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Transgressões da Receita Federal relativas ao IRPF

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Este artigo denuncia a violação de princípios constitucionais estabelecidos para a administração pública; a violação de direitos constitucionais fundamentais de cidadãos; a imposição de insegurança jurídica e a discriminação injustificada entre contribuintes, por parte da Secretaria de Receita Federal, do Ministério da Fazenda, no contexto de declarações de Imposto de Renda de Pessoas Físicas.


A lei 9250 [L9250], de 26 de dezembro de 1995, estabelece:

Art. 7º A pessoa física deverá [...] apresentar anualmente [...] declaração de rendimentos em modelo aprovado pela Secretaria da Receita Federal.

Ainda que a lei conceda à Receita Federal a prerrogativa de aprovar o modelo da declaração, não lhe concede a prerrogativa de impor obrigações adicionais.

De fato, o princípio da legalidade [PLJ,PLW], imposto à administração pública no artigo 37 da Constituição Federal de 1988 [CF1988], limita a discricionariedade de entes públicos como a Receita Federal, limitação esta corroborada noutro artigo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Atos normativos da Receita Federal a cada ano aprovam os formulários e os programas de computador e estabelecem as condições em que se exige a apresentação da declaração em formato eletrônico.

Não sendo leis, não poderiam criar obrigações, ou impor restrições arbitrárias aos contribuintes. Muito menos se tais obrigações ou restrições forem inconstitucionais.

Porém tais atos normativos de fato obrigam contribuintes em situações arbitrárias a não utilizar formulários em papel, mas sim programas de computador que trazem consigo questões de infração de direito autoral, de insegurança jurídica, de falta de transparência e de exigência de licenciamento oneroso e/ou restritivo, com agravante discriminatório, de ainda outros programas de computador (software).


Infração de Direito Autoral

Os programas de computador distribuídos pela Receita Federal não acompanham uma licença de uso. Porém, consta da lei 9609 [L9609], de 19 de fevereiro de 1998, que:

Art. 9º O uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença.
          Parágrafo único. Na hipótese de eventual inexistência do contrato referido no caput deste artigo, o documento fiscal relativo à aquisição ou licenciamento de cópia servirá para comprovação da regularidade do seu uso.

Na ausência tanto de licença quanto de documento fiscal, o uso do software é portanto irregular. A Receita Federal, ao exigir o uso do software que ela própria distribui sem licença, força o contribuinte a infringir a lei. Tal exigência é descabida, pois viola o Princípio da Legalidade, já mencionado.

Em geral, violação de direito autoral somente gera penalidades ao infrator em caso de queixa pelo titular. Como a própria Receita Federal é titular do direito autoral sobre os programas de computador que ela fornece, segundo os próprios programas, a possibilidade de queixa seria irrisória. Há, porém, ressalva no artigo 12 da lei 9609:

§ 3º Nos crimes previstos neste artigo, somente se procede mediante queixa, salvo:
          I - quando praticados em prejuízo de entidade de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação instituída pelo poder público;

Vige uma interpretação de que uso de programa de computador sem licença constitui prejuízos ao titular dos direitos autorais. Portanto a Receita Federal, uma entidade de direito público que detém os direitos autorais sobre os programas que ela obriga contribuintes a utilizar, sujeita todos os contribuintes que utilizem tais programas, seja por escolha pessoal do contribuinte ou por obrigação normatizada "interna corporis", à pena especificada na mesma lei 9609:

Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador:
          Pena - Detenção de seis meses a dois anos ou multa.


Insegurança jurídica

Além do risco jurídico decorrente da ausência de licença, há diversos outros associados com a forma em que o software é oferecido, com o processo de entrega de declarações eletrônicas, tanto através da Internet quanto em escritórios da Receita Federal, e com a validade jurídica do recibo emitido.

Para melhor apresentar os riscos, vamos supor que a Receita Federal, ou uma quadrilha envolvendo seus funcionários envolvidos no processamento de declarações de imposto de renda, decida prejudicar um determinado contribuinte através dos mecanismos à sua disposição.

