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A Constituição, a garantia fundamental ao acesso à Justiça e a assistência judiciária gratuita.

Estudo de caso

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19/01/2007 às 00:00
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A celeuma surge diante das seguidas decisões de primeira instância do Poder Judiciário paulista, indeferindo pedidos de assistência judiciária gratuita formulado por demandantes que se declaram pobres nos termos da Lei nº 1.060/50.

Sumário: 1. O caso a ser estudado: breves esclarecimentos iniciais. 2. O acesso à justiça: 2.1. Noção Geral; 2.2. O acesso à justiça nas Constituições: histórico; 2.3. O acesso à justiça na Constituição Federal de 1988; 2.3.1. O novo contexto: Assistência jurídica integral e gratuita x assistência judiciária gratuita. 2.3.2. Assistência jurídica integral e gratuita: natureza jurídica; 2.3.3. Classificação das normas constitucionais: A assistência jurídica integral e gratuita como norma constitucional de aplicabilidade imediata e eficácia plena. 3. A Lei 1.060/50 à luz da Constituição Federal de 1988: a questão do direito intertemporal e da receptividade das leis. 4. O estudo do caso ante a moderna hermenêutica constitucional: 4.1. A Hermenêutica e a interpretação: algumas notas; 4.2. A interpretação da Constituição; 4.3. A nova hermenêutica Constitucional; 4.4. O estudo do caso. 5. Conclusões. 6. Bibliografia.


1. O caso a ser estudado: breves esclarecimentos iniciais

O caso que servirá como objeto principal deste trabalho é colhido de decisões proferidas por juízos singulares na comarca de São Paulo e que divergem do posicionamento tradicional da nossa Corte Suprema.

A celeuma surge diante das seguidas decisões de primeira instância do Poder Judiciário paulista, indeferindo pedidos de assistência judiciária gratuita formulados por demandantes que se declaram pobres nos termos da Lei 1.060/50.

A referida Lei, ao estabelecer regras para concessão de assistência judiciária aos necessitados, exige, como requisito suficiente para comprovação deste estado, apenas seja apresentada a declaração de pobreza pelo requerente.

Entretanto, a despeito da presença deste documento probatório nos autos, os juizes da maior capital do país, contrariando a jurisprudência do STF, têm, de ofício - é de se ressaltar, negado o pleito. E fazem mais. Com fundamento no art. 5º LXXIV da Carta Magna, determinam que o interessado na conferência da assistência judiciária gratuita comprove a suposta insuficiência de recursos financeiros apresentando a sua última declaração de imposto de renda, contrariando o entendimento em sentido contrário já sedimentado no STF.

A proposta deste trabalho é analisar estas decisões, diante da Teoria da Constituição1, especialmente no que diz respeito às normas constitucionais, sua aplicabilidade e eficácia, ao lado da questão da hermenêutica.


2. O acesso à justiça

2.1. Noção Geral

Desde o surgimento do Estado, acesso à justiça é historicamente garantido. Este passa ser o gestor da vida em comunidade, tendo como fim precípuo a pacificação social. Neste diapasão, supera-se o período da barbárie, onde a Justiça era feita por cada indivíduo e por suas próprias mãos, avocando para si o poder-dever de conceder Justiça, evitando, destarte, que cada um faça por si sua própria justiça.

Diante disto, a nenhum Estado Democrático de Direito é permitido deixar de garanti-lo em todas as suas formas.

Conseqüentemente, no escólio de Mauro Capelletti, "O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos." 2

O acesso à justiça, afinal, constitui a principal garantia dos direitos subjetivos, em torno do qual gravitam todas as garantias destinadas a promover a efetiva tutela dos direitos fundamentais, amparados pelo ordenamento jurídico.

2.2. O acesso à justiça nas Constituições: histórico

As Cartas Políticas, em regra, asseguram, a todos e através de diversas formas, o acesso à justiça, inserindo-o no rol das garantias fundamentais do indivíduo e da sociedade a assistência judiciária gratuita ao que delas necessitarem.

A Constituição Italiana assim prescreve, em seu art. 24:

"O meio de estar em justiça e o de se defender perante qualquer jurisdição são assegurados aos mais pobres, por instituições especiais." (Tradução livre).

