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Sociedade empresarial entre cônjuges.

Breve análise do art. 977 do Código Civil e a questão do direito intertemporal

17/11/2006 às 00:00
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Entre as inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, está a inclusão de um título destinado especificamente ao Direito de Empresa (Livro II) e, dentro deste, a regra do art. 977, que veda a contratação de sociedade entre cônjuges casados no regime da comunhão universal ou separação obrigatória. A redação do dispositivo poderia levar o intérprete a concluir que as sociedades formadas antes da nova lei e ainda existentes após seu advento não teriam solução de continuidade, o que, todavia, não nos parece ser o entendimento mais adequado, já que tal ilação esbarraria no óbice do ato jurídico perfeito.

Com efeito, assim dispõe o art. 977 do Código Civil: Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham sido casados no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

É preciso reconhecer, antes de tudo, que a vedação legal tem razões óbvias. No primeiro caso – o da comunhão universal – a sociedade seria uma espécie de ficção, já que a titularidade das quotas do capital de cada cônjuge na sociedade não estaria patrimonialmente separada no âmbito da sociedade conjugal.

Já no que tange ao regime da separação obrigatória, seria ilógico as partes contratarem sociedade se a lei não lhes permite misturar seus patrimônios no âmbito do casamento.

Em outras palavras, pela atual lei só é permitida a constituição de sociedade entre marido e mulher, ou entre ambos e um terceiro, quando forem casados sob o regime da separação total de bens (art.1.687), separação parcial (art. 1.658) ou participação final nos aqüestos (art. 1.672).

A questão que surge deste dispositivo é saber-se se os cônjuges nesta situação de regime de bens e que contrataram sociedade antes do advento do novo Código Civil devem ou não se adaptar à nova regra (no prazo do art. 2.031 do Código Civil), tendo em vista a teoria do ato jurídico perfeito, seja alterando o quadro societário, seja modificando o regime de casamento (expressamente permitido pelo art. 1.639, § 2º).

Ao comentar o artigo em exame, NELSON NERY JR. e ROSA MARIA ANDRADE NERY são categóricos ao afirmar que tais sociedades deverão se adaptar ao novo regramento, alterando os respectivos contratos sociais [01].

No mesmo sentido, vem PABLO STOLZE GAGLIANO, que, embora critique acidamente a postura do legislador, reconhece que a única saída aos sócios cônjuges seria a modificação do regime de casamento, adaptando-se às exigências da nova lei [02].

Não cremos, todavia, que as sociedades entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória, se formadas antes do Código Civil vigente, devam se adaptar à nova lei.

Isto porque, ao que nos parece, a questão deve ser analisada à luz do art. 5º, XXXVI, da Constituição, que esclarece: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; considerando que o ato jurídico perfeito é aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou (art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil); assim como tendo em mente que o atual art. 2.035 dispõe que a validade dos atos jurídicos constituídos sob a égide do Código Civil de 1.916 obedece às suas disposições.

Daí é que, para nós, as sociedades entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória, constituídas antes da vigência do novo Código Civil, por representarem ato jurídico perfeito, não poderão sofrer qualquer abalo pela regra do atual art. 977. É dizer, pois, que as sociedades poderão permanecer com seu quadro societário composto pelos cônjuges inalterado.

Ao debruçar-se sobre o assunto, a propósito, PATRÍCIA BARREIRA DINIZ SOARES apresentou a posição do Departamento Nacional de Registro do Comércio, pelo qual se decidiu que a proibição do art. 977 do Código Civil não se aplicaria às sociedades entre cônjuges formadas antes do Código de 2002 em respeito ao ato jurídico perfeito, assim como a orientação seguida pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, que procederá normalmente ao registro das alterações dos contratos sociais das sociedades existentes antes da nova lei, sem analisar o regime de bens dos sócios [03].

Note-se, apenas para constar, que a importância prática desta abordagem está em que a irregularidade da sociedade entre cônjuges – que se verificaria quando esta fosse constituída entre marido e mulher sócios casados sob os regimes vedados – pode acarretar na sua responsabilidade ilimitada, o que, evidentemente, contraria a intenção de qualquer empresário, criando uma situação não desejável de insegurança jurídica. Vê-se, então, que o tema é delicado, tem grande importância prática e mereceria um tratamento mais incisivo do legislador, não deixando arestas ou dúvidas.

Portanto, apenas a título de conclusão, podemos afirmar que as sociedades entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal ou da separação obrigatória, se formadas antes da vigência do novo Código Civil (ou seja, aquelas formadas até 10 de janeiro de 2.003), são resultantes de avenças celebradas sob a égide de lei que lhes permitia essa contratação, devendo ser reputadas como atos jurídicos perfeitos, de tal sorte que o art. 977 não lhes pode ser oponível, o que significa dizer que é desnecessário que esses empresários busquem adaptar-se, neste ponto, à atual legislação. A dubiedade deveria, de qualquer forma, ser evitada pelo legislador, diante da enorme importância prática da questão.

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Notas

01 NERY JR., Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3ª ed., São Paulo: RT, 2005, p. 562.

02 GAGLIANO, Pablo Stolze. Sociedade formada por cônjuges e o novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 64, abr. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4001>. Acesso em 11.11.2006. Destacamos os seguintes comentários do autor: A impressão que se tem é de que a lei teria "oficializado a figura do laranja". Tudo isso porque, inadvertidamente, o legislador firmou uma espécie de "presunção de fraude" pelo simples fato de os consortes constituírem sociedade, impondo-lhes o desfazimento da sociedade, se forem casados sob os regimes referidos pelo art. 977. Não concordamos com essa postura. A condição de casados, por si só, ou a adoção deste ou daquele regime, não poderia interferir na formação de uma sociedade, sob o argumento da existência de fraude. Toda fraude deve ser apreciada in concreto, e não segundo critérios apriorísticos injustificadamente criados pelo legislador.

03 SOARES, Patrícia Barreira Diniz. As empresas e o novo Código Civil. Curitiba: Cenofisco, 2004, p. 74 e seguintes.

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Sobre o autor
Denis Donoso

Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor da Faculdade de Direito de Sorocaba (Fadi) e da Faculdade de Direito de Itu (FADITU). Coordenador do curso de pós-graduação "lato sensu" da Faculdade de Direito de Itu (FADITU). Professor convidado nos cursos de pós-graduação da Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e da Escola Paulista de Direito (EPD). Advogado e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DONOSO, Denis. Sociedade empresarial entre cônjuges.: Breve análise do art. 977 do Código Civil e a questão do direito intertemporal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1234, 17 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9169. Acesso em: 18 abr. 2024.

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