Enumeramos a seguir algumas formas de afetar o contribuinte alvo sem efeitos visíveis aos demais, só permitidas graças à intensa obscuridade do processo:

  • impedir a entrega da declaração via Internet
  • impedir o preenchimento da declaração eletrônica
  • emitir recibo inválido, de forma imperceptível ao contribuinte, ou evitar sua emissão
  • adulterar a declaração, antes, durante ou após a entrega, sem conhecimento do contribuinte
  • alegar o recebimento de declarações retificadoras
  • vazar informações do contribuinte sem seu conhecimento, inclusive certificados digitais

Para evitar esses problemas, é necessário que todo contribuinte tenha a possibilidade de entregar sua declaração de forma juridicamente segura, como por exemplo através de formulário em papel, mas que aquele que optar por utilizar a entrega eletrônica possa inspecionar os programas oferecidos pela Receita Federal ou implementar seus próprios, de acordo com especificações que a própria Receita Federal deveria publicar no tocante a formatos de arquivos, protocolos de comunicação e requisitos para validação de declarações e recibos, como já faz o Servicio de Rentas Internas (Receita Federal) do Equador [SRI,EqSL] e como deveria fazer o Brasil, conforme recomendação do e-PING: Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico, versão 2.0 [ePING2]:

Adoção Preferencial de Padrões Abertos: a e­PING define que, sempre que possível, serão adotados padrões abertos nas especificações técnicas. [...] soluções em Software Livre são consideradas preferenciais

No Apêndice Detalhes técnicos, detalhamos os artifícios técnicos que podem ser utilizados para causar inconveniência ou prejuízo a contribuintes específicos e justificamos a necessidade das informações acima como forma de impedi-los ou ao menos de permitir sua comprovação.


Desrespeito ao Princípio da Transparência

Conforme explicado na seção anterior, o acesso ao código fonte das aplicações, especificação pública dos formatos de arquivo e protocolos envolvidos são essenciais para trazer segurança jurídica ao contribuinte. A Constituição Federal, além de submeter a administração pública ao princípio da publicidade em seu artigo 37, estabelece, em seu artigo 5º:

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

A lei 11111 [L11111], de 5 de maio de 2005, que regulamenta este inciso, traz ressalvas a questões de preservação de privacidade e de segurança da sociedade e do Estado.

O estabelecimento de um canal seguro de comunicação para o envio da declaração é essencial para preservar a privacidade, mas a divulgação do código fonte das aplicações, dos formatos de arquivo e protocolos em nada prejudica o estabelecimento desse canal seguro.

Poder-se-ia argumentar que há necessidade de controle do código fonte das aplicações e segredo sobre os formatos de arquivo e os protocolos para impedir a submissão de declarações inválidas.

Porém, se a segurança fosse utilizada como argumento para não exposição dessa informação, isso indicaria a vulnerabilidade do sistema de recepção de declarações na Receita Federal: se for possível, de maneira acidental ou intencional, induzir esse sistema a se comportar fora das especificações, aceitando como legítimas declarações inválidas, ele já é vulnerável e deve ser corrigido.

Não se pode depender da falta de informação de terceiros para garantir a segurança de um sistema. As salvaguardas devem ser internas, caso contrário algum esforço de engenharia reversa seria muito recompensador, e provavelmente já teria sido explorado.

Em face dos fracos argumentos contra a publicação do código fonte e da especificação de formatos de arquivos e protocolos, contrapostos aos fortíssimos argumentos em prol de sua transparência, cabe objeção legal à prática corrente.


Desrespeito ao Princípio da Impessoalidade

A Constituição Federal, em seu artigo 37, submete a administração pública ao princípio da impessoalidade. Como justificar, então, a escolha arbitrária de plataformas de software para os programas da Receita Federal?

Talvez se pudesse justificar a plataforma MS-Windows em função de sua imensa penetração, mas, ao invés de o poder público favorecer a preservação do monopólio de uma empresa estrangeira conhecida por abuso de poder monopolístico, desrespeito ao consumidor e ameaça à soberania dos países que utilizam suas tecnologias inauditáveis, parece-nos que seria mais adequado favorecer a livre concorrência e as empresas brasileiras de pequeno porte, conforme os princípios da ordem econômica estabelecidos na Constituição Federal:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
          I - soberania nacional;
          [...]
          IV - livre concorrência;
          V - defesa do consumidor;
          [...]
          VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
          VIII - busca do pleno emprego;
          IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

A introdução da possibilidade de uso de máquinas virtuais Java, disponíveis gratuitamente, ainda que com licença restritiva, ao invés do oneroso MS-Windows, foi um passo correto no sentido de deixar de favorecer o maior monopólio da indústria de software.

Porém, ao invés de alcançar a almejada impessoalidade, apenas passou a favorecer mais uma empresa, também estrangeira.

Java é uma linguagem de programação e um ambiente de execução (máquina virtual) de especificações públicas, abertas e não sujeitas ao pagamento de royalties. Dessa forma, qualquer um pode implementar a especificação e oferecer ambientes de desenvolvimento e máquinas virtuais capazes de interpretar programas criados de acordo com a especificação.

