Capa da publicação Desenvolvimento da ciência jurídica na Alemanha
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O caos reinante e o desenvolvimento da ciência jurídica:

o exemplo alemão da primeira metade do século XX

Leia nesta página:

Discutem-se os (des)encontros entre os dramáticos acontecimentos da história alemã na primeira metade do século XX e o desenvolvimento da ciência jurídica, através de autores e teorias inovadoras influentes até hoje.

É interessante notar o quanto foi prolífica a produção científica relacionada ao Direito na Alemanha da primeira metade do século XX. Aquela definitivamente já não era mais a Alemanha recém-unificada da época de Savigny, Von Ihering e Lassale, grandes expoentes do Direito Alemão do século XIX. Entre 1914 até meados de 1950, está compreendido o período no qual a nação alemã foi devastada por duas guerras mundiais, a hiperinflação, o nazismo e a reconstrução do país no pós-guerra. Mesmo em meio ao “caos” político, social e econômico, surgiram grandes pensadores do Direito que trouxeram novas teorias até hoje influentes na ciência jurídica estudada por todo o mundo. Naquele período conturbado, juristas como Hans Kelsen, Carl Schmitt, Rudolf Smend, Karl Loewenstein e Gustav Radbruch, desenvolveram ideias inovadoras sobre o papel, o lugar e o significado do Direito. Se a escala da influência de tais ideias foi global, por óbvio elas também chegaram até os juristas brasileiros daquela época.

Hans Kelsen (1881-1973) foi um dos mais influentes dentre esses pensadores alemães. Logo após o fim da primeira guerra mundial, foi o responsável por elaborar a nova Constituição da Áustria, país germanófono que mais tarde seria anexado pela Alemanha Nazista, em 1938. A Constituição austríaca de 1920, escrita por Kelsen, ainda está em vigor nos dias atuais e mantém em grande parte o seu texto original. Não obstante, no ano anterior (1919), havia sido promulgado o texto constitucional que foi essencial para o desenvolvimento posterior do constitucionalismo a nível mundial, quiçá a “Carta Magna” mais importante do século XX: a Constituição de Weimar, pioneira na garantia de direitos fundamentais e sociais.

A “Teoria Pura do Direito” (Reine Rechtslehre), Magnum opus de Kelsen, foi publicada em 1934, o ano seguinte à ascensão de Adolf Hitler ao poder quando foi inaugurado o Terceiro Reich. Como é sabido, nesta obra foi desenvolvido o positivismo jurídico, corrente de pensamento que exerceu e até hoje exerce grande influência na teoria e na filosofia do direito.

Injustamente acusado de ter dado contribuição para o embasamento legal das atrocidades nazistas, o positivismo jurídico kelseniano veio a ser debatido e contraposto a partir do fim da segunda guerra mundial (1939-1945), com o surgimento do pós-positivismo e a crescente discussão sobre a ética e a moralidade no campo das leis, a valorização dos princípios constitucionais e a consagração dos direitos humanos em tratados internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto de San José da Costa Rica (1969). A dogmática pós-positivista, conforme ensinamento de Di Pietro (2019, p. 1022) foi responsável pela “reconquista do conteúdo axiológico do direito, perdido em grande parte com o positivismo jurídico”. [1]

Por outro lado, também se destacaram na Alemanha daquele período as ideias do jurista Carl Schmitt (1888-1985), que aderiu ao nazismo e defendia a primazia do decisionismo político em oposição ao normativismo positivista de Kelsen.  Nas teorias de Schmitt estava presente o autoritarismo, centrado na figura de um soberano que decide sobre o estado de exceção. Em outras palavras, diante da excepcionalidade, que coloca em risco a unidade política de um país, pode o líder se colocar “fora da lei” e tomar as decisões necessárias para a manutenção do status quo. Em suma, Schmitt recusava a separação entre direito e política e suas ideias possuem a reputação de terem fornecido o arcabouço teórico para o pensamento autoritário que se proliferou por todo o mundo na década de 1930, inclusive no Brasil[2].

Por aqui, autores como Oliveira Viana, Francisco Campos e Azevedo Amaral se inspiraram em diferentes medidas nas ideias schmittianas, adaptando-as a realidade nacional. Vale lembrar que Francisco Campos foi o autor da Carta Constitucional de 1937, a famigerada “polaca”, bem como do Ato Institucional nº 1, norma jurídica que inaugurou a ditadura militar em 1964.

Rudolf Smend (1882-1975), por sua vez, desenvolveu a chamada “Teoria da Integração” em 1928, no período entre guerras portanto. Gilberto Bercovici (2015, p. 275) explica que Smend entendia “o processo integrativo do próprio Estado como o cerne da vida estatal. Em seu livro Constituição e Direito Constitucional (Verfassung und Verfassungsrecht), publicado naquele ano, Rudolf Smend apresentou a Teoria da Integração como alternativa ao positivismo jurídico. Para Smend, a crise da Teoria Geral do Estado, causada pela linha formalista de Jellinek e Kelsen, só seria superada pela metodologia das ciências do espírito, a partir da obra do filósofo Theodor Litt. Para tanto, o enfoque não seria mais dado a partir do indivíduo ou do Estado, isoladamente, mas, num sistema de influências mútuas, o modelo interpretativo deveria ser uma espécie de fluxo circular e contínuo, em que os seus membros (Estado, indivíduo, etc.) estivessem em constante inter-relação entre si e com o todo social. De acordo com Smend, o objeto da Teoria do Estado é o Estado enquanto parte da realidade espiritual, que se caracteriza por um processo de atualização funcional, por um contínuo processo de configuração social. Esse processo de renovação constante, que é o núcleo substancial da dinâmica do Estado é a integração. O Estado existe unicamente por causa e na medida em que se faz imerso neste processo de auto integração”. [3]

As ideias de Rudolf Smend, junto às contribuições de outros autores como Hsü Dau-Lin, contribuiriam para o desenvolvimento da teoria da “Mutação Constitucional”. [4] Já em terras brasileiras, Smend influenciou o emblemático jurista Pontes de Miranda que discutiu temas como o Estado Integral e a simetrização das classes sociais em obras da década de 30.