Já a Constituição Espanhola preceitua:

"Artículo 119.

La justicia será gratuita cuando así lo disponga la ley, y, en todo caso, respecto de quienes acrediten insuficiencia de recursos para litigar."

A Constituição Cabo-verdiana trata a matéria exaustivamente, em seu art. 21:

"Art. 21. (Acesso à Justiça)

1. A todos é garantido o direito de acesso à justiça e de obter, em prazo razoável e mediante processo equitativo, a tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.

2. A todos é conferido, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde, o ambiente, a qualidade de vida e o património cultural.

3. Todos têm direito, nos termos da lei, à defesa, à informação jurídica, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

4. A justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos ou indevida dilação da decisão.

5. A lei define e assegura a adequada protecção do segredo de justiça.

6. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias individuais, a lei estabelece procedimentos judiciais céleres e prioritários que assegurem a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses mesmos direitos, liberdades e garantias"

O Brasil, informa-nos GRUNWALD3, há muito se preocupa com a barreira obstaculizadora do acesso á justiça: a barreira econômica. A representação dos indivíduos em juízo de forma a viabilizar o acesso á justiça não apenas aos mais afortunados mas sim a todos os cidadãos remonta das Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil até o ano de 1916. Nas Ordenações, clara era a disposição acerca da representação gratuita em juízo quando dispunha no Livro III, Titulo 84 parágrafo décimo que " em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pague o agravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia de pagar o gravo".

Entretanto, a Constituição de 1824 mostrou-se omissa quanto a garantia de gratuidade de acesso á justiça da mesma forma a Constituição de 1891. Em 1934 a Constituição introduziu no Brasil a garantia da gratuidade do acesso á justiça cabendo a tarefa ao Estado. Por outra banda, não tão dedicada apresentou-se a Constituição de 1937 eis que em seu texto não dispensa nenhum dispositivo a concessão da gratuidade ao acesso á justiça, tarefa que coube ao código de Processo Civil de 1939, o qual dispôs em seus artigos 68 e seguintes a função protetiva do estado aos hiposuficientes.

A Carta de 1934, em seu art. 113, número 32, previa:

"Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

32) A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando, a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos."

Já a de 1946 tratava a matéria no art. 141, § 35, nos seguintes termos:

"Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 35 - O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados."

E era art. 150, § 32 da Carta de 1967 que disciplinava a matéria:

"Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 32 - Será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei."

O art. 5° LXXIV, da Constituição em vigor prescreve que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos".

2.3. O acesso à justiça na Constituição Federal de 1988.

2.3.1. O novo contexto. Assistência jurídica integral e gratuita x assistência judiciária gratuita.

É sabido que, com o advento da Constituição de 1988, surge uma nova ordem estatal, fincando-se o Estado Social Democrático de Direito.

Superadas as grandes guerras e com a derrocada da maioria dos regimes autoritários até então vigentes, o movimento constitucionalista emerge, retomando os idéias sociais instaurados a partir da Constituição de Weimar. O sentido social dos novos direitos é ressaltado. Pauta-se na justiça social, no fortalecimento da democracia, da cidadania e na busca por uma sociedade igualitária, refratária ao individualismo no Direito e ao absolutismo no poder4.

Nesta esteira, o tema em debate passa a ter maior amplitude na Constituição de 1988.

"Com efeito, não é possível compreender o constitucionalismo do estado social brasileiro contido na Carta de 1988 se fecharmos os olhos à teoria dos direitos sociais fundamentais, ao princípio da igualdade, aos institutos processuais que garantem aqueles direitos e aquela liberdade e ao papel que doravante assume na guarda da Constituição o Supremo Tribunal Federal."5

Comparando-se os dispositivos constitucionais acima transcritos, nota-se que anteriormente as Cartas positivava a assistência judiciária gratuita entre os direitos assegurados pela Norma maior.

Entretanto, da leitura do atual art. 5° LXXIV, verifica-se que não se fala mais apenas em assegurar o direito à assistência judiciária gratuita, porém na prestação da assistência jurídica integral e gratuita.