Infelizmente, os programas da Receita Federal dependem de funcionalidades que não fazem parte da especificação nem acompanham o próprio programa. Tais funcionalidades estão presentes, ainda que não documentadas, apenas na máquina virtual desenvolvida pela própria Sun Microsystems e noutras nela baseadas.

Há outras implementações de Java que não oferecem essas funcionalidades. Nem poderiam, por causa das regras de nomenclatura da linguagem e dos nomes dados pela Sun a essas funcionalidades.

Algumas dessas outras implementações são licenciadas em termos que permitem, sem ônus, a modificação e a distribuição das versões modificadas, pois são Software Livre [DSL], que respeita as liberdades do usuário de usar o programa para qualquer propósito, estudá-lo, modificá-lo de acordo com suas necessidades e distribuí-lo, na forma original ou com modificações.

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Mesmo que às máquinas virtuais livres fosse possível adicionar as funcionalidades exigidas pelos programas da Receita Federal, seria mais conveniente e correto se a Receita Federal se mantivesse fiel ao princípio da impessoalidade, oferecendo suas aplicações de acordo com a especificação da linguagem, e não de modo que favoreça uma determinada implementação em detrimento das demais.

Por mais que a implementação da própria Sun esteja em processo gradual de liberação como Software Livre, de modo a ingressar na categoria de software preferida pela Constituição Brasileira [PSL], não há previsão de que esse processo esteja completo antes do prazo limite para entrega das declarações de imposto de renda do exercício de 2006.

Uma vez que o processo de liberação esteja concluído, a escolha dessa implementação deixa de ser favorecimento a um único fornecedor, já que, tratando-se de Software Livre, qualquer um pode se dispor a oferecer serviços sobre a mesma base de software.


Desrespeito ao Princípio da Eficiência

A publicação de todos os códigos fontes e documentação de formatos de arquivos e protocolos, defendida na seção anterior, possibilitaria que a sociedade contribuísse diretamente para a melhoria das aplicações, não apenas no aspecto de facilidade de uso ou praticidade, mas também no sentido de possibilitar a usuários das mais diversas plataformas de software preparar e enviar suas declarações, seja através da adaptação da aplicação disponibilizada pela Receita Federal, seja através do desenvolvimento de novas aplicações.

A possibilidade de investigação e correção de erros nessas aplicações também seria desejável. Por certo há erros, ainda que os conhecidos pelos autores sejam pequenos. Na declaração do exercício de 2005 de um dos autores deste artigo, tanto o resumo quanto a declaração diziam:

Total do imposto retido na fonte (Operações em bolsa - Lei nº 11.033/2004), conforme dados informados pelo contribuinte: 5,[...]E306

enquanto o valor correto seria zero, não 5 seguido de 306 zeros à esquerda da vírgula.

Na mesma declaração, o resumo caberia numa única página, mas o programa insistia em gerar uma página vazia a mais, tanto no resumo isolado quanto na declaração completa.

A possibilidade de a Receita Federal poder contar com correções e melhoramentos voluntários aos seus programas aumentaria a eficiência de seu investimento no desenvolvimento desses programas, atendendo ao princípio constitucional de mesmo nome estabelecido para a administração pública também no artigo 37.

Mesmo que haja interesses comerciais na criação e distribuição de modificações, ou mesmo de programas alternativos completos, não há violação do princípio da impessoalidade se a possibilidade for estendida a todas as pessoas físicas e jurídicas, de modo a reduzir desigualdades regionais, conforme princípio da ordem econômica.

Defendemos, portanto, o oferecimento dos programas da Receita Federal na forma de Software Livre, sob licença "copyleft", ou seja, que exija o uso dos mesmos termos de licenciamento para distribuição de versões modificadas.

Isso garante que não apenas os softwares originais distribuídos pela Receita Federal, mas também as versões dele modificadas por terceiros sejam disponibilizadas em termos de licenciamento livres. Isso possibilita o exercício das liberdades fundamentais do Software Livre [DSL], não só respeitando o princípio da impessoalidade, mas também fomentando a indústria de software local e por conseguinte favorecendo o pleno emprego, ambos princípios da ordem econômica.

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Sobre os autores
Alexandre Oliva

doutor em Ciência da Computação pela Unicamp, engenheiro da RedHat, conselheiro da FSF America Latina (FSFLA)

Pedro Antônio Dourado de Rezende

professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley (EUA), ex-representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVA, Alexandre ; REZENDE, Pedro Antônio Dourado. Transgressões da Receita Federal relativas ao IRPF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1333, 24 fev. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9529. Acesso em: 18 abr. 2024.

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