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A nova cédula de produtor rural. Legislação realmente mais benéfica?

23/06/2021 às 15:25
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Enquanto o resto do mundo protege suas atividades produtivas da exploração mercantil desenfreada, a nova lei expõe a riscos graves o setor do agronegócio.

A lei que apresentava as regras para as Cédulas de Produtor Rural, CPRs, foi modificada pela Lei 13.986, de 7 de abril de 2020, alterando a Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994.

A base de defesa das mudanças seria a melhoria da competitividade do agronegócio.

Porém, considerando as mudanças será que a melhoria é para o setor de agronegócio?

 "Art. 1º Fica instituída a Cédula de Produto Rural (CPR), representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas.

Na nova realidade mudou o nome mas a forma de uso da mesma, que há décadas existia no agronegócio como sendo uma ferramenta segura de fomento agrícola teve ampliadas as garantias, os emitentes, a cartularidade da mesma e a mercantilização da mesma.

O nome da CPR passou a ser a “CPR FINANCEIRA”.

Mudou as formas de garantias acrescentando ao penhor agrícola, hipoteca a alienação fiduciária que, embora citada na lei anterior, na prática não era aplicada. Além disso foi incluído alienação fiduciária de bens imóveis e patrimônio rural em afetação

Patrimônio rural em afetação é a parte do patrimônio que não se mistura com o total de bens do agricultor, sendo reservado especificamente para garantia da CPR.

Há a reserva de um bem ou fração de um que fica como garantia exclusiva da CPR firmada, sendo esta garantia registrada na matrícula do imóvel, como garantia real, valendo contra terceiros.

Na prática vencendo a cédula rural sem a quitação, o emitente da CPR pode, sem processo judicial (o que é ilegal), transferir para seu nome este patrimônio reservado.

Esta garantia é bastante contundente pois, em caso de frustração de safra, o imóvel ou fração em afetação é automaticamente tomado pelo credor.

A alienação fiduciária sobre o imóvel também faz a transmissão de propriedade do imóvel ao emitente da CPR e somente volta a ser do agricultor quando quitada a cédula.

Esta prática, em razão da função social da propriedade rural era afastada visando evitar que grandes empresas ou conglomerados adquirissem terras e o agricultor perdesse sua fonte de renda.

Art. 13 - Os contratos agrários regulam-se pelos princípios gerais que regem os contratos de Direito comum, no que concerne ao acordo de vontade e ao objeto, observados os seguintes preceitos de Direito Agrário:  

(...)

IV - proibição de renúncia, por parte do arrendatário ou do parceiro não-proprietário, de direitos ou vantagens estabelecidas em leis ou regulamentos;

V - Proteção social e econômica aos arrendatários cultivadores diretos e pessoais

Em decisão do STJ, em maio de 2016, no julgamento do REsp 1.447.082/TO, de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, aquela Corte excluiu a aplicação do direito de preferência legal para empresa rural de grande porte, visto que as normas protetivas do Estatuto da Terra devem ser aplicadas somente a quem explore a terra pessoal e diretamente, como típico homem do campo.

Na contramão surge a nova lei abrindo caminho para as grandes empresas poderem se apropriar de propriedades rurais, altamente rentáveis e muito disputadas no mercado imobiliário.

A lei inclui alienação fiduciária de produtos e subprodutos agropecuários de titularidade do fuduciante (emitente) de terceiro garantidor e remete as normas do Código Civil para regulamentação, permitindo como garantia tudo o que não for contrário ao disposto na nova lei.

Aqui destacamos que a amplitude de garantias onde permite “tudo” que não contrariar a lei deixando muita margem para interpretações.

É nítida a mudança da proteção a função social da propriedade rural concedida pelo Estatuto da Terra para as regras do Código Civil demonstrando claramente que o que se busca não é melhorar o fomento agrícola mas permitir formas oblíquas de aquisição de propriedades rurais.

Tanto que permite a busca e apreensão conforme Decreto 911/69 (Lei da busca e apreensão), ou seja, em caso de atraso o credor pode tomar para si o bem que foi dado em garantia.

Há também a possiblidade de vencimento antecipado, com todas as penalidades de contratos financeiros pesados.

Outra mudança bastante importante foi a ampliação do ROL DE EMITENTES da CPR-F.

O que era restrito ao agricultor, associações ou cooperativas agora pode ser emitida por pessoas naturais ou jurídicas independente de serem do setor do agronegócio agora pode ser emitido por grandes investidores.

A lei cita cooperativas agropecuárias, associações de produtores rurais com a condição de que seja emitida para exploração de floresta nativa ou plantada bem como promovam a industrialização de bens rurais.  Aqui a abertura para as indústrias de produtos agropecuários, ou seja, os grandes grupos de frigoríficos ou de indústria de alimentos e até grupos internacionais.

Causa perplexidade o uso do termo  “exploração de floresta nativa ou plantada”.