É que o novo texto constitucional, em contexto geral, imprime uma latitude sem precedentes aos direitos sociais básicos, dotados agora de uma substantividade nunca conhecida nas Constituições anteriores. Neste contexto, há uma sobrelevação dos direitos e garantias fundamentais, com sólida base no valor maior da igualdade, que, na lição de Paulo Bonavides, "se converte no valor mais alto de todo sistema constitucional, tornando-se o critério magno e imperativo de interpretação da Constituição em matéria de direitos sociais."

Daí a amplitude dada ao acesso à justiça na Carta de 1988, sendo a assistência judiciária gratuita, apenas uma de suas formas.

"Pode-se dizer, pois, sem exagerar, que a nova Constituição representa o que de mais moderno existe na tendência universal rumo à diminuição da distância entre o povo e a justiça ", é o que afirma a festejada Professora Ada Pellegrini Grinover.6

Consoante esclarecem Nelson e Rosa Nery, a assistência jurídica prevista no art. 5°, LXXIV da C.F. é mais ampla do que a assistência judiciária7, já que consiste na consultoria, auxílio extrajudicial e assistência judiciária.8

"A assistência judiciária, (jurídica, por melhor dizer)...", ensina Lippman, "... não se confunde com justiça gratuita (assistência judiciária gratuita). A primeira é fornecida pelo Estado, que possibilita ao necessitado o acesso aos serviços profissionais do advogado e dos demais auxiliares da justiça, inclusive os peritos, seja mediante a defensoria pública ou da designação de um profissional liberal pelo Juiz. Quanto à justiça gratuita, consiste na isenção de todas as despesas inerentes à demanda, e é instituto de direito processual". E arrebata: "Ambas são essenciais para que os menos favorecidos tenham acesso à Justiça, pois ainda que o advogado que se abstenha de cobrar honorários ao trabalhar para os mais pobres, faltam a estes condições para arcar com outros gastos inerentes à demanda, como custas, perícias, etc. ".9

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Outro não é o entendimento de José Cretella Junior. Sobre a distinção mencionada, esclarece que "denomina-se "assistência jurídica" o auxílio que o Estado oferece – agora obrigatoriamente – ao que se encontra em situação de miserabilidade, dispensando-o das despesas e providenciando-lhe defensor, em juízo. A lei de organização judiciária determina qual o Juiz competente para a assistência judiciária; para deferir ou indeferir o benefício da justiça gratuita, competente é o próprio Juiz da causa. A "assistência jurídica" abrange todos os atos que concorram, de qualquer modo, para o conhecimento da justiça – certidões de tabeliães, por exemplo -, ao passo que o benefício da "assistência judiciária gratuita" é circunscrito aos processos, incluída a preparação da prova e as cautelares. O requerente, antes de entrar com a ação, em juízo, deverá solicitar a assistência judiciária".10

Desta forma, a assistência jurídica integral e gratuita prevista no mencionado diploma constitucional, compreende a consultoria, o auxílio extrajudicial e a própria assistência judiciária. Todos serem fornecidos gratuitamente pelo Estado àqueles que necessitem.

Referidas atividades de consultoria e ao auxílio extrajudicial, serão fornecidos pelo Estado através de órgãos públicos e instituições específicos e em geral, que devem orientar e prestar informações sem ônus. Neste contexto, possui sobrelevada relevância a atuação das Defensorias Públicas, Promotorias e Conselhos tutelares.

De outro lado, a assistência judiciária gratuita (única previsão das Constituições anteriores) diz respeito aos ônus e custos inerentes à lide, ao processo judicial e sua tramitação ante ao Poder Judiciário. Desde 1950 encontra-se regulamentada pela Lei de Assistência Judiciária, de n.° 1060, que assim dispõe:

"Art. 1º - Os poderes públicos federal e estadual concederão assistência judiciária aos necessitados nos têrmos da presente Lei.

Art. 2º - Gozarão dos benefícios desta lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho.

Parágrafo único Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

Art. 3º - A assistência judiciária compreeende as seguintes isenções:

I - das taxas judiciárias e dos selos;

II - dos emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da Justiça;

III - das despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais;

IV - das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo contra o poder público federal, no Distrito Federal e nos Territórios; ou contra o poder público estadual, nos Estados;

V - dos honorários de advogado e peritos;

VI - das despesas com a realização do exame de código genético – DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nas ações de investigação de paternidade ou maternidade.”

