam como co-intérpretes (experts, grupos singulares, organizações religiosas, imprensa, etc.), influenciando no processo criativo.
Conclui-se, portanto, que "a interpretação constitucional não é um ‘evento exclusivamente estatal’."[6], mas advém de uma série de fatores sociais, provocados por todos aqueles grupos e indivíduos catalogados por Peter Häberle no capítulo II da obra em referência (catálogo sistemático), que influenciam tanto no momento da criação quanto no da concretização da norma jurídica.
4- O Problema da Legitimação da Interpretação Constitucional
A compreensão da questão relativa à legitimidade da interpretação constitucional em uma sociedade aberta pressupõe, segundo Häberle, a noção de interpretação em sentido lato, praticada pelos agentes sociais envolvidos no processo hermenêutico, e de uma interpretação em sentido estrito, que consiste na atividade consciente de interpretação praticada pelos agentes tradicionalmente legitimados a produzir o entendimento sobre a norma (juizes, parlamentares, etc.).
Isso não significa dizer que ambos os intérpretes (em sentido lato e estrito) participam da mesma forma do processo hermenêutico, pois, é inequívoco, que os juízes constitucionais dão a última palavra acerca da interpretação da norma. O que se pretende afirmar é, diversamente, que os juízes constitucionais não participam de forma isolada deste processo, sofrendo influências dos intérpretes latos de modo a colher as informações necessárias à obtenção de um resultado mais justo e razoável, ou seja:
"Imaginemos um funil, onde a abertura superior e maior representa a gama de interpretações sobre uma determinada matéria, formuladas pelos diversos legitimados. À medida que o processo se desenvolve, percebe-se que o número de interpretações diminui. Muitas são reformuladas, outras se fundem. Há um verdadeiro processo de liquidificação dessas interpretações até que a Corte Constitucional defina qual ou quais são aceitáveis e adequadas para aquela matéria. (...) O aumento na participação produzirá o surgimento de novas alternativas, as quais propiciarão ao juiz constitucional um contato maior com a realidade, decidindo, assim, teoricamente, de forma mais adequada, justa e legítima."[7]
Cumpre ressaltar, ainda, que a legitimação a que se refere Häberle não se confunde com aquela teorizada por Luhmann na sua obra "Legitimação pelo procedimento". Enquanto a primeira exige a participação qualitativa e de conteúdo dos intérpretes (em sentido lato e estrito) para se alcançar a legitimação da jurisdição constitucional, esta última, teorizada por Luhmann, prevê a conformação com o procedimento adequado e sujeitos legitimados para produzir uma verdadeira interpretação. Senão vejamos a observação do próprio Häberle:
"Também a ‘legitimação pelo procedimento’ no sentido de Luhmann é uma legitimação mediante a participação no procedimento. Todavia, trata-se aqui de algo fundamentalmente diferente: participação no processo não significa aptidão para aceitação de decisões e preparação para se recuperar de eventuais decepções. Legitimação, que não há de ser entendida apenas em sentido formal, resulta da participação, isto é, da influência qualitativa e de conteúdo dos participantes sobre a própria decisão. Não se trata de uma ‘aprendizado’ dos participantes, mas de um ‘aprendizado’ por parte dos Tribunais em face dos diversos participantes."[8]
Cumpre abrir um parêntese para destacar peculiar observação promovida pelo professor Inocêncio Mártires Coelho acerca da teoria ora em análise. Segundo o prestigiado professor, a "Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição" nada mais seria do que a constitucionalização dos fatores reais de poder, já anteriormente desenvolvidos por Lassalle na obra "Essência da Constituição".[9]
O fundamento desse processo de legitimação da interpretação constitucional, segundo Häberle, se alicerça em três pontos de vista: o da teoria do direito, da norma e da interpretação, o da teoria da Constituição e o da teoria da Democracia.
O primeiro ponto de vista compreende os intérpretes inseridos na realidade constitucional, constituindo-se em agentes legitimadores do processo de criação da norma realizado pelos intérpretes em sentido estrito. A legitimação se produz na medida em que os intérpretes em sentido lato fornecem subsídios à lei e, por isso, torna-a legítima.
Já em relação à teoria Constitucional, em que se concebe a Constituição já inserta no ordenamento vigente, esta se encontra em constante processo de legitimação social, haja vista que, em uma sociedade aberta, a Constituição deve obediência aos fatores sociais que determinam sua legitimação constantemente, adequando-se a ela para alcançar a plena efetividade.