Enquanto as regras ambientais são contundentes quanto a exploração de qualquer natureza das áreas de florestas e reservas a lei publicada permite emissão de CPR para quem explore estas áreas. Como isso vai funcionar na prática??

Além disso a lei traz conceitos muito amplos abrangendo tudo que pode ser considerado como “ambientalmente sustentável” deixando ao Executivo a liberdade para decidir sobre ampliação deste rol, o que nos parece nefasto para o meio ambiente considerando as práticas governamentais atuais. (art. 43, parágrafo 3º)

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Será designada “Cédula de Produto Rural com liquidação financeira”, e poderá ser negociada desde que registrada no BACEN, como título ativo financeiro.  Como dito anteriormente, poderá circular e mudar de credor até a data de seu cumprimento.

O devedor da CPR-F pode ser cobrado por um credor que em nada tinha relação com o negócio original.

Muda totalmente a natureza de fomento do agronegócio para mercantilização tanto da área agrícola quanto do meio ambiente.

Ela se torna mais grave que os contratos bancários padrão vez que é permitido a sua vinculação a taxas de câmbio flutuante ou variação cambial. São índices muito voláteis e geram uma grande incerteza ao emitente quanto ao resultado.

O que se denota é que a nova CPR tem muitos perigos ao agricultor que deve estar muito atento ao assinar tais documentos.

O objetivo alegado pelo Governo seria abrir a concorrência entre instituições financeiras particulares para uso das CPR e com isso baixar os juros do agronegócio.

Todavia o que a lei fez foi jogar o agricultor no mercado financeiro sem proteção alguma e se livrar de cumprir a obrigação de fomento agrícola que garante aos agricultores direito a linhas de créditos mais baixas para tornar cada vez mais produtiva as terras agricultáveis, independente do tamanho.

A norma deixa claro a natureza de título executivo extrajudicial, permite o leilão da garantia por qualquer preço sendo que se este for insuficiente o emitente continuará devedor, permite a retomada automática do patrimônio em afetação e a alienação fiduciária com busca e apreensão imediata em caso de não pagamento.

Os artigos da lei trazem permissões que contrariam frontalmente o sistema jurídico constitucionalmente instituído.

Há na lei previsão de retomada extrajudicial, o que não é permitido pois a Constituição garante que ninguém será privado de seus direitos ou propriedade sem o devido processo legal.

Parece que a CPR-F é uma norma alheia as demais legislações vigentes.

Enquanto o resto do mundo protege suas atividades produtivas da exploração mercantil desenfreada, a nova lei expõe a riscos graves o setor do agronegócio.

Como tudo neste país, quando um setor se destaca, como o caso do agronegócio e tem lucratividade o Governo dá um jeito de interferir e buscar vantagens financeiras bem como permitir entrada de investidores internacionais como forma de fechar o rombo das contas públicas.

O Brasil está mercantilizando e vendendo o agronegócio, correndo o risco de perder a cadeia produtiva que sustenta o PIB há muitos anos e que vem crescendo graças ao trabalho de brasileiros que somente agora estão tendo lucratividade.

Nas décadas de 80 e 90, quando o preço dos produtos agrícolas mal pagava os custos, ninguém do setor privado investia e até o Governo deixava de cumprir o seu papel.

Em caso de frustração de safra era possível prorrogar a dívida, veio a securitização, enfim meios para manter o setor nada lucrativo trabalhando com o mínimo, tudo para manter o homem do campo em sua terra e mesmo sem lucro continuar plantando.

Agora que os lucros são altos neste setor vem a legislação que deixa muitas decisões ao alvitre do Executivo, deixa margens a interpretações em muitos pontos.

Todavia é bastante clara a dar garantias aos financiadores de que as garantias do direito de propriedade rural definidos no Estatuto da Terra não existem mais, valendo as regras do mercado financeiro da forma mais algoz possível.

É verdadeira abertura de possibilidade de aquisição de propriedades rurais para vários setores que não tinham acesso, criando uma situação em que o que era seguro tornou-se o setor de empréstimos mais arriscado do mundo financeiro atual.

Espero sinceramente que muitas das ilegalidades, inconstitucionalidades e conflitos desta lei com o sistema jurídico vigente venham a anular a aplicação destas práticas usurárias contra o setor do agronegócio.

Ainda é possível que o Judiciário e a prática evitem os prejuízos que esta lei pode causar, mas somente saberemos com o decorrer do tempo e início dos conflitos.

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Sobre a autora
Maria Regina Vizioli

Prezado leitor, sou advogada há mais de 25 anos atuando na área jurídica empresarial, tributária, agronegócios e contratos. Minhas ideias e opiniões técnicas sobre alguns temas são baseadas em estudo somado a experiência das várias mudanças que impactam a sociedade e a solução depende de ações jurídicas. Espero contribuir com alguns questionamentos e teses para enriquecer debates e lapidar soluções.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIZIOLI, Maria Regina. A nova cédula de produtor rural. Legislação realmente mais benéfica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6566, 23 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91291. Acesso em: 27 abr. 2024.

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