Melhor tratamento foi dada à matéria pela legislação de Cabo Verde. Além de possuir artigo constitucional, supratranscrito, o qual expressamente assegura o acesso à justiça em suas diversas formas, inclusive no que tange à assistência judiciária gratuita, o ordenamento daquele país possui duas leis infra-constitucionais versando sobre a matéria.

A primeira, denominada Lei de Acesso à Justiça 11, proclama em seu art. 1º:

"Artigo 1° (Objecto)

A presente lei visa assegurar a todos o acesso aos meios e órgãos legalmente previstos para conhecer, fazer valer e defender os seus direitos, garantindo que a ninguém seja dificultado, limitado ou impedido esse acesso, designadamente em razão da sua condição social ou cultural ou por insuficiência de meios económicos."

A segunda é a Lei de Assistência Judiciária, que tem como escopo a questão das custas do processo. O seu art. 1° prescreve:

"Artigo 1° (Objecto)

O presente diploma regula os processos de concessão do benefício de assistência judiciária nos Tribunais e a cobrança coerciva dos preparos e custas judiciais."

Em conclusão, resta demonstrado que a assistência judiciária gratuita, objeto dos casos a serem estudados, está compreendida na assistência jurídica prevista no art. 5º, LXXIV da Constituição. Enquanto aquela se refere ao acesso à justiça em sentido amplo, abarcando a questão das vias, formas e meios, esta se remete, exclusivamente, aos custos do processo.

A assistência judiciária gratuita, converte-se, então, em um dos principais instrumentos para se assegurar o acesso igualitário à justiça àqueles que comprovem insuficiência de recursos.

Com efeito, "a justiça deve estar ao alcance de todos, ricos e poderosos, pobre e desprotegidos, mesmo porque o Estado reservou-se o direito de administra-la, não consentindo que ninguém faça justiça por suas próprias mãos. Comparecendo em juízo um litigante desprovido completamente de meios para arcar com as despesas processuais, inclusive honorários de advogado, é justo seja dispensado do pagamento de quaisquer custas..." 12

Na lição de José Afonso, "formalmente, a igualdade perante a Justiça está assegurada pela Constituição, desde a garantia de acessibilidade a ela (art. 5º, XXXV). Mas realmente essa igualdade não existe, pois está bem claro hoje, que tratar como igual a sujeitos que econômica e socialmente estão em desvantagem, não é outra coisa senão uma ulterior forma de desigualdade e de injustiça. Os pobres têm acesso muito precário à Justiça. Carecem de recursos para contratar bons advogados. O patrocínio gratuito se revelou de alarmante deficiência. A Constituição tomou, a esse propósito, providência que pode concorrer para a eficácia do dispositivo, segundo o qual o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art.5º, LXXIV)." 13

Daí porque é este instituto de salutar importância para que, na prática, seja conferida a garantia fundamental do acesso à justiça, pois, "uma justiça ideal deveria ser gratuita. A distribuição da justiça é uma das atividades essenciais do Estado e, como tal, da mesma forma que a segurança e a paz pública, não deveria trazer ônus econômico aqueles que dela necessitam" 14, mormente quando sabemos que a grande maioria da população é formada por pobres e miseráveis.

Desse modo, " tem-se, uma garantia bifronte da assistência judiciária: a de corresponder a um item constitucional catalogado no capítulo dos direitos individuais e de constituir-se, também, em atividade estatal essencial ao exercício da função jurisdicional". 15

2.3.2. Assistência jurídica integral e gratuita: natureza jurídica

Vista distinção entre a assistência judiciária e a assistência jurídica integral e gratuita, mister se faz precisar a sua natureza jurídica.

A questão é tormentosa. Divergências são encontradas na doutrina e jurisprudência.

Para o eminente processualista Barbosa Moreira, a assistência judiciária é um direito. 16

Idêntico posicionamento adota Pinto Ferreira, para quem

"O direito à assistência jurídica ou judiciária é um direito público subjetivo outorgado pela Constituição e pela lei a toda pessoa cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas processuais e os honorários de advogado, sem prejuízo para o sustento de sua família ou de si própria." 17 (grifos nossos)

Já para Alexandre Lobão Rocha, estaríamos diante de uma garantia. 18

Nos tribunais superiores esta divergência também está presente. É possível colher decisões que definem a assistência judiciária como direito, ora como garantia fundamental e, até mesmo, aquelas que se escusam de apontar sua natureza, qualificando-a como simples benefício. 19

A questão, além de complexa, é relevante. Ultrapassa o campo da teoria e do discurso acadêmico, para produzir reflexos diretos na concretização desta norma constitucional.