A legitimação sob o prisma da teoria da Democracia pretende garantir, dentro da perspectiva pluralista da sociedade, os direitos fundamentais do "povo", sendo este concebido como "elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora do processo constitucional"[10], a fim de proporcionar-lhe a melhor forma de participação na interpretativa da Constituição. Ou seja, somente através da garantia de direitos fundamentais do cidadão, pode este agente exercer livremente seu potencial interpretativo, em outras palavras:
"Nas democracias modernas, portanto, os cidadãos interpretam a Constituição e, por essa razão, tornam-se mais relevantes as cautelas adotadas com o objetivo de garantir a liberdade, tais como: a política de garantia dos direitos fundamentais de caráter positivo; a liberdade de opinião e a constitucionalização da sociedade."[11]
A opinião de Häberle, contudo, não encontra uníssono na doutrina acerca da matéria, principalmente em autores como Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional) e Canotilho (Constituição dirigente e vinculação do legislador), que afirmam que a teoria da legitimação da Constituição por ente externo e não formalmente considerado provoca um enfraquecimento do processo legislativo em detrimento de uma interpretação que muito dificilmente alcançará o consenso por exigir uma base social estável, pressupostos institucionais firmes e uma cultura política bastante desenvolvida.
5- Resumo e Avaliação Crítica da Nova Hermenêutica de Peter Häberle e de seus parâmetros de validade
Vimos anteriormente, que a tese proposta por Peter Häberle na obra ora comentada, faz parte de um conjunto de teses desenvolvidas com o intuito de instituir uma nova ordem no processo hermenêutico que fizesse frente às críticas até então existentes do modelo lógico-dedutivo, presença marcante do positivismo clássico.
Vimos, ainda, que o presente trabalho tem como objetivo não apenas descrever a obra de Peter Häberle, mas sim, e principalmente, analisar as questões por ele enfrentadas à luz dos comentários da doutrina acerca da teorização de uma "sociedade aberta" capaz de, ao mesmo tempo, legitimar a criação da norma e, da mesma forma, legitimar a interpretação adotada pelos intérpretes estatais (intérpretes em sentido estrito) através de mecanismos de influência direta ou indireta no processo hermenêutico.
A compreensão do tema exigiu a análise tanto das críticas quanto dos elogios à imprescindível obra de Peter Häberle. Porém, ressaltou-se do estudo a originalidade controversa da teoria – o que, em hipótese alguma, afasta a importância da teoria ao fim a que se propõe, qual seja: reaproximar a Constituição da realidade em que se insere –, pois restou clara a fonte epistemológica de seu estudo.
Houve, inequivocamente, uma associação das teorias de Karl Popper, e sua "sociedade aberta" crítica e racional, com a de Lassalle, que previu os fatores reais de poder e sua influência na tomada de decisões dos entes estatais.
Com relação à dificuldade de obtenção do consenso democrático, principalmente em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais como a nossa, não podemos deixar de refletir acerca da real natureza da teoria hermenêutica proposta por Häberle. É bem verdade que existem dificuldades materiais para se utilizar de maneira coerente as diversas manifestações interpretativas que se originam do seio da sociedade, mas não se pode deixar de proporcionar a participação de todas essas potências públicas no processo de interpretação Constitucional.
Perceba-se que não se pretende aqui o convencimento de todos acerca da solução mais justa ao caso concreto, mas sim a possibilidade de aferição, por parte do profissional envolvido com o labor hermenêutico, de todas as opiniões e pontos de discussão presentes na sociedade, antes de formar seu convencimento.
Até este momento, não há a preocupação de argumentar para o convencimento do auditório universal, tarefa esta destinada à Nova Retórica e à Teoria da Argumentação (Chaïm Perelman em Nova Retórica), mas sim de problematizar as questões jurídicas de forma a compreender no processo hermenêutico os diversos fatores e valores presentes na sociedade aberta.
A teoria haberliana, portanto, atende aos anseios sociais de participação popular no processo de legitimação da norma, garantindo, ainda, a incolumidade dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Notas
- HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997, pág. 12.
- CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. 3ª edição. Rio de Janeiro: editora Renovar, 2003, pág. 139/140.
- Cumpre ressaltar que a primeira definição de Sociedade Aberta, segundo os moldes adotados por Peter Häberle, encontra-se na obra de Karl Popper, e constituía-se na sociedade baseada na razão crítica humana.
- HÄBERLE, Peter. Op. Cit, pág. 13.
- Idem, pág. 15.
- Ibidem, pág. 23.
- AMARAL, Rafael Caiado. Breve ensaio acerca da Hermenêutica Constitucional de Peter Häberle. Brasil, 2006. disponível em www.ihj.org.br>. Acesso em 02/04/2006.
- HÄBERLE, Peter. Ob. Cit. Pág. 31/32.
- COELHO, Inocência Mártires. Honrad Hesse/Meter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, nº 138, 1998, pág. 186. in AMARAL, Rafael Caiado. Op. Cit.
- HÄBERLE, Peter, Ob. Cit. Pág. 37.
- AMARAL, Rafael Caiado. Ob. Cit.
Referências Bibliográficas
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1997.
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação: uma contribuição ao estudo do Direito. 3ª edição. Rio de Janeiro: editora Renovar, 2003.
AMARAL, Rafael Caiado. Breve ensaio acerca da Hermenêutica Constitucional de Peter Häberle. Brasil, 2006. disponível em www.ihj.org.br>. Acesso em 02/04/2006
COELHO, Inocência Mártires. Honrad Hesse/Meter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, nº 138, 1998, pág. 186. in AMARAL, Rafael Caiado.