No campo do Direito Constitucional, podemos citar Karl Loewenstein (1891-1973), o jurista que desenvolveu a influente “classificação ontológica das constituições”, classificando os textos constitucionais como normativos, nominais ou semânticos. Esta última categoria, a das constituições semânticas, refletia, inclusive, o fenômeno totalitário que tomou de assalto dezenas de governos nacionais nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Com a ascensão do Nazismo em 1933, Loewenstein foi exilado e radicou-se nos Estados Unidos. Um fato interessante é que em 1942, em plena segunda guerra mundial, o jurista publicou a obra “Brazil Under Vargas”, na qual discutiu com profundidade diversos aspectos políticos e jurídicos do Brasil governado por Getúlio Vargas desde a “Revolução de 1930”.

Por fim, no segundo pós-guerra Gustav Radbruch (1878-1949) faz um retorno ao jusnaturalismo ao formular o famoso argumento que diz que “a injustiça extrema não é direito”. Trivisonno (2015, p. 99), esclarece que “Radbruch formulou o argumento da injustiça no contexto de uma refutação ao positivismo jurídico que, segundo ele, teria sido responsável, pelo menos parcialmente, pelo fato de o povo alemão ter, durante o regime nacional-socialista, aceitado a validade de leis extremamente injustas”. [5] Godoy (2014) é mais incisivo ao afirmar que Radbruch culpou “o positivismo pelo pesadelo nazista, do ponto de vista jurídico”. [6]

Godoy (2014) completa que “a obsessão dos teóricos do nacional-socialismo com a tese de que o Führer revelava em suas ações a vontade do povo, o que inclusive fixava um princípio interpretativo do direito (Führerprinzip), marcou um populismo chauvinista que subverteu a ordem jurídica e os comprometimentos dessa com os ideais de justiça e de respeito à pessoa humana.” Como é sabido, o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana na Alemanha Nazista marcou a prática do mais nefasto crime já cometido contra a humanidade: o holocausto. De qualquer modo, ao submeter o critério de validade das normas ao seu conteúdo e não somente ao seu aspecto formal, Radbruch reabriu a discussão sobre a ética e a moralidade no Direito e contribuiu para o desenvolvimento posterior da dogmática pós-positivista.

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Esses foram apenas alguns exemplos dos juristas alemães proeminentes na primeira metade do século XX e suas teorias elaboradas em um período histórico tão delicado. Os limites desse artigo não comportam as possíveis explicações sobre qual a relação entre os momentos de crise e o desenvolvimento da ciência jurídica. Por outro lado, o exemplo alemão abre espaço para instigantes reflexões sobre como os momentos históricos de convulsão social, ruptura institucional e crise econômica podem estimular o nascimento de novas teorias e soluções jurídicas que buscam compreender e superar tais momentos.


REFERÊNCIAS E NOTAS DE RODAPÉ

[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[2] Sobre o pensamento autoritário brasileiro vide: GOMES, Ângela de Castro. Autoritarismo e Corporativismo no Brasil: O Legado de Vargas. In: BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra (org.). A Era Vargas: Desenvolvimentismo, Economia e Sociedade. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2012. p. 69-91.

[3] BERCOVICI, Gilberto. O Estado Integral e a Simetrização das Classes Sociais em Pontes de Miranda: O Debate dos Anos 1930. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 272-293, jun. 2015. ISSN 2179-8966. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/16528/12415. Acesso em: 29 Jul. 2021. Doi: https://doi.org/10.12957/dep.2015.16528.

[4] Sobre o fenômeno da Mutação Constitucional vide: PEDRON, Flávio Quinaud. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico: História e Crítica do Conceito no Marco da Teoria do Direito como Integridade. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012 e PEDRON, Flávio Quinaud, SOARES E SILVA, João Paulo. Mutação Constitucional: história e crítica do conceito. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2020.

[5] TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. O QUE SIGNIFICA “A INJUSTIÇA EXTREMA NÃO É DIREITO”? CRÍTICA E RECONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DA INJUSTIÇA NO NÃO-POSITIVISMO INCLUSIVO DE ROBERT ALEXY. Espaço Jurídico : Journal of Law [EJJL], Joaçaba, v. 16, n. 3, p. 97-122, fev. 2016. E-ISSN 2179-7943. Disponível em: https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/9676. Acesso em: 29 Jul. 2021. Doi: https://doi.org/10.18593/ejjl.v16i3.9676.

[6] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Gustav Radbruch e seu pensamento em “Cinco Minutos de Filosofia do Direito”. 2014.  In: Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jun-22/gustav-radbruch-pensamento-cinco-minutos-filosofia-direito. Acessoe em 29 Jul. 2021.

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Sobre o autor
Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen

Advogado e Consultor Previdenciário. Mestrando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Associado efetivo da Sociedade Numismática Brasileira (SNB). Membro do Studium Iuris - Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFMG). Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) - Subseção Contagem. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) - Subseção Contagem. Possui artigos publicados em jornais e revistas jurídicas. Perfil no academia.edu: https://pucminas.academia.edu/LucasVandenBoomen.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOOMEN, Lucas Hendricus Andrade Van den. O caos reinante e o desenvolvimento da ciência jurídica:: o exemplo alemão da primeira metade do século XX. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6655, 20 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92993. Acesso em: 27 abr. 2024.

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