Aparentemente, diante da sua localização dentro da Constituição, inserida entre o rol dos direitos e garantias fundamentais, poder-se-ia apontar que estaríamos diante de um direito ou uma garantia desta estirpe.

Entretanto, não é todo princípio ou regra inserto naquele rol que pode ser considerado como fundamental.

Antes de mais nada, é necessário precisar quais são os Direitos Fundamentais.

Respondendo a esta intricada e difícil questão, a Professora Maria Garcia 20 aponta-nos aquele que entendemos ser melhor caminho a ser seguido.

A ilustre constitucionalista funda sua teoria a partir das idéias de Ferdinand Lassale, quando este trata da denominação Lei Fundamental.

Conforme lição do consagrado jurista, citado pela eminente Professora, para justificar-se a denominação Lei Fundamental será necessário:

"1º Que a lei fundamental seja uma lei básica; mais do que as outras comuns, como indica seu próprio nome `fundamental´.

2ºQue constitua - pois de outra forma não poderíamos chamá-la de fundamental - o verdadeiro fundamento de outras leis, isto é, a lei fundamental, se realmente pretende ser merecedora desse nome, deverá informar e engendrar outras leis comuns originárias da mesma. A lei fundamental, para sê-lo, deverá, pois, atuar e irradiar-se através das leis comuns do país.

3º Mas as coisas que têm um fundamento não o são por um capricho; existem porque necessariamente devem existir. O fundamento a que respondem não pode ser de outro modo. Somente as coisas que carecem de fundamento, que são as casuais e as fortuitas, podem ser como são ou mesmo de outra forma; as que possuem um fundamento, não. Elas se regem pela necessidade. (…) A idéia de fundamento traz, implicitamente, a noção de uma necessidade ativa, de uma força eficaz e determinante que atua sobre tudo que nela se baseia, fazendo-a assim e não de outro modo." 21

A partir deste raciocínio, ensina-nos a professora que "o art. 5º, caput, da Constituição especifica cinco direitos fundamentais básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, que constituem o fundamento de todos os demais direitos consagrados (…), bem como de toda a Constituição (…)" 22

E, entre os demais direitos e garantias consagrados pela Constituição, seriam também direitos ou garantias fundamentais "...todos aqueles diretamente vinculados a um dos cinco direitos fundamentais básicos constantes do art.5º, caput. Os demais compõem apenas o quadro dos direitos constitucionais." 23

Os direitos fundamentais são, enfim, "o oxigênio das Constituições Democráticas." 24

Mas o art. 5° não compreende apenas Direitos Fundamentais. Abarca também garantias desta natureza.

Segundo Paulo Bonavides, "Existe garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar." 25 E acrescenta: "A garantia – meio de defesas – se coloca então diante do direito, mas com este não se confunde." 26

Ora, somente mediante o amplo acesso à justiça, mediante uma assistência jurídica integral e gratuita é que será possível se defender e preservar a efetividade, a consagração, a preservação e proteção do direito a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade em sua plenitude.

Válido salientar que, como observa Róbson Flores Pinto, "...a garantia constitucional da assistência jurídica aos hipossuficientes tem por escopo o princípio da igualdade, de forma a dotar os desiguais economicamente de idênticas condições para o pleito em juízo." 27

Destarte, tratando-se instituto que visa assegurar, preservar, enfim, proteger outros, não resta dúvida ser a assistência jurídica e gratuita uma garantia fundamental, pois que diretamente ligado à proteção do que é básico, fundante e necessário à conformação da ordem jurídica posta.

Assim, tem o art. 5º, LXXIV natureza de norma constitucional, verdadeira garantia fundamental. Conseqüentemente, a assistência judiciária gratuita, compreendida naquela, possui a mesma natureza.

Ambas integram o microssistema constitucional que visa assegurar a garantia fundamental do acesso de todos à justiça.

