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A falácia dos crimes inafiançáveis

22/02/2007 às 00:00
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Hoje, por mais absurdo que pareça, o principal efeito de um crime ser denominado inafiançável é o de permitir que o acusado seja solto sem necessidade de pagar a fiança.

A fiança é uma caução que permite ao acusado responder ao processo em liberdade. Existe previsão expressa na Constituição do Brasil, em seu artigo 5º, inciso LXVI, que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Segundo Magalhães Noronha "fiança vem a ser, assim, um direito subjetivo do acusado, que lhe permite, mediante caução e cumprimento de certas obrigações, conservar a sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível. É a fiança substitutivo da custódia do acusado. Dos textos de nosso Código verifica-se que ela se destina também a assegurar a presença daquele no processo e o pagamento de custas, do dano e da pena de multa".

Os leigos na ciência jurídica e até mesmo os bacharéis não afetos à seara do direito processual penal têm a errônea impressão que os crimes inafiançáveis são punidos com rigor e que, nesses casos, o acusado fica preso até ser julgado e não é solto tão facilmente; porém, essa é uma falsa idéia que foi incutida pelo legislador no pensamento popular a fim de que todos pensassem(e realmente pensam) que o Estado realmente é severo quando se trata de crimes inafiançáveis.

Ao longo de toda a história do Brasil, as crises sempre foram tratadas com placebos e, no campo jurídico-penal, não é diferente; basta ocorrer um delito causador de uma comoção social para que o legislador afoito edite uma "lei-relâmpago" com o fim de dar satisfação à sociedade e lhe propiciar uma falsa sensação de segurança. Podemos exemplificar com a lei dos crimes hediondos, cuja criação e posteriores alterações se deveram a fatos comoventes divulgados na mídia, como o seqüestro de um famoso empresário, o assassinato de uma atriz e a falsificação de remédios. A falta de técnica para sua criação e alterações fazem com que esta lei seja em muitos pontos inócua e conhecida no meio jurídico como "a hedionda lei dos crimes hediondos".

As leis que definem a inafiançabilidade de alguns crimes possuem o mesmo defeito que as feitas sob encomenda para responder de forma imediata a uma situação comovente: não funcionam. Isto ocorre porque o sistema jurídico não pode ser visto de forma isolada, mas sim como um todo harmônico; ou seja, não adianta que uma norma proíba a fiança quando outras a permitem. Seria, em termos processuais, um paralelo com a teoria da tipicidade conglobante proposta por Eugenio Raúl Zaffaroni, segundo a qual não se pode punir criminalmente uma conduta fomentada por outros ramos do direito.

Uma das hipóteses legais de inafiançabilidade, consoante o Código de Processo Penal, é o fato de estar presente qualquer dos motivos autorizadores da prisão preventiva.

Conforme o artigo 312 do Código de Processo Penal, a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Deve-se mencionar, por oportuno, a crítica da doutrina, segundo a qual não se pode prender alguém por "conveniência", resquício do regime ditatorial, mas sim, por "necessidade" da instrução criminal; ou seja, deve-se "investigar para prender" e não, "prender para investigar".

Em uma interpretação feita a contrário senso, a doutrina e jurisprudência entendem que, caso não se faça presente algum desses motivos, não será possível o encarceramento do acusado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória; assim, pouco adianta rotular-se um crime como inafiançável pois, desde que inexistam os pressupostos que autorizem a prisão preventiva, merece o réu responder ao processo em liberdade.

O pseudônimo "INAFIANÇÁVEL" possui um certo charme e exerce um fascínio em todos, especialmente nos leigos, produzindo uma pseudo-sensação de que o delinqüente pagará pelo mal causado; porém, é apenas um adjetivo ilusório que não gera muitos efeitos práticos, pois, em regra, não estando presentes os requisitos da prisão preventiva, o acusado ficará livre sem o pagamento da fiança.

Mais eficiente que rotular um crime como inafiançável seria o legislador se valer de dados técnicos e estudos feitos por profissionais da área jurídica para coibir seriamente os delitos mais perniciosos e causadores de maior intranqüilidade social. Cremos que agravar a pena de tais crimes ou condicionar a progressão de regime à reparação do dano causado ou à devolução do produto do ilícito praticado, como ocorre nos crimes praticado contra a administração pública, dentre outras medidas, certamente seria uma solução melhor do que a falaciosa inafiançabilidade.


REFERÊNCIAS:

Magalhaes Noronha, Edgard. Curso de direito processual penal. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 1979.

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Sobre o autor
Marcos Henrique Silva

servidor público federal em Anápolis (GO), pós-graduando lato sensu em Direito Processual pela Universidade da Amazônia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcos Henrique. A falácia dos crimes inafiançáveis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1331, 22 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9521. Acesso em: 16 abr. 2024.

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