É acertado, desta forma, falar-se em uma garantia fundamental ao acesso à justiça, que engloba a assistência jurídica gratuita e, entre outras direitos e garantias, o direito de petição, o direito de obtenção de certidões e informações, e o próprio princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário. O traço comum existente entre as referidas normas é que todas visam permitir a promoção da justiça e igualdade, imprescindível a qualquer Estado de Direito e para consecução dos direitos fundamentais. 28

2.3.3. Classificação das normas constitucionais: A assistência jurídica integral e gratuita como norma constitucional de aplicabilidade imediata e eficácia plena

Jorge Miranda, em uma das suas magnânimas obras, apresenta um complexo método para classificação as normas constitucionais. Após traçar uma classificação geral das normas, leciona:

"Entre as classificações ou contraposições de mais particular incidência no domínio do Direito constitucional ou mesmo dele específicas, avultam as seguintes:

a)Normas constitucionais materiais e normas constitucionais de garantia (corres pondentes grosso modo a normas primárias e a normas secundárias) - aquelas formando ou reflectindo o núcleo da constituição em sentido material, da ideia de Direito modeladora do regime ou da decisão constituinte; estas estabelecendo modos de assegurar seu cumprimento frente ao próprio estado, por meios preventivos ou sucessivos que lhe emprestem efectividade ou maior efectividade;

b)Normas constitucionais de fundo orgânicas e procedimentais ou de forma - as primeiras, sobretudo as respeitantes às relações entre a sociedade e o Estado ou ao estatuto das pessoas e dos grupos dentro da comunidade política, as segundas, definidoras dos órgãos do poder, da sua estrutura, da sua competência, da sua articulação recíproca e do estatuto dos seus titulares; as terceiras, relativas aos actos e actividades do poder, aos processos jurídicos de formação e expressão da vontade - de uma vontade necessariamente normativa e funcional;

c) normas constitucionais preceptivas e normas constitucionais programáticas - sendo preceptivas as de eficácia incondicionada ou não dependente de condições institucionais ou da facto e programáticas aquelas que, dirigidas a certos fins e a transformações não só da ordem jurídica mas também das estruturas sociais ou da realidade constitucional (daí o nome), implicam a verificação, pelo legislador, no exercício de um verdadeiro poder discricionário, da possibilidade de as concretizar;

d)Normas constitucionais exequíveis e não exequíveis por si mesmas - as primeiras, aplicáveis só por si, sem a necessidade de lei que as complemente; as segundas carecidas de normas legislativas que as tornem plenamente aplicáveis às situações da vida;

e)normas constitucionais a se e normas sobre normas constitucionais - contendo aquelas uma específica regulamentação constitucional, seja a título de normas materiais, seja a título de normas de garantia, e reportando-se a outras normas constitucionais para certos efeitos (como as normas de revisão constitucional ou as disposições transitórias)." 29

Entretanto, para o presente trabalho e para efeito do estudo do caso proposto, interessa-nos fixar a questão da aplicabilidade das normas constitucionais, a qual tem influência determinante na espécie em debate, como se verá ao longo das linhas que seguem.

Os doutrinadores Norte-americanos são precursores sobre o tema. Dividiam as normas constitucionais entre duas espécies: "self executing provisions" e "not self executing provisions" Esta tese influenciou os estudiosos por todo o mundo emereceu aguçada análise de renomados juristas pátrios.

Sobre o tema assim se manifestou, Rui Barbosa:

"Executáveis por si mesmas, ou auto-executáveis, se nos permitem uma expressão que traduza num só vocábulo o inglês self executing, são, por tanto, as determinações para executar as quais não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou designar um processo especial, e aquelas onde o direito instituído se ache armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e preservação. Mas nem todas as disposições constitucionais são auto-aplicáveis. As mais delas, pelo contrário, não são." E conclui: "A Constituição não se executa a si mesma: requer a ação legislativa, para lhe tornar efetivos os preceitos." 30

Válido, ainda, citar a lição de Crisafulli. O consagrado cientista do Direito salienta a existência de três espécies de normas constitucionais: as programáticas, imediatamente preceptivas e de eficácia diferida. 31

Analisando as lições do referido autor, explicita Paulo Bonavides:

"Nesta acepção, programáticas se dizem aquelas normas jurídicas com que o legislador, ao invés de regular imediatamente um certo objeto, preestabelece a si mesmo um programa de ação, com respeito ao próprio objeto, obrigando-se a dele não se afastar sem um justificado motivo." 32

Já as normas imediatamente preceptivas são, "(…) aquelas que diretamente regulam relações entre cidadãos e entre o Estado e os cidadãos." 33

Por fim, as normas constitucionais de eficácia diferida "(…) normas que não se dirigem unicamente aos poderes do estado, mas indistintamente, desde o primeiro momento, aos cidadãos e aos órgãos estatais, não tendo por conseguinte, natureza programática, e somente desdobrando sua inteira eficácia através dos meios instrumentais ou leis organizativas posteriores, capazes de permitir sua aplicabilidade às matérias de que diretamente se ocupam." 34

Aqui no Brasil, merecem destaque as lições do Professor José Afonso da Silva. O festejado constitucionalista formulou classificação própria para as normas constitucionais e sua aplicabilidade.

Para este jurista, em apertada síntese, as normas constitucionais podem ser classificadas como normas de eficácia plena, as quais possuem aplicabilidade imediata, normas de eficácia contida, cuja aplicabilidade também é imediata, porém sujeitas à restrição, e, finalmente, em normas de eficácia limitada, que dependem de normas ordinária complementares para produzirem todos os efeitos delas esperadas. 35

A despeito da relevância e rigor científico das citadas e de outras classificações das normas constitucionais 36, preferimos adotar a classificação proposta por Meireles Teixeira, em sua belíssima obra Curso de Direito Constitucional.

Segundo lição do saudoso Professor, as normas constitucionais se dividem em normas de eficácia plena e normas de eficácia limitada. As últimas se subdividem em normas programáticas e normas de legislação.

Ensina-nos:

"No caso das normas constitucionais de eficácia plena, ensina-nos, o legislador constituinte diretamente, imediatamente e de modo pleno, estabeleceu uma normatividade sobre certa matéria, normatividade que se mostra apta a produzir, desde logo, os efeitos essenciais visados. Trata-se, portanto, de normas plena e diretamente operativas."

"Já no segundo caso, das normas de eficácia limitada...", prossegue o Professor, citando Crisafulli, "...ao invés de regularem desde o primeiro momento, de modo direto e imediato, determinadas ordens de situações e relações (as quais, entretanto se referem), regulam comportamentos públicos destinados, por sua vez, a incidir sobre essas matérias: estabelecem, isso sim, aquilo que os órgãos governamentais deverão ou poderão fazer (e, inversamente, portanto, aquilo que não poderão fazer, relativamente a determinados assuntos." 37

Ainda neste breve estudo acerca da classificação e aplicabilidade das normas constitucionais, sobressai-se a relevância de outra importante e sensível modificação trazida pela Constituição de 1988, no que se refere à questão do acesso à justiça, em especial, quanto a assistência judiciária gratuita.

Isto porque, as Constituições anteriores costumavam a condicionar a concessão da assistência judiciária gratuita à forma prevista em lei. Ou seja, os dispositivos não possuíam eficácia plena. Não produziam os efeitos de logo, tendo efetividade condicionada à legislação ordinária. Eram, para adotar a classificação proposta por Meireles Teixeira, normas constitucionais de legislação, de eficácia limitada.

Atualmente a situação é diversa. A Constituição não mais condiciona a prestação da assistência jurídica integral e gratuita à elaboração de qualquer norma. Portanto, o referido dispositivo, ainda com base no escólio do saudoso professor, é diretamente operativas. Produzem efeitos desde logo. É norma constitucional de aplicabilidade imediata e eficácia plena, já que da própria norma Constitucional, o art. 5° LXXIV da C.F, é possível extrair todos efeitos dela esperado.

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Sobre o autor
Georges Louis Hage Humbert

Advogado e professor. Pós-doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre em direito do Estado pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de São Paulo. www.humbert.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HUMBERT, Georges Louis Hage. A Constituição, a garantia fundamental ao acesso à Justiça e a assistência judiciária gratuita.: Estudo de caso. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1297, 19 jan. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9401. Acesso em: 18 abr. 2024.

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